Liberdade de Expressão  x  Condutas Criminosas

Caso “Adote Um Bandido” da jornalista Rachel Sheherazade

 

Recentemente, a jornalista Rachel Sheherazade, da rede de televisão SBT, emitiu opinião que causou grande repercussão nas mídias sociais e nos meios jornalístico e jurídico.

O objeto da discussão gira em torno de sua declarações a respeito do fato de populares terem linchado e amarrado a um poste, com um cadeado de bicicleta, um adolescente negro e totalmente nu. Em referência ao deplorável ocorrido, a jornalista utilizou-se das seguintes expressões:

O marginalzinho amarrado ao poste era tão inocente que… ”,

“… a atitude dosvingadoresé até compreensível

“O Estado é omisso. A polícia, desmoralizada. A Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem, que, ainda por cima, foi desarmado?  Se defender, claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite.”

“E aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho no poste, lanço uma campanha: Façam um favor ao Brasil: adotem um bandido!”

A polêmica opinião e os termos utilizados acenderam o debate em torno da garantia da liberdade de expressão, fazendo emergir os seguintes questionamentos:

1.                 limites para a liberdade de expressão?

2.                 No caso, houve a prática dos delitos de incitação ao crime, apologia de crime ou criminoso e crimes contra a honra?

 

Respondendo a essas questões, vejamos alguns precedentes de nossos tribunais:

 

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). (…)10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. (…)12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.(..)15… Ordem denegada. (STF – HC: 82424 RS , Relator: Min. MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 17/09/2003, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DO AUTOR. RECORRIDO QUE ENCAMINHOU CORRESPONDÊNCIA ELETRÔNICA A DIVERSAS PESSOAS IMPUTANDO O COMETIMENTO DE DIVERSOS CRIMES PELO AUTOR. TEXTO QUE NÃO SE LIMITOU A NARRAR UMA DENÚNCIA, EXCEDENDO O EXERCÍCIO DESTE DIREITO. LIBERDADE DE EXPRESSÃO DO PENSAMENTO QUE DEVE SER COMPATIBILIZADA COM O DIREITO À IMAGEM, HONRA E DIGNIDADE. EXCESSO CONSTATADO. DEVER DE INDENIZAR RECONHECIDO. DECISÃO REFORMADA. REDISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS SUCUMBENCIAIS. RECURSO PROVIDO, PREJUDICADO O APELO ADESIVO. (TJ-SC   , Relator: Jorge Luis Costa Beber, Data de Julgamento: 18/09/2013, Quarta Câmara de Direito Civil Julgado)

Indenização por danos morais. Julgamento antecipado da lide. I) – Desnecessária a produção de prova oral se os fatos alegados constituírem matéria, exclusivamente, de direito, inocorrendo o cerceamento ao direito de defesa, com o julgamento antecipado da lide. II) O uso de expressões injuriosas, de qualificação desprimorosa, com matéria ofensiva pela imprensa, resulta em dano moral, afetando a dignidade e o decoro do ofendido, cabendo indenização, como forma de reparar a ofensa causada à sua honra. Apelo conhecido e improvido por maioria. (Quanto ao mérito, entendo ser incensurável a r. sentença apelada. A liberdade de expressão constitui uma das garantias constitucionais. Contudo, deve haver maior prudência das funções jornalísticas, não se podendo conferir a amplitude, de forma a resultar em  dano moral à pessoa, com a publicação pela imprensa de matéria ofensiva, com o escárnio e mofa, como foram atingidos os Apelados (chamados de “arapongas” e “abelhudos”) qualificação evidentemente desprimorosa.. (TJ-DF. Acórdão n.131614, 20000150012204APC, Relator: JOÃO MARIOSI, Relator Designado:HERMENEGILDO GONÇALVES, Revisor: HERMENEGILDO GONÇALVES, 1ª Turma Cível, Data de Julgamento: 25/09/2000, Publicado no DJU SECAO 3: 22/11/2000. Pág.: 21)

 

Tendo em conta os julgados acima, acerca da indagação se limites para a liberdade de expressão, cabe afirmar o que se segue.

A Constituição Federal de 1988 destacou, de forma marcante, a garantia da liberdade de circulação de ideais, C.F./1988:  art. 5º:  incs. IV, IX, e art. 220[1]. Tal premissa, entretanto, não conduz à conclusão de que a garantia da liberdade de expressão seja ilimitada e absoluta.

Com efeito, os tribunais brasileiros restringem a garantia da liberdade de expressão aos contornos firmados pela própria CF/1988, precisamente no que toca a outros direitos essenciais para a concretização da dignidade da pessoa humana, tais como a honra, a intimidade, a privacidade e o direito à imagem.

No caso em comento, destaque-se que o fato recai sobre um adolescente, pessoa em desenvolvimento, cujos direitos têm caráter prioritário, consoante se depreende do art. 227 da CF/1988[2].

Arremata-se, portanto, que houve extrapolação da garantia da liberdade de expressão, mormente na manifestação do vocábulomarginalzinho”, ofensivo à dignidade da pessoa humana, ganhando contornos ainda mais severos por se tratar de um adolescente.

Quanto à segunda questão levantada, “se no caso houve a prática dos delitos de injúria, incitação a crime e apologia de crime ou criminoso, sem adentrarmos no mérito da conduta ou do seu elemento subjetivo, vejamos o enquadramento formal de cada um dos crimes, hipoteticamente praticados:

 

Delito de Injúria.

A injúria ocorre quando o agente emite uma opinião pessoal sobre a dignidade da vítima, desacompanhada de qualquer dado concreto, ultrajando-a e insultando-a, por exemplo, com as expressões: ladrão, vagabundo, incompetente, caloteiro[3].

Atinge-se a dignidade de alguém ao afirmar que é ladrão, estelionatário, etc. (RT 715/89)[4].

O crime de injúria tem por traço característico não conter a imputação de fatos determinados, mas a genérica atribuição de qualidades reprováveis (criminosas ou unicamente imorais) ou a vaga imputação de vícios ou defeitos vexatórios. É a opinião pessoal do agente, desacompanhada da menção a fatos concretos ou precisos.[5]

Na conduta em epígrafe, a expressão “marginalzinho” é utilizada como um rótulo ao adolescente, independente do fato da reportagem, conotação esta que ultraja sua dignidade, atingindo sua honra subjetiva e ferindo vários de seus direitos constitucionais, amoldando-se formalmente ao crime de injúria.  

 

Delito de Apologia de Crime ou Criminoso.

A infração de apologia de fato criminoso ou de autor de crime está prevista no art. 287 do C.P.B e tem como objetividade jurídica a paz pública. O núcleo do tipo penal é elogiar, louvar o crime ou o autor deste. O dolo é a vontade de fazer apologia incriminada com a ciência que está se atingindo número indeterminado de pessoas.[6]

No caso sob análise, as expressões “a atitude dos “vingadores” é até compreensível” e  “aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho no poste, lanço uma campanha: Façam um favor ao Brasil. Adotem um bandido!” inequivocamente são elogios a conduta de populares que estariam fazendo justiça com as próprias mãos ao lincharem um adolescente em razão dele supostamente ter praticado pequenos assaltos na localidade.

Assim, há enquadramento formal na infração de apologia de fato criminoso ou de autor de crime.

 

Delito de Incitação ao Crime.

O delito de incitação ao crime está previsto no art. 286 do C.P.B, e sua objetividade jurídica também é a paz pública. A conduta criminosa é incitar, instigar, provocar ou estimular a prática de crime. O dolo é a vontade de instigar, de estimular a prática de crime com a ciência que está se atingindo número indeterminado de pessoas.[7]

Conforme inicialmente apresentadas, as expressões “O Estado é omisso. A polícia, desmoralizada. A Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado?  Se defender, claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite” caracterizam-se como palavras de estímulo à reiteração de condutas criminosas como a dos populares em tela, que agiram de forma tão primitiva e brutal.

Assim, a conduta também se adequa, hipoteticamente, à infração de incitação a crime.

Ante todo o exposto, conclui-se que as expressões utilizadas pela jornalista  extrapolaram a garantia da liberdade de expressão, sendo possível o enquadramento formal da sua conduta aos delitos de injúria, de apologia a fato criminoso ou a autor de crime e de incitação a crime.    


[1]   Marmelstein, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo, Atlas,2008.
[2]   Cury, Muni e Outros. Estatuto da Crianca e do Adolescente Comentado. São Paulo: Malheiros,2003
[3]   Capez,Fernando. Curso de Direito Penal, V.2. São Paulo: Saraiva, 2003.
[4]   Mirabete, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal, V. 3. 15a ed. Sao Paulo: Atlas, 2001.
[5]   Mirabete, Julio Fabrini. Op. citado (TJ-AM – APL: 20110050009 AM 2011.005000-9, Relator: Desª Carla Maria Santos dos Reis, Data de Julgamento: 19/07/2012, Primeira Câmara Criminal).
[6]   Mirabete, Julio Fabrini. Op. citado.
[7]   Mirabete, Julio Fabrini. Op. Citado.