A responsabilidade objetiva na antecipação da tutela e o recebimento de benefícios previdenciários: uma visão sobre a evolução do posicionamento do STJ

  1. Introdução

O Código de Processo Civil, desde 1994, passou a permitir no procedimento ordinário a concessão da antecipação dos efeitos da tutela nos termos do art. 273, desde que houvesse o preenchimento das hipóteses constantes do texto normativo. Vale frisar que, de qualquer forma, nos termos do §4º do art. 273 do CPC, a antecipação dos efeitos da tutela pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo por meio de decisão fundamentada.

Uma vez concedida, poderá ela ser executada provisoriamente, consoante o art. 273, §3º, quando observará, no que couber e conforme a sua natureza, as normas previstas nos arts. 475-O, 461, §§ 4º e 5º e o art. 461-A, todos do CPC. No entanto, tendo em vista a sua natureza provisória, é possível que a decisão seja reformada, conforme adiantado. Nesses casos, conforme o art. 475-O, do CPC, essa execução corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exequente e, uma vez reformada a sentença, deverá reparar os danos sofridos pelo executado.

É, então, caso de configuração de responsabilidade objetiva do exequente, independendo de dolo ou culpa. Consoante lecionam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, “Basta o fato objetivo da revogação aliado ao dano para responsabilização do demandante”[1]. Como bem já afirmou o STJ, “A revogação da tutela importa retorno imediato ao statu quo anterior”[2].

  1. O caso do recebimento de benefícios previdenciários

A responsabilidade objetiva é a regra para os casos de antecipação dos efeitos da tutela. Essa era, também, a regra para os casos de concessão de benefício previdenciário, ou para impor o acréscimo de vantagem em pensão ou aposentadoria. Assim, uma vez reformada a decisão, impunha-se a devolução dos valores recebidos, o que incluiria valores pagos pela Administração Pública em virtude de decisão judicial provisória.[3]

Essa posição, no entanto, começou a ser modifica a partir do leading case proferido no Resp. 991.030, que afirmou o seguinte “O pagamento realizado a maior, que o INSS pretende ver restituído, foi decorrente de decisão suficientemente motivada, anterior ao pronunciamento definitivo da Suprema Corte, que afastou a aplicação da lei previdenciária mais benéfica a benefício concedido antes da sua vigência. Sendo indiscutível a boa-fé da autora, não é razoável determinar a sua devolução pela mudança do entendimento jurisprudencial por muito tempo controvertido, devendo-se privilegiar, no caso, o princípio da irrepetibilidade dos alimentos.[4].

A ratio decidendi ou os motivos determinantes desse precedente foram a constatação de que, em caso de matéria previdenciária, a questão da responsabilidade objetiva não restaria configurada. É que, tendo em vista tanto a irrepetibilidade dos alimentos, bem como a questão da confiança legítima no recebimento de tais valores, seria o caso de privilegiar a situação do particular em detrimento do poder público. No entanto, frise-se que, no caso citado, a não repetição dos valores teria por base o fato de que a tutela antecipada teria sido concedida com base em entendimento que ainda era controvertido, caso em que a orientação no sentido contrário só teria sido firmada posteriormente. Além do mais, ainda constou a discussão sobre a boa-fé da autora que teria sido admitida de forma indiscutível.

Seria, assim, uma situação excepcional, não devendo ser generalizada, dependendo, sempre, da verificação do caso concreto[5].

Na sistemática dos precedentes, é sempre importante o cuidado no seu manejo, de forma que, para a aplicação de uma ratio decidendi construída em caso anterior, deve ser verificada detalhadamente a hipótese fática que permitiu a construção da solução do caso concreto. Na questão ora analisada, os fundamentos determinantes do Resp 991.030, seriam a configuração da confiança legítima do jurisdicionado pela existência de um julgamento controvertido acerca da matéria. Não seria, portanto, o mero fato de que nas questões previdenciárias não haveria necessidade de devolução dos valores. Para que se invoque o precedente formado no Resp 991.030, haveria a necessidade de identidade de fundamentos determinantes.

No entanto, o STJ simplesmente ignorou a particularidade existente no Resp 991.030, considerando que no caso teria sido decidido que, em questões relativas a benefícios previdenciários, não deveria haver o retorno à situação anterior. Em um precedente específico, afirmou-se que “a Terceira Seção desta Corte, no julgamento do REsp nº 991.030/RS, Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, acórdão pendente de publicação, decidiu que esse entendimento comporta temperamentos quando a controvérsia envolver benefício previdenciário, notadamente em razão de seu caráter nitidamente alimentar, incidindo, na hipótese, o princípio da irrepetibilidade.”.[6]

Esse entendimento acabou por se consolidar no STJ, a despeito do fato de que, no leading case, para a adoção da impossibilidade houvesse toda uma situação específica.[7]

No entanto, em outubro de 2013, houve o overruling desse precedente, passando a entender que a devolução seria, sim, devida. No Recurso Especial 1.384.418, o STJ passou a entender que haveria a necessidade de devolução dos valores recebidos a título de antecipação de tutela, mesmo nos casos de recebimento de benefícios previdenciários.

Embora a corte tenha reconhecido o caráter alimentar e a existência da boa-fé subjetiva, “Do ponto de vista objetivo, por sua vez, inviável falar na percepção, pelo segurado, da definitividade do pagamento recebido via tutela antecipatória, não havendo o titular do direito precário como pressupor a incorporação irreversível da verba ao seu patrimônio”. Para que houvesse tal modificação, utilizou-se o tribunal do art. 3º da LIDB, o qual aponta “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” e a própria legislação processual impõe essa devolução.

Portanto, seria “desproporcional o Poder Judiciário desautorizar a reposição do principal ao Erário em situações como a dos autos, enquanto se permite que o próprio segurado tome empréstimos e consigne descontos em folha pagando, além do principal, juros remuneratórios a instituições financeiras”.

Inclusive, o próprio tribunal, a partir da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, estabeleceu os critérios para a devolução desses valores: “a) a execução de sentença declaratória do direito deverá ser promovida; b) liquidado e incontroverso o crédito executado, o INSS poderá fazer o desconto em folha de até 10% da remuneração dos benefícios previdenciários em manutenção até a satisfação do crédito, adotado por simetria com o percentual aplicado aos servidores públicos (art. 46, § 1º, da Lei 8.213/1991”.[8]

Recentemente, após a mudança de entendimento, o mesmo tribunal optou por criar uma exceção à necessidade de devolução desses valores. No informativo 536, publicado no dia 26 de março de 2014, apontou a Corte Especial do STJ que a necessidade de devolução desses valores não seria exigida caso a decisão de antecipação da tutela fosse realizada apenas por meio de Recurso Especial ou Extraordinário.

De acordo com o precedente, a dupla conformidade, ou seja, a confirmação do precedente pelo tribunal de segundo grau, somados ao fato de tais recursos serem “de fundamentação vinculada, em que é vedado o reexame de fatos e provas, além de, em regra, não possuírem efeito suspensivo” criaria no vencedor “a legítima expectativa de que é titular do direito reconhecido na sentença e confirmado pelo tribunal de segunda instância”.

A título de reforço ainda se afirmou que “cabe destacar que a própria União, por meio da Súmula 34 da AGU, reconhece a irrepetibilidade da verba recebida de boa-fé, por servidor público, em virtude de interpretação errônea ou inadequada da Lei pela Administração”. Portanto, a devolução dos valores quando a reforma ocorresse apenas nos tribunais superiores iria violar a dignidade da pessoa humana pela pressuposição de que os valores foram utilizados na subsistência da família e também abalaria a confiança que se espera haver dos jurisdicionados nas decisões judiciais.[9]

Ocorre então, que, muito embora o STJ tenha passado a exigir a devolução dos valores recebidos por meio de tutela antecipada de valores previdenciários em caso de reforma da decisão, este entendimento já foi excepcionado. Essa exceção seria no caso de a decisão ser confirmada pelo tribunal, só vindo a ser reformada pelo STJ ou pelo STF, por meio dos recursos excepcionais. Para a corte especial, nesses casos,essa expectativa legítima de titularidade do direito, advinda de ordem judicial com força definitiva e confirmada também em segundo grau, é suficiente para caracterizar a boa-fé exigida de quem recebe a verba de natureza alimentar posteriormente cassada, porque, no mínimo, confia no acerto do duplo julgamento.

Assim, a regra passa a ser a necessidade da devolução de benefícios previdenciários quando a decisão de concessão seja reformada, exceto quando a sentença seja confirmada pelo tribunal e a reforma só vier a ocorrer por meio dos recursos excepcionais.

Ravi Peixoto, Procurador do Município de João Pessoa.

[1]     MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil anotado artigo por artigo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 274. Ainda sobre a questão, cf.: MARINONI, Luis Guilherme. Antecipação da tutela. 10 ªed. São Paulo: RT, 2008, p. 207-272.

[2]     STJ, REsp 541.544/SP, 4ª T., Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 16/05/2006, DJ 18/09/2006, p. 32.

[3]     STJ, REsp 725.118/RJ, 6ª T., Rel. Min. Paulo Gallotti, j. 09/12/2005, DJ 24/04/2006, p. 477.

[4]     STJ, REsp 991.030/RS, 3ª Seção, Rel. Min. Maria Thereza de Assis, j. 14/05/2008, DJe 15/10/2008.

[5]     CUNHA, Leonardo Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 10ª ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 277.

[6]     STJ, AgRg no REsp 1.053.868/RS, 6ª T., Rel. Min. Paulo Gallotti, j. 01/07/2008, DJe 25/08/2008

[7]     STJ, AgRg no AREsp 102.008/MT, 1ª T., Rel. Min. Arnaldo Esteves, j. 11/12/2012, DJe 17/12/2012. No mesmo sentido: STJ, AgRg no AREsp 277.050/MG, 2ª T., Rel. Min. Humberto martins, j. 25/06/2013, DJe 01/08/2013; STJ, AgRg no REsp 1139837/SP, 5ª T., Rel. Min. Jorge Mussi,  j. 07/02/2013, DJe 12/03/2013; STJ, AgRg no AREsp 252.190/RS, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins, j. 11/12/2012, DJe 18/12/2012; STJ, AgRg no AREsp 241.163/RS, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins, j. 13/11/2012, DJe 20/11/2012.

[8]     STJ, REsp 1.384.418/SC, 1ª Seção, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 12/06/2013, DJe 30/08/2013. No mesmo sentido: STJ, AgRg no AgRg no REsp 1.360.828/PR, 2ª T., Rel. Min. Herman Bejamin,  11/02/2014, DJe 07/03/2014; STJ, EDcl no AgRg no AREsp 277.050/MG, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins, j. 03/09/2013, DJe 11/09/2013.

[9]     STJ, EREsp 1.086.154-RS, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/11/2013, publicado no informativo 536.