Evolução do Direito Processual Civil – parte 3

Olá, saudações a todos.

Nesse último post sobre a teoria da evolução do Processo Civil falaremos sobre a fase instrumentalista do processo, finalizando o ciclo em que abordamos o imanentismo (parte 1) e o autonomismo (parte 2).

Entretanto, para melhor entender o surgimento do instrumentalismo, é imperioso tecer comentários acerca da evolução dos direitos fundamentais e a conseqüente necessidade de alteração da sistemática processual até então vigente.

Como comentado acima (1.2), as transformações ocorridas no processo civil foram derivadas do caráter aguerrido e transformador do Século das Luzes. O movimento iluminista tinha caráter eminentemente burguês: os capitalistas se insurgindo contra a sociedade estagnada da Monarquia. A grande luta dos burgueses daquela época era expurgar os privilégios dos nobres e da Igreja, estabelecendo uma igualdade formal entre as classes, ou seja, que todos fossem regidos por leis – normas de caráter geral e abstrato – restringindo, assim, o poder absoluto dos reis desse período. Assim surgem os direitos fundamentais de primeira geração[1] ou os direitos de liberdade, chamados ainda de liberdades constitucionais, que impunham limites ao poder antes irrestrito dos soberanos, sendo assim caracterizados pelo grande mestre cearense Paulo Bonavides, in litteris:

“Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.

Entram na categoria do status negativus da classificação de Jellinek e fazem também ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos de liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal do teor clássico.

São por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual”[2].

Entretanto, pelo curso do século XIX e início do século passado, inspirados por idéias socialistas, foram tecidas diversas críticas à não-intervenção estatal nos meios sociais. A igualdade posta na lei era meramente formal, sendo que o baixo nível das condições econômico-sociais impedia a maioria da população de usufruir destes direitos de liberdade postos.

Surgem desse anseio por ações positivas do Estado, contrapondo-se à visão liberalista, os direitos de segunda geração. Os princípios da legalidade e da igualdade passam a ter nova perspectiva, de cunho material, estabelecendo uma igualdade aristotélica: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.

Entretanto, a evolução do homem não se limitou a tais direitos, como leciona o ilustre constitucionalista Paulo Bonavides, verbo ad verbum:

“A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que se assenta sobre a fraternidade, conforme assinala Karel Vasak, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção específica de direitos individuais ou coletivos.

Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz[3], ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade”[4]

Os direitos de quarta geração (direito à democracia, à informação e ao pluralismo) e aos de quinta geração (direito à paz) demonstram a tendência universalizante dos direitos humanos, ultrapassando as fronteiras dos Estados atuais. Faz-se somente essa breve menção a tais dimensões, haja vista refugir ao abordado no tema deste post.

Enfim, essa avalanche de direitos novos, surgida na segunda metade do século XX, atingiu brutalmente o processo civil clássico, pois os procedimentos previstos nos Códigos não estavam aptos a receberem essas demandas recentes. A sociedade de massa cria demandas de massa, sufocando ainda mais o já prejudicado Poder Judiciário, com sua estrutura já debilitada para resolver os conflitos individuais.

O apego ao formalismo e os estudos processualísticos introspectivos evitavam que os direitos fundamentais pudessem ser devidamente efetivados. Nesse quadro, surge o instrumentalismo. Nas sábias palavras de Dinamarco:

“Com tudo isso, chegou o terceiro momento metodológico do direito processual, caracterizado pela consciência da instrumentalidade como importantíssimo pólo de irradiação de idéias e coordenador dos diversos institutos, princípios e soluções. O processualista sensível aos grandes problemas jurídicos sociais e políticos do seu tempo e interessado em obter soluções adequadas sabe que agora os conceitos inerentes à sua ciência já chegaram a níveis mais do que satisfatórios e não se justifica mais a clássica postura metafísica consistente nas investigações conceituais destituídas de endereçamento teleológico. Insistir na autonomia do direito processual constitui, hoje, como que preocupar-se o físico com a demonstração da divisibilidade do átomo. Nem se justifica, nessa quadra da ciência processual, pôr ao centro das investigações a polêmica em torno da natureza privada, concreta ou abstrata da ação; ou as sutis diferenças entre a jurisdição e as demais funções estatais, ou ainda a precisa configuração conceitual do jus excepcionis e sua suposta assimilação à idéia de ação. O que conceitualmente sabemos dos institutos fundamentais deste ramo jurídico já constitui suporte suficiente para o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema jurídico-processual apto a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica”[5].

O processo, nessa nova visão epistemológica, é instrumento de efetivação dos direitos oriundos do ordenamento jurídico, sejam eles positivados ou não. O processo não pode encontrar-se dissociado do direito material o qual visa tutelar. A processualística é uma ciência autônoma, não há dúvidas disso, mas a relação processual não é alheia à relação jurídica material, posto que, sem esta, aquela não existiria.

Como instrumento, o processo então é meio; e este só é tal e legitima-se em função dos fins a que se destina. Assim, a afirmação de que o processo é instrumento sem a definição dos seus escopos (objetivos norteadores) acaba por se tornar vaga e sem acréscimos ao conhecimento[6]. Em suma, nos próprios dizeres de Dinamarco, “a perspectiva instrumentalista do processo é teleológica por definição e o método teleológico conduz invariavelmente à visão do processo como instrumento predisposto à realização dos objetivos eleitos”[7].

O catedrático paulista demonstra três escopos da jurisdição: sociais, políticos e jurídico. Os escopos sociais são a pacificação com justiça e a conscientização da sociedade para seus direitos e obrigações. Quanto aos escopos políticos, a fim de estabelecer sua amplitude, valeremo-nos novamente das sábias lições do processualista da Universidade de São Paulo, litteratim:

“São fundamentalmente três aspectos. Primeiro, afirmar a capacidade estatal de decidir imperativamente (poder), sem a qual nem ele mesmo se sustentaria, nem teria como cumprir os fins que o legitimam, nem haveria razão de ser para o seu ordenamento jurídico, projeção positivada do seu poder e dele próprio; segundo, concretizar o culto ao valor liberdade, com isso limitando e fazendo observar os contornos do poder e do seu exercício, para a dignidade dos indivíduos sobre as quais ele se exerce; finalmente, assegurar a participação dos cidadãos, por si mesmos ou através de suas associações, nos destinos da sociedade política”[8].

Por fim, estabelecer qual a posição do processo dentro do ordenamento jurídico e sua relação com o direito material consubstancia o escopo jurídico. Nessa visão do processo, os avanços obtidos na fase conceitual são retomados e aprimorados, com o fito de adequar o processo aos novos anseios sociais. Duas teorias se degladiam para explicar o escopo jurídico do processo: a teoria unitária de Carnelutti (justa composição da lide) e a teoria dualista de Chiovenda (atuação da vontade concreta da lei). Infelizmente, ante a brevidade dessa postagem, que já não é tão breve assim, e a complexidade do tema, não poderemos adentrar nesse mérito.

Estabelecidos seus objetivos norteadores, cumpre à técnica processual efetivá-los. O instrumentalismo adquire, nessa perspectiva, duas facetas: uma de cunho negativo e uma de cunho positivo.

O aspecto negativo corresponde a um fator de contenção de exageros e distorções da processualística, evitar que ela se feche em si. Seria, portanto, a relativização do binômio substancial-processual, restringindo a postura eminentemente técnica e autônoma do processo.

O aspecto positivo está ligado à efetividade do processo, devendo este estar apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda a plenitude todos os seus escopos institucionais[9]. Nesse ponto, importante foram os avanços alcançados com o princípio do acesso à justiça, instituindo-se assim novos regramentos tendentes a efetivar cada vez mais as novas dimensões dos direitos fundamentais. Como exemplo dessas transformações, podem ser citadas as leis dos Juizados Especiais Estaduais e Federais (Leis 9.099, de 26 de setembro de 1995 e 10.259, de 12 de julho de 2001), o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347, de 24 de julho de 1985), entre outras.

Cândido Rangel Dinamarco, com sua costumeira argúcia, após expor de forma brilhante a concepção instrumentalista do processo, lança a seguinte advertência, verbo ad verbum:

“Agora, mãos à obra: é preciso, (a) de um lado, dotar o sistema de instrumental bastante ágil e rente à realidade e (b) de outro, influir no espírito dos operadores do sistema, para que empreguem o novo instrumental e também o velho, com mentalidade nova. Sem mentalidade instrumentalista nos juízes, advogados e promotores de justiça, não há reforma que seja capaz de ter alguma utilidade”[10].

E assim, com essa exortação ao aprimoramento da técnica processual, finalizamos nosso ciclo de estudos acerca da evolução do Processo Civil, com as três grandes fases metodológicas: imanentismo (parte 1), autonomismo (parte 2) e instrumentalismo, tema desta postagem.

Abraços a todos, bons estudos e até a próxima!

Rodrigo Bentemuller

[1] O termo “geração”, que será amplamente utilizado nesse trabalho monográfico, não escapou às críticas do ilustre Paulo Bonavides: “Força é dirimir, a essa altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia;” In: Curso.., p. 571-572.

[2] op. cit., p. 563-564.

[3] Este, particularmente, foi elevado a direito de 5ª geração.

[4] op. cit., p. 569.

[5] DINAMARCO, A Instrumentalidade.., p. 22-23.

[6] DINAMARCO, A Instrumentalidade.., p. 177.

[7] Id., p. 178.

[8] Id., p. 198.

[9] Id., p. 319.

[10] Id., p. 379.

 

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