A “Lei de Anistia” e sua recepção pelo ordenamento jurídico: novos apontamentos em decorrência do “Caso Gomes Lund” e do Parecer nº. 4.433/2014, da Procuradoria-Geral da República

Nos comentários de hoje, iremos tratar de um importante tema que envolve direitos fundamentais e proteção internacional dos direitos humanos, trazido, mais uma vez, à discussão, em razão do Parecer nº. 4.433/2014, da PGR, por meio do qual se busca uma reinterpretação do precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a ADPF nº. 153/DF, com base no que restou decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no “Caso Gomes Lund”, em 2010.

Em princípio, é necessário lembrar que os países latino-americanos vivenciaram, na segunda metade do século passado, regimes autoritários ditatoriais, que deixaram encravada na sociedade uma cultura de violência e impunidade, bem como uma precária tradição de respeito aos direitos humanos.[1]

Nesse contexto histórico, especialmente na fase de transição política para os regimes democráticos, na década de 1980, foram elaboradas e promulgadas pelos Estados as chamadas leis de “autoanistia”, elaboradas e promulgadas por Estados, com o fim de livrar da persecução penal crimes políticos cometidos por seus agentes durante um período de instabilidade institucional. No Brasil, foi elaborada a Lei nº. 6.683/79 (“Lei de Anistia”), por meio da qual se concedeu anistia aos que cometeram crimes políticos, ou conexos com estes, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Vale observar, nesse sentido, o que diz o art. 1º, caput e §1º, da Lei nº. 6.683/79:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

Em face dos dispositivos legais transcritos, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) ajuizou, em 21/10/2008, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 153, mediante a qual pugnava pela declaração de não recepção, pela Constituição Federal de 1988, do quanto disposto no art. 1º, §1º, da Lei nº. 6.683/79. Isto porque entendia que a previsão do parágrafo primeiro não poderia abranger os agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores do regime militar.

Contudo, o STF, de maneira contrária a parte da doutrina e ao entendimento sustentado pelo CFOAB, entendeu, em 29/04/2010, que a “Lei da Anistia” é compatível com a Constituição Federal de 1988. Baseou-se no fato de que a anistia por ela concedida foi “ampla e geral”, alcançando crimes de qualquer natureza praticados pelos agentes da repressão no período da ditadura militar.

Ao assim decidir, a Suprema Corte contrariou posicionamento consolidado no âmbito da CIDH[2], segundo a qual, em razão de tais leis representarem negativa de vigência ao acesso à justiça, à dignidade da pessoa humana, ao direito à verdade e ao acesso à informação, a autoanistia é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Desse modo, os países em cujos ordenamentos jurídicos haja esse tipo de lei devem reconhecer sua invalidade ou não recepção, tendo em vista que:

“(…) as leis de “autoanistia” perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. As leis de anistia configurariam, assim, um ilícito internacional, e sua revogação, uma forma de reparação não pecuniária”[3]

Além disso, em 24/11/2010, portanto em momento posterior ao julgamento realizado no âmbito do STF, a CIDH apreciou o “Caso Gomes Lund” e, reiterando sua jurisprudência, condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de 1970. Decidiu, ainda, que a lei brasileira não passa pelo controle de convencionalidade, sendo, portanto, incompatível com a CADH.

Ora, conforme vimos no artigo passado, o Estado brasileiro reconheceu a competência da CIDH para julgamento de violações a direitos humanos, conforme se pode observar no Decreto Legislativo nº. 89/98. Assim, tendo em vista que a decisão proferida pela CIDH o foi em momento posterior àquele em que apreciada a ADPF nº. 153/DF pelo STF, atualmente a questão suscita debates.

É necessário destacar que o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou, em 15/05/2014, a ADPF nº. 320/DF, a fim de que a Corte revise seu entendimento firmado na ADPF nº. 153/DF, diante do julgamento da CIDH no “Caso Gomes Lund”, bem como declare que a “Lei de Anistia” não se aplica aos autores de crimes continuados ou permanentes (a exemplo dos crimes de sequestro e de desaparecimento forçado).

Manifestando-se acerca da ADPF ajuizada pelo PSOL, o Procurador-Geral da República emitiu, em 28/08/2014, o Parecer nº. 4.433[4], por meio do qual se posiciona em sentido contrário àquele em que o PGR anterior havia se manifestado na ADPF nº. 153/DF. Segundo entendimento firmado no referido Parecer, deve ser reconhecida a validade e o efeito vinculante da decisão da CIDH no “Caso Gomes Lund”, tendo em vista a esta Corte caber o exercício legítimo do controle de convencionalidade. Além disso, com base em precedentes do próprio STF, defende que se atribua a natureza de crime permanente aos sequestros cujas vítimas não tenham sido localizadas, de maneira a afastar a incidência das regras penais de prescrição e, portanto, permitir a persecução penal dos responsáveis por tais crimes.

Feitas essas considerações, para fins de concurso, o entendimento do STF permanece sendo aquele esboçado no âmbito da ADPF nº 153/DF, no sentido de que a Lei nº. 6.683/79 foi recepcionada pela ordem constitucional instaurada com a CF/88 e, assim, aplica-se indistintamente aos militares e àqueles que combateram o regime ditatorial. Contudo, vale destinar a devida atenção ao processamento da ADPF nº. 320/DF, especialmente devido à possibilidade de que o STF venha a revisitar o seu entendimento anterior.

Abraços e até a próxima!

Rodolfo Lopes, Procurador Federal.

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[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 133.

[2] Por exemplo, o que restou decidido nos casos Barrios Altos e Almonacid Arellano.

[3] Trecho do julgamento da CIDH no “Caso Almonacid Arellano” extraído de PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 161.

[4] Disponível em: <https://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4574695>