Hitala Mayara é Advogada da União

e professora EBEJI

EBEJI

Vamos analisar um julgado bastante interessante do STJ em relação a ações possessórias envolvendo terras públicas.

Antes, é importante que revisemos o seguinte sobre o tema:

Como já pacificou o STJ, em se tratando de bem público, não há que se falar em posse, mas mera detenção, de natureza precária, o que afasta, por conseguinte, o direito de retenção por benfeitorias, ainda que à luz de alegada boa-fé.

Nesse sentido, destaque-se o seguinte precedente:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. ART. 535, II DO CPC. VIOLAÇÃO NÃO CONFIGURADA. BEM PÚBLICO. OCUPAÇÃO IRREGULAR. DIREITO DE INDENIZAÇÃO PELAS ACESSÕES. INEXISTÊNCIA.

1. O fato de as conclusões do acórdão recorrido serem contrárias aos interesses da parte, não configura violação ao artigo 535, II do Código de Processo Civil.

2. Restando configurada a ocupação indevida de bem público, não há falar em posse, mas em mera detenção, de natureza precária, o que afasta o direito de retenção por benfeitorias e o almejado pleito indenizatório à luz da alegada boa-fé.

3. Agravo regimental não provido.

(AgRg no REsp 1470182/RN, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/11/2014, DJe 10/11/2014)

Essa não é uma decisão tão recente e mesmo a posição nela fixada não é tão nova, mas sua importância para os concursos de Advogado da União é enorme considerando as premissas nela fixadas.

Para compreendê-la melhor, vamos imaginar a seguinte situação: Ana construiu uma casa simples em um terreno que estava desocupado, mesmo ciente de que não poderia adquirir a escritura do imóvel por se tratar de bem de propriedade da União Federal.

Naquele local manteve sua residência por cerca de 5 anos, quando foi, então, surpreendida pelo Oficial de Justiça que vinha lhe trazer uma ordem judicial para desocupação da área, proferida em ação de reintegração de posse movida pela União Federal a seu desfavor.

Ana, então, buscou a Defensoria Pública e apresentou pedido no sentido de ser indenizada pelas benfeitorias que construiu na área, alegando que durante 5 anos ocupou a área de boa fé. Pedia também o exercício do seu direito de retenção da área até que fosse realizado o pagamento da indenização pelo ente público.

O fundamento do seu pedido estava no art. 1219 do Código Civil, que assim dispõe:

Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

Considerando a posição do STJ sobre o tema, é possível o deferimento do pedido formulado por Ana?

Não.

O importante, aqui, é compreender os fundamentos do STJ para a negativa:

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1º) Não há como se falar em posse sobre bem público:

O primeiro ponto que se ocupou o STJ de afastar nesses casos foi a alegação de posse apresentada pelos ocupantes de bens públicos.

Como sabemos, existem basicamente duas teorias explicativas da posse:

  1. Subjetiva, defendida por Savigny, para quem a posse consiste no poder exercido sobre determinada coisa (corpus) com o propósito de tê-la para si (animus);
  2. Objetiva, defendida por Jhering, para quem basta o corpus, isto é, a coisa, sendo a posse mera exteriorização da propriedade. Seria possuidor, portanto, aquele que, exercendo poderes de dono, imprimisse destinação econômica à coisa.

Segundo art. 1196 do Código Civil, considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Ao considerar como possuidor aquele que se porta como dono, então, entende-se que o nosso Código adotou a teoria objetiva da posse, sendo, assim, considerado possuidor aquele de possua o poder de gozar, reaver, usar ou dispor do bem, por serem eles poderes inerentes à propriedade, segundo previsão do art. 1228 do Código Civil.

Ocorre que, em se tratando de bem público, o eventual ocupante não possuirá quaisquer desses poderes, principalmente se ocupa o bem sem qualquer anuência ou autorização do Poder Público.

Por conta disso, o primeiro fundamento do pedido de Ana a ser afastado refere-se a sua qualificação como possuidora, pois ela poderá ser considerada, no caso, mera detentora do bem.

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 2º) Sem posse, não há como se falar em direito a indenização por benfeitorias ou direito de retenção:

De fato, ao possuidor legítimo são assegurados certos direitos caso venha a perder sua posse. Tais direitos recaem sobre as benfeitorias erigidas e quanto aos frutos e produtos relativos ao bem.

Em todo caso, a natureza da posse, se de boa ou de má fé, repercutirá diretamente em tais direitos, prevendo o Código Civil, em síntese, o seguinte:

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BENFEITORIAS
Possuidor de boa-fé Possuidor de má fé
Tem direito a ser indenizado pelas benfeitorias úteis e necessárias, inclusive com direito de retenção. Tem direito a ser indenizado apenas pelas benfeitorias necessárias.
Tem direito a ser indenizado pelas benfeitorias voluptárias e, se não pagas, terá o direito de levantá-las, desde que sem prejuízo à coisa. Não possui direito de retenção.

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FRUTOS
Espécies Possuidor de boa-fé Possuidor de má fé
Percebidos Tem direito àqueles percebidos durante a boa-fé. Não tem direito aos frutos; tem direito às despesas de produção.
Pendentes Devem ser devolvidos quando cessar a boa-fé, indenizadas as despesas. II
Colhidos antecipadamente Devem ser devolvidos quando cessar a boa-fé. II
Percipiendos A lei não diz nada. II

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Ocorre que, como vimos, o ocupante de bem público não pode ser qualificado como possuidor, e sim como mero detentor da coisa.

Assim sendo, portanto, não faz ele jus a qualquer tipo de indenização pelas benfeitorias erigidas, não possuindo, por consequência, direito de retenção do bem, já que todos esses direitos apenas são resguardados a favor do possuidor.

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3º) Eventual Construção na área invadida não será considerada benfeitoria, mas mera acessão:

Além dos dois fundamentos anteriores, deve-se ter em mente também que as moradias construídas em imóveis públicos não se configuram como benfeitorias, já que não são voltadas ao mero deleite ou recreio (voluptuárias), a facilitar o uso da coisa (úteis) ou a conservar o bem ou evitar que ele se deteriore (necessárias).

Segundo o STJ, figuram, então, como meras acessões por construção, lembrando que as acessões são formas originárias de aquisição da propriedade que se operam mediante a união física de uma coisa à outra, aumentando o volume da coisa principal.

Como regra geral, o dono do solo adquire a propriedade da acessão, pois o solo exerce força atrativa. Haverá direito à indenização apenas se houver boa-fé. Excepcionalmente, porém, se as acessões superarem consideravelmente o valor do solo, o possuidor adquirirá a propriedade do solo, ocorrendo o que se chama de acessão invertida.

Porém, segundo o STJ, mesmo que isso ocorra, a lógica não será aplicável em se tratando de bens públicos por serem eles inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis.

Assim, em todo e qualquer caso, por serem acessões, as construções realizadas em bens públicos ilegalmente serão incorporadas à propriedade do solo, independentemente de seu valor, sendo também este um fundamento para não ser reconhecido qualquer direito à indenização.

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4º) O pagamento de qualquer indenização pressupõe Benefício para o proprietário e a Boa fé do Ocupante:

Por fim, um último ponto observado pelo STJ refere-se ao fato de que o Código Civil, ao prever o direito à indenização a favor do possuidor parte da ideia de que, caso não realize esse pagamento, o proprietário do bem será beneficiado pelas benfeitorias e acessões realizadas em seu terreno, sendo hipótese de enriquecimento indevido.

Ocorre que também esse raciocínio não é passível de aplicação em se tratando de bens públicos, considerando que eventuais construções realizadas o foram em desvio de finalidade, já que voltadas a atender um interesse particular, e não o interesse público, e, normalmente, são feitas sem observar a legislação ambiental, urbanística, etc., gerando, como regra, a necessidade de demolição.

Entender de forma diversa levaria, como conclui o STJ, ao estímulo às invasões e construções ilegais, já que aqueles que se apropriam indevidamente do espaço público ainda seriam indenizados por isso, situação que não se poderia admitir.

É também com essa razão que entende o STJ não ser possível se falar em boa-fé nesses casos, sob pena de se admitir, a partir desse entendimento, a posse privada de bem coletivo, o que viola os princípios da indisponibilidade do patrimônio público e da supremacia do interesse público.

Destaque-se que, ainda segundo o STJ, eventual inércia ou tolerância da Administração não tem o condão de transformar a ocupação ilegal em de boa-fé, já que, em todo e qualquer caso, essas invasões ocorrem em flagrante violação à lei.

Considerando todos esses argumentos, portanto, é de se concluir que o pedido formulado por Ana jamais poderia ser acolhido por não ser cabível a invocação, ao caso, do art. 1219 do Código Civil, eis que:

  • Ana não pode ser considerada possuidora, mas mera detentora;
  • Não sendo possuidora, não faz jus a indenização por quaisquer benfeitorias e, por consequência, à retenção do bem;
  • A moradia por ela construída em área pública não se caracteriza como benfeitoria, mas como acessão por construção, o que também afasta a aplicação do art. 1219;
  • Em todo caso, o reconhecimento de eventual direito a indenização configuraria um estímulo a invasões a bens públicos, em flagrante prejuízo à coletividade e mesmo sendo flagrante a ausência de boa-fé desses ocupantes, que atuam em violação direta à lei.

Certo. Com isso revisamos a situação do ocupante de terras públicas em sua relação com o Poder Público.

Suponhamos, então, que estamos diante de um bem público que foi invadido por Ana. Contudo, passados mais de 6 meses, a União não adotou qualquer providência para a retomada do bem e, então, foi a própria Ana surpreendida pela invasão da mesma área por João e sua família.

Nessa situação, considerando que Ana, ainda que irregularmente, já ocupa a área, poderá ela adotar alguma medida em face de João para reaver o bem?

Essa foi a questão julgada pelo STJ e noticiada no seu último Informativo:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AJUIZAMENTO DE AÇÃO POSSESSÓRIA POR INVASOR DE TERRA PÚBLICA CONTRA OUTROS PARTICULARES.

É cabível o ajuizamento de ações possessórias por parte de invasor de terra pública contra outros particulares. Inicialmente, salienta-se que não se desconhece a jurisprudência do STJ no sentido de que a ocupação de área pública sem autorização expressa e legítima do titular do domínio constitui mera detenção (REsp 998.409-DF, Terceira Turma, DJe 3/11/2009). Contudo, vislumbra-se que, na verdade, isso revela questão relacionada à posse. Nessa ordem de ideias, ressalta-se o previsto no art. 1.198 do CC, in verbis: “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”. Como se vê, para que se possa admitir a relação de dependência, a posse deve ser exercida em nome de outrem que ostente o jus possidendi ou o jus possessionis. Ora, aquele que invade terras públicas e nela constrói sua moradia jamais exercerá a posse em nome alheio, de modo que não há entre ele e o ente público uma relação de dependência ou de subordinação e, por isso, não há que se falar em mera detenção. De fato, o animus domni é evidente, a despeito de ele ser juridicamente infrutífero. Inclusive, o fato de as terras serem públicas e, dessa maneira, não serem passíveis de aquisição por usucapião, não altera esse quadro. Com frequência, o invasor sequer conhece essa característica do imóvel. Portanto, os interditos possessórios são adequados à discussão da melhor posse entre particulares, ainda que ela esteja relacionada a terras públicas. REsp 1.484.304-DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/3/2016, DJe 15/3/2016.

Veja que a dúvida é pertinente se observarmos que, por exercer mera detenção, Ana não poderia ser considerada possuidora e, assim, não poderia se valer das ações possessórias na hipótese.

Ocorre que, como bem pontuou o STJ, é preciso distinguir a situação de Ana perante o Poder Público e a situação de Ana perante João.

Perante o Poder Público, como vimos, ela não poderá ser sequer considerada possuidora, exercendo mera detenção de natureza precária.

Assim, não poderia Ana se valer de uma ação possessória em face da União caso se visse turbada nessa sua detenção, como, por exemplo, mover uma ação de manutenção de posse em face da União diante da ordem de desocupação do bem, caso em que seria evidente a improcedência do seu pedido. Falta-lhe, na hipótese, a premissa da situação de possuidora, que depende da presença do animus domni.

Contudo, diferente é sua relação perante João.

Isso porque Ana, ainda que à revelia da lei, já ocupa a área em questão e, quanto a outros ocupantes, segundo definiu o STJ, ela possui o intuito de domínio, o animus domni, ainda que ele seja infrutífero perante o Poder Público.

Por conta disso, em relação a novos invasores, como é o caso de João, é de ser reconhecida a situação de possuidora de Ana e, portanto, é de lhe ser conferida a possibilidade de utilização das ações possessórias para proteger sua ocupação.

Assim, perceba que de um mesmo fato estão surgindo duas relações jurídicas diversas, com consequências também diversas:

  • Ana x União Federal à mera detenção, não gerando direito à proteção da posse;
  • Ana x João à possuidora, gerando direito à proteção da posse mediante o ajuizamento de ações possessórias.

Bons estudos, Hitala Mayara.

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