FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL – ARTIGO 185, DO CTN

O Código Tributário Nacional, com o intuito de prever alguns institutos protetivos ao fisco e possibilitar uma maior efetividade na recuperação do crédito público, dispõe, em seu Capítulo VI, sobre as garantias e privilégios do crédito tributário. Abordaremos o instituto da fraude à execução fiscal, previsto no artigo 185, do CTN, traçando-se um paralelo com a regulamentação aplicada à execução no âmbito cível e o entendimento jurisprudencial.

FRAUDE CONTRA CREDORES E FRAUDE À EXECUÇÃO

Quando se fala em fraude do devedor, costuma-se lembrar da clássica distinção feita, no âmbito cível, entre fraude contra credores e fraude à execução. Rememorando, de forma sintética, a fraude contra credores é regulada pelo direito material (artigos 151 a 165, do Código Civil) e corresponde a um defeito do negócio jurídico que ocorre quando um devedor insolvente ou perto da insolvência pratica atos com o intuito de se desfazer de seus bens em prejuízo a credores que ainda não ingressaram em juízo buscando a satisfação da obrigação. Em regra, para caraterização da fraude contra credores, faz-se necessária a presença de dois elementos, o eventos damni (dano), que corresponde ao prejuízo causado ao credor, e o consilium fraudis, o conluio fraudulento entre o alienante e o adquirente, devendo o credor ajuizar a ação pauliana (ou revocatória), objetivando a anulação do negócio jurídico.

A fraude à execução, por sua vez, é instituto de direito processual, previsto no Código de Processo Civil (artigo 593), consistindo na alienação ou oneração de bens quando pendente ação fundada em direito real; demanda capaz de reduzir o devedor em insolvência; ou em outros casos legais. Ou seja, diferentemente da fraude contra credores, a alienação ou oneração dos bens ocorre quando já existe um processo judicial capaz de levar à insolvência o devedor, violando-se, assim, não só o direito do credor, mas o próprio processo, consistindo em verdadeiro ato atentatório à dignidade da justiça, previsto no art. 600, do CPC. Pode-se combater referida fraude com pedido incidental, nos próprios autos judiciais, para que seja reconhecida a ineficácia daquela alienação/oneração fraudulenta em face do credor. Ou seja, o negócio jurídico fraudulento se torna ineficaz perante o credor, que pode requerer, por exemplo, a penhora do bem para satisfazer o seu crédito, restando ao adquirente, apenas, eventual ação contra o devedor alienante.

Com o intuito de proteger o adquirente de boa-fé, o Superior Tribunal de Justiça, indo além do que dispõe o Código de Processo Civil, dispôs, por meio do Enunciado de Súmula nº 375, que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Ou seja, segundo o STJ, apenas é reconhecida a fraude à execução em duas hipóteses: a) em processo judicial, já tendo ocorrido a penhora sobre um determinado bem, com o respectivo registro, o devedor aliena este bem a terceiro; b) em processo judicial, o bem seja alienado a um adquirente comprovadamente de má-fé, independentemente de prévia penhora registrada.

FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL

Em sede de execução fiscal, o instituto da fraude à execução, regulado pelo artigo 185, do CTN, possui requisitos bastante diversos. Conforme dispunha referido dispositivo, em sua redação original:

Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados pelo devedor bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida em fase de execução.

Ou seja, caracterizaria a fraude à execução fiscal a alienação ou oneração de bens por devedor de crédito já inscrito em dívida ativa e que se encontra em cobrança judicial, por meio da execução fiscal, desde que não tenha reservado bens suficientes ao pagamento da dívida. Interpretando mencionado dispositivo, entende o STJ que não basta o ajuizamento da execução fiscal, devendo o devedor já ter sido citado, para caracterizar a fraude à execução fiscal.

Ocorre que, visando aumentar a proteção ao crédito público, a Lei Complementar nº 118/2005 trouxe nova configuração ao referido dispositivo, dispondo que “presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa” (art. 185, CTN), salvo se tenham “sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita”. (parágrafo único do art. 185, do CTN).

Com a mencionada alteração, suprimiu-se a necessidade de o débito estar em fase de execução (e citação do devedor), bastando, apenas, para configuração da fraude, que a alienação/oneração tenha sido realizada em momento posterior à inscrição em dívida ativa.

Mas o que seria um crédito tributário regularmente inscrito em dívida ativa? A inscrição corresponde a um ato de controle administrativo da legalidade (Art. 2º, §3º, LEF), por meio do qual um débito, vencido e não-pago, é cadastrado para controle e cobrança em dívida ativa. Ou seja, de forma simples e sintética, sem apego às formalidades dos normativos pertinentes, exemplifica-se: imagine, de forma hipotética, que o contribuinte praticou um fato gerador referente a um tributo federal e sobre ele se omitiu, não emitindo declaração ou procedendo ao pagamento. A Receita Federal, por meio de auto de infração, constata tal irregularidade e procede ao lançamento de ofício. No âmbito deste processo administrativo, é oportunizada a defesa ao contribuinte, que é intimado a pagar ou apresentar eventual impugnação. Mantendo-se inerte ou esgotadas as instâncias administrativas recursais, concluindo-se pela existência do débito e sua constituição definitiva, o contribuinte é intimado para pagá-lo. Novamente, não o fazendo, é encerrada a cobrança administrativa pela Receita Federal, que encaminha este débito vencido e não pago à Procuradoria da Fazenda Nacional para inscrevê-lo em dívida ativa, ou seja, para cadastrá-lo no sistema, por meio do Termo de Inscrição (§5º, do artigo 2º, da LEF), atribuindo-lhe um número de inscrição e apurando a legalidade e regularidade de todos os elementos que o compõe, bem como do procedimento de sua constituição. A partir da inscrição, poderá ser extraída a certidão de dívida ativa, que consiste em título executivo extrajudicial (art. 585, VII, do CPC), apto a lastrear o ajuizamento da execução fiscal.

Assim, observa-se que a inscrição em dívida ativa ocorre em momento anterior à execução fiscal, motivo pelo qual a norma ora comentada acabou por aumentar a proteção ao crédito público, possibilitando reconhecer como fraudulentos os negócios jurídicos realizados antes mesmo do ajuizamento ou da citação do devedor em execução.

Por fim, note-se que, assim como no âmbito cível, a fraude à execução fiscal conduz à ineficácia do negócio jurídico perante o credor, podendo ser alegada de forma incidental nos autos. Ademais, a alegação de fraude pode ser afastada caso se comprove que o executado tenha reservado bens/rendas suficientes ao pagamento total do débito inscrito.

OBSERVAÇÕES IMPORTANTES: RECURSO REPETITIVO RESP Nº 1.141.990/ PR [I]

Conceituada a fraude à execução fiscal e delineadas as principais diferenças em relação aos institutos correlatos no âmbito cível, é de fundamental importância, sobre o tema, analisar o decidido no Recurso Repetitivo REsp nº 1.141.990/PR.

Questionou-se, por muito tempo, se, por se tratar de espécie de fraude à execução, deveria à fraude à execução fiscal obedecer aos requisitos estabelecidos na Súmula nº 375, do STJ. Respondendo à referida pergunta, o STJ, por meio do Recurso Repetitivo acima mencionado, entendeu pela inaplicabilidade deste enunciado de súmula às execuções fiscais, sob o argumento de ser o instituto fiscal regulado por lei especial sobre a matéria, prevalecendo, portanto, sobre a regra geral do âmbito cível. Assim, no que tange à fraude à execução fiscal, não se exigem os requisitos da prévia penhora registrada ou da prova da má-fé, a fraude é presumida de forma absoluta (jure et de jure)a partir da mera alienação/oneração após a inscrição em dívida ativa, devendo-se comprovar apenas este requisito temporal objetivo. Ademais, definiu a Corte que “a diferença de tratamento entre a fraude civil e a fraude fiscal justifica-se pelo fato de que, na primeira hipótese, afronta-se interesse privado, ao passo que, na segunda, interesse público, porquanto o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas”.

Referido decisório fixou, ainda, o marco temporal da aplicação do artigo 185, do CTN, em sua nova ou em sua antiga redação. Segundo o STJ, deve-se levar em consideração o momento da alienação/oneração. Se o negócio jurídico fora praticado antes de 08.06.2005 (data em que a LC 118/2005 entrou em vigor), aplica-se a redação anterior do dispositivo, exigindo-se a prévia citação na execução fiscal para caracterizar a fraude; se praticado após 08.06.2005, o negócio é fraudulento se realizado após a inscrição em dívida ativa, independentemente da existência de execução fiscal.

Assim, conforme conclusão do referido julgado: (a) a natureza jurídica tributária do crédito conduz a que a simples alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, pelo sujeito passivo por quantia inscrita em dívida ativa, sem a reserva de meios para quitação do débito, gera presunção absoluta (jure et de jure) de fraude à execução (lei especial que se sobrepõe ao regime do direito processual civil); (b) a alienação engendrada até 08.06.2005 exige que tenha havido prévia citação no processo judicial para caracterizar a fraude de execução; se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118⁄2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude; (c) a fraude de execução prevista no artigo 185 do CTN encerra presunção jure et de jure, conquanto componente do elenco das “garantias do crédito tributário”; (d) a inaplicação do artigo 185 do CTN, dispositivo que não condiciona a ocorrência de fraude a qualquer registro público, importa violação da Cláusula Reserva de Plenário e afronta à Súmula Vinculante n.º 10, do STF.

Grande abraço e até a próxima.

Rodolfo Cursino, Procurador da Fazenda Nacional.

[I]https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=1020233&nreg=200900998090&dt=20101119&formato=HTML