Lei de cotas para negros já em vigor: o que altera nos concursos públicos?

Foi sancionada esta semana pela Presidente Dilma Rousseff a Lei Federal nº 12.990/2014, de 09/06/2014, que estabeleceu uma garantia de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, autarquias, fundações públicas e sociedades de economia mistas controladas pela União.

A presente lei foi publicada após vários debates de natureza política e social, sobre a legitimidade ou não de se ter uma cota específica de garantia de vagas para pessoas de uma raça/cor específica, em detrimento de outras raças/etnias que também são discriminadas, como os indígenas. Ademais, outros debates travados demonstrariam que a maior desigualdade no Brasil é a desigualdade econômica, que afeta pessoas de todas as raças e cores, e se houver discrimen legal somente para negros pode haver dupla discriminação para brancos que são pobres, dificultando ainda mais o acesso destes a cargos públicos.

Porém, o Congresso Nacional entendeu, por ampla maioria, que há razões de natureza histórico e social suficiente para garantir este discrímen aos negros para o acesso a cargos e empregos públicos, considerando o histórico de escravidão e as piores condições econômicas e sociais que os negros vivem na sociedade brasileira.

Importante lembrar que a presente regra de garantia de vaga deve ser aplicada em conjunto com a garantia de vagas para pessoas com deficiência, esta já garantia constitucional prevista no art. 37, inciso VIII e prevista no art. 5º, § 2º da Lei n.º 8.112/90, que assegura  legalmente até 20% das vagas.

Em abril de 2012, o STF enfrentou o assunto sobre a discussão da constitucionalidade das cotas, quando o objeto em debate era cota para negros na UnB (Universidade de Brasília). No caso, o STF julgou improcedente, à unanimidade, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186. O relator, Min. Ricardo Lewandowiski entendeu que as políticas de ação afirmativa adotadas pela UnB estabelecem um ambiente acadêmico plural e diversificado, e têm o objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas. Ademais, entendeu que os meios empregados e os fins perseguidos pela UnB são marcados pela proporcionalidade, razoabilidade e as políticas são transitórias, com a revisão periódica de seus resultados.

No caso,  o STF entendeu,  que:

“sobre o princípio constitucional da igualdade, examinado em seu duplo aspecto: formal e material. Rememorou-se o art. 5º, caput, da CF, segundo o qual ao Estado não seria dado fazer qualquer distinção entre aqueles que se encontrariam sob seu abrigo. Frisou-se, entretanto, que o legislador constituinte não se restringira apenas a proclamar solenemente a igualdade de todos diante da lei. Ele teria buscado emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, para assegurar a igualdade material a todos os brasileiros e estrangeiros que viveriam no país, consideradas as diferenças existentes por motivos naturais, culturais, econômicos, sociais ou até mesmo acidentais. Além disso, atentaria especialmente para a desequiparação entre os distintos grupos sociais. Asseverou-se que, para efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho universalista — a abranger número indeterminado de indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas — a atingir grupos sociais determinados — por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas particulares. Certificou-se que a adoção de políticas que levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da isonomia integraria o cerne do conceito de democracia. Anotou-se a superação de concepção estratificada da igualdade, outrora definida apenas como direito, sem que se cogitasse convertê-lo em possibilidade”.

Em relação a necessidade do discrímen ser baseado na raça/cor, o STF entendeu que:

“Confrontou-se a inexistência, cientificamente comprovada, do conceito biológico ou genético de raça, com a utilização do critério étnico-racial para fins de qualquer espécie de seleção de pessoas. Sublinhou-se que a Corte, nos autos do HC 82424 QO/RS (DJU de 19.3.2004), debatera o significado jurídico do termo “racismo” (CF, art. 5º, XLII) e afastara o conceito biológico, porquanto histórico-cultural, artificialmente construído para justificar a discriminação ou a dominação exercida por alguns indivíduos sobre certos grupos, maliciosamente reputados inferiores. Ressurtiu-se que, se o constituinte de 1988 qualificara de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos, seria possível empregar a mesma lógica para autorizar a utilização estatal da discriminação positiva, com vistas a estimular a inclusão social de grupos excluídos. Explicou-se que, para as sociedades contemporâneas que passaram pela experiência da escravidão, repressão e preconceito, ensejadora de percepção depreciativa de raça com relação aos grupos tradicionalmente subjugados, a garantia jurídica de igualdade formal sublimaria as diferenças entre as pessoas, de modo a perpetrar as desigualdades de fato existentes. Reportou-se que o reduzido número de negros e pardos detentores de cargos ou funções de relevo na sociedade resultaria da discriminação histórica que as sucessivas gerações dos pertencentes a esses grupos teriam sofrido, ainda que de forma implícita. Os programas de ação afirmativa seriam, então, forma de compensar essa discriminação culturalmente arraigada. Nessa linha de raciocínio, destacou-se outro resultado importante dessas políticas: a criação de lideranças entre os grupos discriminados, capazes de lutar pela defesa de seus direitos, além de servirem como paradigmas de integração e ascensão social. Como resultado desse quadro, registrou-se o surgimento de programas de reconhecimento e valorização de grupos étnicos e culturais. Ressaiu-se que, hodiernamente, justiça social significaria distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade valores culturais diversificados. Esse modo de pensar revelaria a insuficiência da utilização exclusiva do critério social ou de baixa renda para promover a integração de grupos marginalizados, e impenderia incorporar-se nas ações afirmativas considerações de ordem étnica e racial. Salientou-se o seu papel simbólico e psicológico, em contrapartida à histórica discriminação de negros e pardos, que teria gerado, ao longo do tempo, a perpetuação de consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, tanto sobre os segregados como para os que contribuiriam para sua exclusão”.

Após esta decisão do STF, como leading case, a jurisprudência pátria se afirmou no sentido de entender pela constitucionalidade das cotas para o acesso às vagas em Universidades públicas.

Já a presente Lei difere um pouco do paradigma constitucional apresentado pelo STF, pois, no presente caso, discute-se não o acesso à educação, mas o acesso a cargos e empregos públicos.

Assim, com a nova lei, temos algumas mudanças que impactam os concursos daqui em diante:

1) A Lei nº 12.990/2014 afeta somente os concursos federais para cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, autarquias, fundações públicas e sociedades de economia mistas controladas pela União. Assim, os concursos para todos os Ministérios, para a Controladoria-Geral da União, para Universidades Federais, para o INCRA, IBAMA, FUNAI, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste, Correios Caixa Econômica Federal, EMBRAPA, etc deverão garantir estas vagas, conforme art. 1º, caput, da citada Lei.

Esta Lei não afeta os concursos públicos para o Poder Judiciário Federal e o Ministério Público da União, já que para que afete o Judiciário e o Ministério é necessária a edição de uma lei de iniciativa do próprio MP, conforme  art. 127, § 2º, da Constituição Federal ou do Judiciário, de acordo com o art. 96, II, “b”. Em relação ao próprio Judiciário e MP, há propostas de resoluções no âmbito do CNJ e CNMP que pretendem implementar a garantia de vagas para negros, mas ainda não foram aprovadas. De qualquer forma, acredito que para haver maior segurança jurídica tal iniciativa deve ser através de projeto de lei, de iniciativa privativa.

A presente lei também não atinge concursos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, já que, por serem do Poder Legislativo, é necessário que haja a edição de resoluções destas Casas Parlamentares, conforme artigos 51, inciso IV (Câmara) e 52, inciso XIII (Senado).

A Lei 12.990/2014 também não se aplica para concursos estaduais, distritais e municipais, nem para as autarquias e fundações públicas e demais entidades vinculadas. Para que haja a obrigação legal de garantia de vagas por esta diferenciação é necessária a edição de lei no âmbito estadual, distrital ou municipal. Se não houver lei, a discriminação não poderá se aplicar, já que não poderá haver uma restrição simplesmente baseada em edital, conforme jurisprudência do STJ e STF.

2) A Lei se aplica somente aos concursos cujos editais forem publicados a partir do dia 10/06/2014. Conforme art. 6º, parágrafo único, não há eficácia retroativa, e a referida lei somente entrou em vigor após a publicação no Diário Oficial da União, que ocorreu no dia 10/06/2014.

3) O critério adotado para a reserva de vagas é o da autodeclaração. De acordo com o art. 2º, “poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”.

Neste sentido, aquelas pessoas que se afirmarem como de cor da pele pretas ou pardas, conforme o IBGE, serão considerada destinatárias das cotas. Para o IBGE, o “negro” é a soma de  dapopulação preta à população parda. Assim, por esta interpretação legislativa, os destinatários das cotas devem ser aquelas pessoas que ostentarem na cor da pele a consideração de “negro”, não sendo suficiente alegar que há características ancestrais de negros na família. A verificação do “negro” será na cor da pele, não em avaliação genética ou dos ancestrais daquele candidato a vagas.

Em algumas Universidades onde já ocorre esta cota para acesso de negros, existe uma banca para avaliar a veracidade das afirmações dos candidatos, com investigação social, se for necessário, para evitar que haja fraude ao sistema.

Creio que, pela própria subjetividade do critério (que, algumas vezes, pode não ser tão patente a análise visual que o candidato se inclua no critério) e pelos interesses envolvidos (que é o acesso a um cargo ou emprego público, que propicia, em muitos casos, altos salários e aposentadoria) haverá tentativas de burla e de discussão jurídicas a fim de ampliar o conceito de raça/cor destinatárias da lei, até mesmo buscando interpretações genéticas para aqueles candidatos que não sejam “negros” no biotipo, mas tenham ancestrais de origem africana. Por outro lado, haverá busca também ao Judiciário de candidatos que se julguem prejudicados com a reseva de vagas e questionamentos em casos concretos para se declarar inconstitucionalidade da Lei.

Tal questão somente vai ser pacificada com manifestação do Supremo Tribunal Federal que, decerto, será instado a se manifestar através de um dos vários legitimados para propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade.

4) A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, conforme o próprio art. 1º, §3º, não sendo possível deixar a critério posterior esta designação, até mesmo para haver maior segurança jurídica para os candidatos.

5) A reserva só será aplicada quando o número de vagas oferecidas for igual ou superior a 3 vagas. Assim, para cargos com número menor de vagas, não haverá esta aplicação. A Lei prevê que “na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos)”.

6) Penalidade para candidato que tentar burlar o sistema. A própria legislação já trouxe uma penalidade administrativa para aquele candidato que tentar burlar o sistema de cotas, que é a própria eliminação do concurso. Em caso que tenha sido nomeado, “ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após o regular procedimento administrativo, com ampla defesa e contraditório, sem prejuízo de outras sanções cabíveis” (art. 2º, parágrafo único). Assim, seria possível também a imputação de crime ao candidato por declaração falsa, com base no art. 299 do Código Penal (“Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”). Também é possível a Fazenda Pública ajuizar ação de reparação civil contra aquele que tenha causado prejuízo por tentar burlar o sistema.

7) Candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso. Neste sentido, os candidatos negros que forem aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas. Seria o caso daqueles candidatos negros que já são aprovados normalmente nos concursos atualmente. Assim, estas aprovações não “ocupam” a cota dos 20%, não havendo nem mesmo a necessidade de se comprovar se a pessoa é ou não, de fato, negra. A cota dos 20% só será preenchida por aqueles que não forem aprovados na ampla concorrência. Ou seja, é bastante provável que, no resultado final, o percentual de negros aprovados e convocados seja bem superior aos 20%.

8) Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado. Tal regra é a mesma aplicada no caso dos candidatos que atualmente concorrem na lista de pessoas com deficiência. Ou seja, a lista de convocação é paralela e deve ser respeitada. Caso não seja, o candidato preterido pode buscar a tutela judicial através de mandado de segurança, já que seria violação de direito líquido e certo.

9) Os critérios de aprovação e classificação valem igualmente para os candidatos negros. Assim, é evidente que também os destinatários da cota deverão conseguir a pontuação mínima para obterem a aprovação. Não será qualquer candidato negro que terá direito à vaga, mas somente aquele que obtiver a pontuação mínima. Ademais, na hipótese de não haver número de candidatos negros aprovados suficiente para ocupar as vagas reservadas, as vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação.

10) A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros. Assim, tendo a lista da ampla concorrência, a lista dos candidatos negros e a lista das pessoas com deficiência, haverá alternância entre as nomeações, para, ao final, manter o número das nomeações de acordo com o percentual a cada uma das listas.

11) A validade desta Lei de cotas é de 10 anos, conforme art. 6º. Assim, ao final do prazo, somente será possível a manutenção das cotas com aprovação de nova Lei.

Assim, acredito que a polêmica em torno do assunto deve acabar sendo apreciada novamente pelo STF, agora pelo critério da diferenciação baseada na cor para acesso a cargos e empregos públicos, devendo ser mais um objeto de amplo debate no plenário do Supremo Tribunal Federal nos próximos meses.

Dr. Alan Mansur, Procurador da República.

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