Caros leitores do Blog Ebeji, conversaremos hoje sobre um assunto importante em matéria de Direito Civil, que são alguns aspectos parcelares (Flávio Tartuce) ou funções reativas (Cristiano Chaves) da boa-fé objetiva.

Antes de explorarmos os institutos que logo passarei a apresentar, qual é o conceito de boa-fé? Seria ela revelada a partir da investigação de aspectos psicológicos do sujeito ou pela análise comportamental?

A boa-fé subdivide-se em duas espécies: a subjetiva (que não se confunde com princípio), que significa um estado anímico do sujeito acerca da existência de um direito aparente, que não lhe assiste no caso concreto. Em síntese, é um estado psicológico (interno) da pessoa de, por exemplo, entender que exerce legítima posse em terras públicas, por ignorar essa qualidade. Esta abordagem da boa-fé tinha previsão no Código Civil Beviláqua (CC-1916).

De outro lado, a boa-fé objetiva, ou, simplesmente, princípio da boa-fé, de incidência no Direito Civil pátrio no campo das obrigações, com irradiação de seu aproveitamento no Direito contratual (inclusive nas fases pré e pós negocial) e na seara processual, volta seus olhos para o comportamento do indivíduo. Segundo as precisas lições de Cristiano Chaves, trata-se “da confiança adjetivada” (…) o princípio compreende um modelo de etização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de comportamento”. Sua previsão é expressa no CC-02 (v.g., art. 422) e em normativos do CPC-15 (art. 5º, que pode ser compreendido como cláusula geral).

Prosseguindo, de acordo com a doutrinadores modernos, especializados em Direito Civil, a boa-fé objetiva, de origem no Direito Germânico, apresenta facetas, standards, funções ou, ainda, aspectos parcelares para a verificação do abuso do direito, são eles: a) venire contra factum proprium, b) supressio/surrectio; c) duty to mitigate the loss; d) substancial performance; e) exceptio doli; f) tu quoque.

Em que pese a alta carga doutrinária do assunto, é inegável a sua aplicação prática e em fases objetivas e subjetivas de concursos que explorem as áreas de obrigações e contratos, em Direito Civil, bem como o Direito Processual Civil. Portanto, a adequada compreensão é fundamental para o bom desempenho!

a)De todos os corolários da boa-fé objetiva, sem dúvidas o venire contra factum é o mais conhecido e explorado, o que pode se justificar por seu tratamento, por parte da doutrina, como se gênero fosse. Decorrência da “teoria dos atos próprios”,consiste na quebra da confiança pela inovação, pela adoção de um comportamento contraditório, divorciado daquilo que se esperava do sujeito, a partir da análise de seu histórico comportamental.

Em julgamento interessante, o STJ afastou as alegações de contribuinte que sofria, no bojo de execução fiscal, constrição de imóveis colacionados na sociedade como forma de integralização do capital social, com averbação na Junta Comercial. A tese dos executados defendia a impossibilidade de repercussão dos efeitos da execução sobre os bens, por ausência de registro no ofício imobiliário, o que teria impedido a perfectibilização da propriedade em favor da pessoa jurídica.

Segundo a Corte da Cidadania, “não se ignora que, nos termos do art. 1.245, §1º, do Código Civil, ‘Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel”. Entrementes, lembrou que a Lei de Sociedades Anônimas, em seu art. 135, §1º, obsta que a falta de cumprimento de formalidades de alterações ultimadas nos estatutos societários seja invocada pela companhia ou seus acionistas contra terceiros deboa-fé. Ressaltou o Ministro Sérgio Kukina, prolator do voto vencedor, que“permitir que a alteração do contrato social (registrada na junta comercial) pudesse ser desconsiderada em sede de embargos de terceiros, após efetivada a penhora dos imóveis na execução fiscal movida contra a pessoa jurídica, equivaleria a ignorar a proibição do venire contra factumproprium.”(AgInt no AREsp 126.003/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/06/2017, DJe 29/06/2017).

b) O efeito jurídico decorrente do não exercício de um direito é desdobramento do princípio da boa-fé, que impede àquele que deixou de exercer um direito de romper com a expectativa criada na outra parte, pelo decurso de tempo razoável, vale dizer, de, posteriormente, exigir o cumprimento, o que configuraria desequilíbrio inadmissível e ato de deslealdade. Portanto, aquele que permaneceu inerte, não exercitando o direito, sofre supressioou verwirkung(modificação na situação jurídica com sinal negativo). Já o que foi beneficiado pelo não exercício experimenta surrectioou erwirkung(modificação na situação jurídica com sinal positivo). Atenção à nomenclatura adotada no Direito Alemão, que pode ser explorada em provas.

Exemplo positivado dos fenômenos supressio/surrectio bastante citado pela doutrina está contido no art. 330 do CC-02, que versa sobre a possibilidade de renúncia quanto ao lugar de adimplemento de uma obrigação. Também vemos a incidência dos institutos na execução contra a Fazenda Pública. O ato omissivo prolongado do credor em realizar o saque faz perecer a autorização contida no requisitório e, noutro giro, surgir o direito da Fazenda em reverter aos seus cofres a quantia em depósito. Note-se, na medida em que persiste o desinteresse, gradativamente, o beneficiário gera na devedora a expectativa de que dispôs do crédito, que não mais o reclamará. Este fato jurídico pode evoluir e consolidar o direito à reintegração à conta Única do Tesouro.

c) E o que seria o duty to mitigate the loss? Em termos objetivos, é a necessidade de o credor diligenciar para reduzir seu próprio prejuízo. Esse mesmo raciocínio foi agasalhado pelo enunciado n° 169 do CJF, na III Jornada de Direito Civil. O professor Flávio Tartuce extrai do postulado conexão do a cláusula stop loss(demarcação de um limite para as perdas que, se alcançado, gera a obrigação da instituição de negociar o ativo), presente em contratos de investimento. Na seara processual, vemos um exemplo de abuso de direito quando o exequente negligencia a adoção de atos executivos, com o objetivo de incrementar o valor das astreintes. O STJ já trabalhou com o dutytomitigatena específica situação da multa, cujo objetivo é a pressão psicológica do devedor (AgInt no AREsp 882.327/MG, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 16/05/2017).

d) substancial performance, ou adimplemento substancial ou, ainda, inadimplemento mínimo é função reativa que permite uma resistência do inadimplente em face do pleito de resolução contratual, quanto este estiver substancialmente quitado. Segundo ensina Cristiano Chaves, “é possível questionar a faculdade do exercício do direito potestativo à resolução contratual pelo credor, em situações caracterizadas pelo cumprimento de substancial parcela do contrato pelo devedor, mas em que, todavia, não tenha suportado adimplir pequena parcela”.

Acerca deste instituto e respeitando os propósitos deste artigo, gostaríamos de destacar uma mudança na jurisprudência do STJ sobre sua aplicação em face de pedidos de busca e apreensão, em contratos regidos pelo Decreto-Lei n° 911/69 (alienação fiduciária). Em julgados mais antigos, detecta-se o aproveitamento deste corolário da boa-fé, por parte do alienatário, para resistir à pretensão de reintegração de posse de instituições financeiras, consoante a exemplificativa ementa:

“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Deferimento liminar. Adimplemento substancial.Não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora.Recurso não conhecido.”(REsp 469.577/SC, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 25/03/2003, DJ 05/05/2003, p. 310)

Entrementes, a jurisprudência do STJ evoluiu desfavoravelmente aos devedores desta espécie de contrato. Em julgado publicado em 2015, frisou a Corte que:

“(…) A aplicação do referido instituto, porém, não tem o condão de fazer desaparecer a dívida não paga, pelo que permanece possibilitado o credor fiduciário de perseguir seu crédito remanescente (ainda que considerado de menor importância quando comparado à totalidade da obrigação contratual pelo devedor assumida) pelos meios em direito admitidos, dentre os quais se encontra a própria ação de busca e apreensão de que trata o Decreto-Lei nº 911/1969, que não se confunde com a ação de rescisão contratual – esta, sim, potencialmente indevida em virtude do adimplemento substancial da obrigação.” ((REsp 1255179/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/08/2015, DJe 18/11/2015)

O mesmo raciocínio foi repisado pela 2ª Seção, em julgado representativo de Controvérsia (REsp n. 1.418.593/MS) e em recente pronunciamento:

1.1 Além de o Decreto-Lei n. 911/1969 não tecer qualquer restrição à utilização da ação de busca e apreensão em razão da extensão da mora ou da proporção do inadimplemento, é expresso em exigir a quitação integral do débito como condição imprescindível para que o bem alienado fiduciariamente seja remancipado. Em seus termos, para que o bem possa ser restituído ao devedor, livre de ônus, não basta que ele quite   quase   toda   a dívida; é insuficiente que pague substancialmente o débito; é necessário, para esse efeito, que quite integralmente a dívida pendente.2. Afigura-se, pois, de todo incongruente inviabilizar a utilização da ação de busca e apreensão na hipótese em que o inadimplemento revela-se incontroverso desimportando sua extensão, se de pouca monta ou se de expressão considerável , quando a lei especial de regência expressamente condiciona a possibilidade de o bem ficar com o devedor fiduciário ao pagamento da integralidade da dívida pendente.(REsp 1622555/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/02/2017, DJe 16/03/2017.

Portanto, atualmente, não obstante a admissão da tese do inadimplemento mínimo pela doutrina e pela jurisprudência, o STJ, em interpretação ao DL n° 911/69, reputou insuficiente esta alegação, pelo devedor, como modo de resistir à busca e apreensão, ainda que o débito seja mínimo (uma parcela). Muita atenção a este tema!!

e) Na linha da doutrina de Flávio Tartuce, exceptio dolié conceituada como sendo a defesa do réu contra ações dolosas, contrárias a boa-fé”. Explica o professor que uma de suas aplicações é verificada por meio da exceptio non adimpleticontractus, que, como é de conhecimento, impede que se exija o cumprimento da obrigação pela parte que não conferiu cumprimento ao que pactuou.

f) Por derradeiro, o que se entende por tu quoque? Sintetização da célebre frase de Júlio César (tu quoque, Brute, fili mi?),ao se referir ao seu filho Brutus com surpresa, por também estar entre aqueles que o apunhalavam, significa que a parte que tenha gerado violação a uma determinada norma não pode, posteriormente, extrair proveito desta situação, por ela mesma criada, sob pena de conduta antiética, ofensiva à boa-fé objetiva. Este sentido, embasado em doutrina, também foi exposto pelo STJ, conforme trecho da ementa:

“Os ditames da boa-fé objetiva, especificamente, o tu quoque, encontra ressonância no artigo 565 do Código de Processo Penal, ao dispor que não cabe a arguição de nulidade pela própria parte que lhe deu causa ou que tenha concorrido para a sua existência” (RHC 63.622/SC, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 22/10/2015 (RHC 51.017/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 01/03/2016, DJe 21/03/2016).

Bons estudos a todos e atenção a este importante tema, principalmente à forma com que enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça!

 

Bruno Luiz Dantas de Araújo Rosa

Advogado da União