A Corte Internacional de Justiça e a nova fronteira marítima entre Peru e Chile

O Mar foi e sempre será uma óbvia condicionante na concepção das políticas e das estratégias de segurança e desenvolvimento dos Estados. Historicamente, tal como as áreas terrestres, o Mar é um espaço que originou disputas intra-estatais, catalisadas por vácuos de poder decorrentes da inexistência, à época, de um ordenamento jurídico internacional das áreas marítimas.

O final da 2ª Grande Guerra Mundial lançou o mundo numa escalada de evolução política, social, econômica e científica. Neste contexto, as Nações Unidas (ONU) começam a ter em atenção a problemática dos espaços oceânicos, com a sua delimitação territorial e sobretudo com o uso e a apropriação dos seus recursos.

O corolário do trabalho da ONU neste domínio é a Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar (Convenção de Montego Bay, de 1982); que foi adotada em um contexto em que se multiplicavam as descobertas sobre o potencial das riquezas existentes no imenso meio marinho, que, ausente de um enquadramento legal específico, poderia desencadear sérias crises de soberania e de autoridade entre os Estados.

A entrada em vigor desta convenção marca o início de uma fase radicalmente distinta do Direito do Mar. Novos conceitos foram aprovados e passaram a vigorar. Foi estabelecida uma nova ordem na utilização e apropriação dos espaços marítimos. Uma perspectiva de diálogo e cooperação internacional passou a ser a base de construção deste complexo edifício normativo

O domínio marítimo de um Estado abrange diversas áreas: águas interiores, o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental. O Direito Internacional Público se ocupa de cada uma destas áreas do domínio marítimo.

No dia 27 de janeiro de 2014, a Corte Internacional de Justiça pôs fim em uma disputa que se arrastava há décadas. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) foi estabelecida pela Carta das Nações Unidas, de 1945, como o principal órgão judiciário das Nações Unidas. O Artigo 36, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça assim define a sua competência:

“Artigo 36

A competência da Corte abrange todas as questões que as partes lhe submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados e convenções em vigor.

Os Estados, partes do presente Estatuto, poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória, ipso facto e sem acordos especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tenham por objeto:

a) a interpretação de um tratado;

b) qualquer ponto de direito internacional;

c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional;

d) a natureza ou extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional.

As declarações acima mencionadas poderão ser feitas pura e simplesmente ou sob condição de reciprocidade da parte de vários ou de certos Estados, ou por prazo determinado.

Tais declarações serão depositadas junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas que as transmitirá, por cópia, às partes contratantes do presente Estatuto e ao Escrivão da Corte.

Nas relações entre as partes contratantes do presente Estatuto, as declarações feitas de acordo com o Artigo 36 do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional e que ainda estejam em vigor serão consideradas como importando na aceitação da jurisdição obrigatória da Corte Internacional de Justiça, pelo período em que ainda devem vigorar e de conformidade com os seus termos. Qualquer controvérsia sobre a jurisdição da Corte será resolvida por decisão da própria Corte.”

É importante destacar que, por ser um órgão independente, a Corte Internacional de Justiça não se encontra em nenhuma ordem de inferioridade, seja em relação aos demais órgãos das Nações Unidas, seja em relação os Estados soberanos que compõem a sociedade internacional.

Nguyen Quoc Dinh, Patrick Dailer e Alain Pellet, na festejada obra “Direito Internacional Público, assim discorrem sobre o tema “Delimitação do Território Estatal”:

 

“Segundo o Dicionário da terminologia do direito internacional, a fronteira é a ‘linha que determina onde começam e onde acabam os territórios dependendo respectivamente de dois Estados vizinhos’. Precisando esta decisão, o Tribunal arbitral encarregado de determinar a Fronteira marítima da Guiné-Bissau e do Senegal julgou que ‘uma fronteira internacional é a linha formada pela sucessão dos pontos extremos no domínio de validade espacial das normas da ordem jurídica de um Estado’, valendo a mesma definição para a fronteira terrestre e a fronteira marítima.” (op. cit. Lisboa: Fundação Caloute Gulbenkian, 2003. 2. ed. pp.475-476)

 

Verifica-se, portanto, que o estabelecimento de uma linha fronteiriça pressupõe a existência de comunidades humanas relativamente sedentárias e ligadas a uma entidade estatal. A operação completa de determinação da linha fronteiriça compõem-se de várias fases.

A primeira é a fase de delimitação, operação jurídica e política que fixa a extensão espacial dos poderes estatais. A segunda é a demarcação, operação técnica de execução que transfere para o terreno os termos de uma delimitação estabelecida. A terceira e última fase consiste na implantação das extremas, operação que materializa a fronteira no terreno por referências concordadas.

Fazendo novamente remissão a Nguyen Quoc Dinh, Patrick Dailer e Alain Pellet:

 

“Os espaços marítimos e aéreos sob a jurisdição dos Estados são limítrofes ora de territórios de outros Estados, ora de espaços abertos para a utilização comum. A sua delimitação responde portanto em parte a considerações diferentes das que se impõem para os territórios terrestres.” (op. cit. p. 485)

 

A fronteira entre os dois Estados foi fixada por dois acordos, de 1952 e 1954. O Peru, que em 2008 levou o caso à CIJ, pedia ao tribunal que delimitasse a fronteira marítima com o vizinho de acordo com uma linha equidistante, com o que ganharia 35 mil quilômetros quadrados de águas no Oceano Pacífico.

De fato, a incerteza sobre o traçado das fronteiras é a fonte de um contencioso internacional importante: trata-se de um problema de soberania extremamente sensível, cuja resolução concreta é fundamental, haja vista que é a própria extensão da soberania territorial do Estado que está em causa.

Com a decisão da CIJ, os peruanos ganharam 22.500 quilômetros de mar na zona econômica chilena – mais da metade do que reclamavam inicialmente. A sentença deve encerrar um dos últimos conflitos territoriais da América do Sul.

“A Corte estabelece que a fronteira segue uma linha paralela até as 80 milhas e, a partir daí, adquire uma direção sul até um ponto B, descendo (em linha reta e à altura das 200 milhas) até um ponto C”, disse o presidente da CIJ, Peter Tomka.

O relatório da decisão, lido ao longo de duas horas por Peter Tomka, não estabeleceu, no entanto, as coordenadas precisas da nova fronteira, o que era reivindicado por Chile e Peru. Segundo o a CIJ, os dois Estados podem determinar os limites sozinhos.

Segue o mapa da disputa:

mapa

 

Álvaro Castelo Branco, Advogado da União.