Caros leitores do blog Ebeji, este é um tema importantíssimo para a Fazenda Pública Federal. Com o julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário n° 661256/DF, afetado à técnica da repercussão geral, o tema ganha especial relevo àqueles que pretendem concorrer aos cargos de Procurador Federal ou Advogado da União.

Antes de abordarmos o cerne do que foi decidido Suprema Corte, enfrentaremos o conceito, a natureza jurídica os principais fundamentos favoráveis e contrários à desaposentação, além da análise da jurisprudência do STJ, que, adiantamos, deverá ser revisitada.

Vamos prosseguir!

EBEJI

I – Do conceito e da natureza jurídica

Desaposentação é a renúncia manifestada por beneficiário da previdência social de sua aposentadoria, com o objetivo de concessão de outra, mais vantajosa. Em linguagem mais técnica, é o pleito de desfazimento do ato administrativo que gerou a concessão de aposentadoria para, aproveitando o período de contribuição (tempo laboral) e salários de contribuição (contribuição que é vertida mensalmente) do “benefício velho” para o cálculo de uma “aposentadoria nova”, de maior renda mensal inicial, seja no Regime Geral ou no Regime Próprio.

Há diferença entre desaposentação, revisão e reajuste? Sim. Desaposentação é renúncia ao benefício, revisão é pedido de correção de equívoco que incidiu no ato de concessão[1] (correção dos critérios de cálculo e/ou tempo de serviço que deveriam ser considerados no momento de seu deferimento), ao passo que reajuste é critério de manutenção do valor real/nominal do benefício ao longo dos anos.

Ressaltamos que o entendimento do INSS, sobre a natureza jurídica da desaposentação, difere do que defende a doutrina e jurisprudência majoritárias. De acordo com a Procuradoria-Geral Federal, órgão de representação judicial da Autarquia, a desaposentação não passa de uma revisão “às avessas” ou “indireta”, na medida em que seu pleito vem desacompanhado de qualquer pretensão em devolver os valores até então recebidos, de restituição ao status quo ante.

EBEJI

II – Dos principais argumentos adotados pela doutrina e jurisprudência, a favor e contra a desaposentação

Os principais fundamentos invocados por aqueles que defendem a renúncia são:

a) a natureza patrimonial da benesse, sendo permitida a sua renúncia por manifestação de vontade unilateral de seu titular;
b) a ausência de contraprestação na Lei de Benefícios (n° 8.213/91) em face das contribuições vertidas pelo aposentado, que permaneceu ou retornou ao serviço abrangido pelo RGPS, na condição de segurado obrigatório, a exemplo do que ocorre com o empregado;
c) inexistência de vedação legal.

A vertente contrária ao instituto, por sua vez, adota os seguintes argumentos:

a) o desfazimento do benefício não poderia ficar a cargo da vontade única do beneficiário, em respeito ao ato jurídico perfeito;
b) a Lei n° 8.213/91 apenas admitia ao aposentado empregado o deferimento da reabilitação profissional e do salário família;
c) o argumento de que não havia vedação legal é imprestável à solução da questão, visto que a Administração somente pode fazer o que expressamente autorizado em lei, diversamente dos particulares;
d) observância aos princípios da solidariedade, da isonomia e da segurança jurídica

EBEJI

Do ato jurídico perfeito

Aposentadoria consiste no jubilamento do segurado e decorre de um ato administrativo complexo (concessão pelo INSS, confirmação pelo TCU). É renda paga pelo Seguro Social de acordo com determinados critérios legais, vigentes no momento do requerimento administrativo, via de regra, com vistas a reger, de forma previsível e definitiva, os valores destinados a determinado segurado.

Tendo em vista essas características, defende-se que a aposentadoria estabiliza, aperfeiçoa, uma determinada situação jurídica subjetiva existente entre a Administração e o segurado, gozando da proteção do ato jurídico perfeito, que irradia seus efeitos para o futuro, para salvaguardar os direitos do aposentado (quanto à manutenção de sua aposentadoria) e do INSS (com relação à sua organização administrativa e orçamentária), sendo, portanto, indeclinável, irrenunciável.

EBEJI

Da inexistência de autorização legal para a modificação dos critérios de concessão do benefício, para a desaposentação

A ausência de previsão legal não implica em autorização para este fenômeno jurídico. É lição tradicional de direito administrativo que à Administração só é dado fazer o que permitido em lei (art. 37, caput, CRFB/88), sendo distinta a interpretação do princípio da legalidade vigente nas relações entre particulares, os quais estariam autorizados a realizar tudo quanto não vedado expressamente em lei (art. 5º, II, da CRFB/88).

Como há vínculo jurídico-administrativo entre o beneficiário e o INSS, que é Autarquia, não deve haver dúvidas de que a legalidade que incide à espécie é a do art. 37, caput, da Lei Fundamental, afastando a simplória tese de que a desaposentação encontraria guarida, por não vedada em lei.

Ademais, há um verdadeiro silêncio eloquente no art. 18, §2º, da Lei n° 8.213/91, ao afirmar que apenas serão devidos ao aposentado empregado a reabilitação profissional e o salário família, sendo implícita a vedação a outros benefícios de ordem previdenciária, no próprio diploma.

Em suma, ainda que o segurado do RGPS mantenha o seu vínculo laboral após a implantação da aposentadoria vindicada, é ausente de previsão legal sua superveniente modificação, exceto para correção dos critérios de cálculo e/ou tempo de serviço que deveriam ter sido considerados no momento de seu deferimento, posto que, em matéria previdenciária, aplica-se o princípio do tempus regit actum.

EBEJI

Do princípio da solidariedade – do regime de repartição simples

Outro argumento contrário à desaposentação é a estruturação do Sistema Previdenciário brasileiro de acordo com o princípio da solidariedade, que é um dos fundamentos da República (art. 3, I, da CRFB). Todos devem concorrer com os riscos sociais, justificando-se o recolhimento pelos aposentados que retornem ao trabalho, sem repercussão sobre o benefício implantado ou para o cálculo de nova aposentadoria. Conforme ensina Frederico Amado, o princípio “justifica (…) um segurado que começou a trabalhar poder se aposentar no mesmo dia, mesmo sem ter vertido nenhuma contribuição ao sistema, desde que após a filiação seja acometido de infortúnio que o torne inválido”.

Em linhas gerais, todos os que se enquadrem na condição de segurado devem contribuir solidariamente para manter o Seguro Oficial, que cobre riscos de diversas ordens, a exemplo de incapacitação (aposentadoria por invalidez, auxílio-doença auxílio-acidente). Com isso, cumpre-se outro princípio constitucional, que é o da diversidade da base de financiamento (art. 194).

Não há, pois, direito à equivalência entre o que foi contribuído e a renda mensal concedida pelo INSS. O Brasil adotou o sistema previdenciário de repartição simples (e não de capitalização), que, em linhas gerais, impõe o cálculo do valor do benefício de acordo com as regras em vigor no momento de sua concessão, não havendo que se cogitar em direito à contraprestação sobre tudo o que foi (e virá a ser) contribuído com a Previdência.

Por esta razão, a Lei n° 8.870/94 extinguiu o “pecúlio”, instituto que permitia o pagamento de uma indenização ao aposentado que retornasse ao serviço. Era clara a incompatibilidade da verba com o princípio da solidariedade e com o sistema de cobertura de riscos, em vigor no país.

EBEJI

Do equilíbrio financeiro e atuarial

Explica o professor Hugo Goes, de forma bastante precisa e direta, que princípio do equilíbrio financeiro significa “garantia de equivalência entre as receitas auferidas e as obrigações do regime previdenciário em cada exercício financeiro”, já o atuarial corresponde a “garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das obrigações projetadas, apuradas atuariamente, a longo do prazo”.

A admissão da desaposentação rompia com as duas fórmulas. Basta considerar que o INSS não mais teria previsibilidade de seus gastos futuros com os benefícios em manutenção, que poderiam vir a ser recalculados a qualquer tempo, tornando de impossível previsão orçamentária todos os gastos com a Previdência.

EBEJI

Da isonomia e da segurança jurídica

A isonomia seria ofendida, na medida em que permitiria o tratamento distinto entre pessoas que estivessem em idêntica situação jurídica, sendo nítida a maior vantagem em favor daquele que antecipou a sua aposentadoria, se comparado ao que permaneceu trabalhando, com vistas a uma incidência mais branda do fator previdenciário. Se assim fosse possível, o estímulo à permanência no serviço seria lançado por terra, já que as mesmas vantagens decorrentes da postergação da aposentadoria estariam disponíveis a todos, pelo fenômeno da desaposentação.

Acrescente-se aos argumentos contrários à renúncia a incidência de situação jurídica insustentável, de impossível operacionalização pelo INSS, que poderia ser demandado mês a mês, ano a ano por todos os aposentados que mantiveram a condição de segurado, para recálculos intermináveis em seus benefícios, a cada simulação mais favorável, de acordo com as novas contribuições vertidas.

EBEJI

III – Da jurisprudência do STJ – Recurso Especial repetitivo n° 1.334.488

Os primeiros precedentes do STJ que abordaram a desaposentação se debruçaram sobre o pedido de beneficiário do INSS que, por ter sido aprovado em concurso, pretendia a contagem do tempo de serviço utilizado no Regime Geral para concessão de aposentadoria no Regime Próprio (RESP 497683/PE), tese que foi estendida para a concessão de aposentadorias mais benéficas dentro do Regime Geral, ou seja, perante o INSS.

Após a prolação de diversos precedentes favoráveis ao pleito dos segurados, a Corte da Cidadania reafirmou sua orientação em recurso especial repetitivo. Na assentada, consignou-se a desnecessidade de devolução aos cofres públicos da quantia até então recebida pelo aposentado. Seguem os principais fundamentos presentes em sua jurisprudência:

1 O benefício previdenciário encerra direito patrimonial disponível, é direito do segurado a desaposentação, para obter no mesmo ou em outro regime aposentadoria mais vantajosa;
2 inexistência de fundamento jurídico para seu indeferimento;
3 Desnecessidade de devolução dos valores recebidos – enquanto aposentado, o segurado fez jus aos proventos. Produz efeitos ex nunc.
4 Se há contribuição, deve haver contraprestação (conflito aparente com o princípio da solidariedade e universalidade– visão macro – pensa na sociedade – visão micro – pensa no próprio indivíduo).

EBEJI 

IV – Da decisão do STF contrário à desaposentação – RE n° 661256/SC, apreciado no regime de repercussão geral

O entendimento do STJ, contudo, foi superado pelo STF quando do julgamento do RE n° 661256/SC, em repercussão geral, no qual se fixou a seguinte tese jurídica:

“No âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à ‘desaposentação’, sendo constitucional a regra do artigo 18, parágrafo 2º, da Lei 8.213/1991”.

O Ministro Dias Toffoli, que apresentou o voto-vista divergente, acompanhado pela maioria do Plenário, entendeu que os mesmos fundamentos adotados pelo STF quando da ratificação da cobrança de contribuições a servidores inativos, aplicar-se-iam aos aposentados do RGPS, para obstar o fenômeno da desaposentação. Vejamos quais foram as razões de decidir do recurso paradigmático:

1 Constitucionalidade do art. 18, §2º, da Lei n° 8.213/91, que faz prevalecer o direito adquirido e o ato jurídico perfeito;
2 Manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial;
3 Regime de solidariedade, adotado pela CRFB/88, com maior ênfase a partir da promulgação da EC nº 41/03;
4 O fato de não haver contraprestação dos recolhimentos vertidos após a aposentação, não significa ofensa à CF/88, estando em conformidade com o art. 195 da Lei Maior, que prevê a diversidade da base contributiva;
5 Compete à legislação ordinária disciplinar quais as hipóteses em que as contribuições repercutem sobre o cálculo do benefício;
6 A aposentadoria é irreversível e irrenunciável – é impossível aproveitar novamente tempo já utilizado perante o INSS;
7 Ofensa ao princípio da legalidade, não sendo considerado “ato administrativo” o tendente a desaposentar o segurado, visto que praticado à revelia de qualquer autorizativo legal; A “desaposentação” depende de iniciativa parlamentar (cláusula de reserva de parlamento).
8 Subversão do critério do fator previdenciário;
9 Adoção, pelo Brasil, do sistema de repartição simples. A contribuição social é compulsória e visa constituir um fundo, não havendo falar em direito à contraprestação sobre tudo quanto recolhido;

EBEJI

V – Dos desdobramentos jurídicos do julgamento do STF

Com base no art. 1.030 do CPC-15 (sendo no mesmo sentido seu correspondente, do CPC-73), em caso de confronto do acórdão recorrido com a tese fixada em repercussão geral, faz-se necessária a remessa dos autos ao relator, para juízo de retratação. Este procedimento pode ser adotado com relação aos recursos extraordinários sobrestados, que aguardavam o julgamento dos recursos afetados ao STF.

E o que pode ser feito em face das ações que, por diversos motivos, transitaram em julgado e permitiram o ajuizamento de execuções contra o INSS? E quanto aos pagamentos baseados em tutela provisória?

Em provas subjetivas, pode ser defendido que os valores recebidos com base em decisões precárias devem ser restituídos, de acordo com a jurisprudência do STJ, à exceção das parcelas auferidas após a dupla conformação (sentença e acórdão favoráveis).

Quanto aos processos que constituíram coisa julgada, a ação rescisória é via que pode ser adotada. Iniciada a via satisfativa, deve-se advogar a inexigibilidade do título (art. 535, §5º, do CPC-15 ou art. 741, parágrafo único, do CPC-73, a depender da data de formação da coisa jugada inconstitucional).

Por fim, mesmo os benefícios amparados pela chamada “coisa soberanamente julgada” (aquela em que já exaurida o prazo bienal da ação rescisória), abre-se a via da ação revisional, diante da mudança dos fundamentos jurídicos que subsidiaram o julgamento de procedência do pedido de renúncia, sendo a coisa julgada rebus sic stantibus, ante a relação de trato sucessivo entre o beneficiário e o INSS.

Excelente estudo a todos!

EBEJI

Bruno Luiz Dantas

Advogado da União

[1] Há uma hipótese sui generis de revisão admitida pela jurisprudência, que não objetiva sanar vício concessório, mas liberar o salário de benefício que ficou retido no momento da concessão, com repercussão financeira ex nunc, a partir do aumento do teto previdenciário. Isto ocorreu em virtude de modificações históricas no patamar do teto contributivo que, por exemplo, já correspondeu a 20 salários mínimos, foi reduzido para 10 salários e, após, sofreu pequenos ajustes. Aquele segurado que contribuía no teto quando correspondia a 20 e se aposentou sob a vigência de limite contributivo menor, pode ter experimentado a retenção do salário de benefício que superou o teto vigente no momento da aposentadoria. Para estes casos, o STF, em repercussão geral (RE n° 564354) passou a admitir o desbloqueio proporcional do valor retido (revisão), em casos de aumentos supervenientes do teto previdenciário, tal como ocorrera com o advento das Emendas Constitucionais 20/98 e 41/03. Entendeu a Suprema Corte que não haveria ofensa ao ato jurídico perfeito.