É com orgulho de todos os Procuradores da Fazenda Nacional que atuaram no caso (especialmente daqueles que vi de perto lutando para isso) e alegria que escrevo sobre a significativa mudança de orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF) ocorrida na sessão plenária do dia 18 de fevereiro de 2016 relativamente aos dispositivos da Lei Complementar (LC) nº 105/2001 e posteriores regulamentações, permitindo a transferência de dados bancários ao fisco sem necessidade de autorização judicial prévia.

O STF ainda não concluiu o julgamento da matéria, mas já se entende possível considerar a alteração jurisprudencial, tendo em vista já existir maioria de votos dos Ministros do STF favoravelmente à constitucionalidade do acesso, pelo fisco, a dados sobre movimentações financeiras, na forma da LC nº 105/2001. Em virtude da relevância do tema, acredito que pode ser cobrado nos concursos, em especial na prova oral do concurso de Procurador da Fazenda Nacional que se avizinha.

Vale, então, fazer alguns breves esclarecimentos sobre o julgamento em questão.

Iniciou-se o julgamento pelo STF de Recurso Extraordinário (RE) 601.314/SP com repercussão geral reconhecida (Tema 225) e de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 2390; 2386; 2397 e 2859) quanto à constitucionalidade da transferência de dados bancários para a Administração Tributária, nos moldes previstos LC nº 105/2001. No mencionado Recurso Extraordinário, a discussão cinge-se a questão fornecimento de informações sobre movimentações financeiras ao Fisco sem autorização judicial, nos termos do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e sobre a aplicação retroativa da Lei nº 10.174/2001 para apuração de créditos tributários relativos a exercícios anteriores ao de sua vigência.

Já as ações diretas de inconstitucionalidade impugnam as normas relativas ao fornecimento, por instituições financeiras, de informações bancárias de contribuintes à Administração Tributária sem a atuação prévia do Poder Judiciário (art. 3º, § 3º; art. 5º; art. 6º e art. 1º, § 3º, inciso VI, na parte em que remete aos arts. 5º e 6º, da LC nº 105/2001, e aos Decretos nº 3.724/2001, nº 4.489/2002 e no 4.545/2002). Questionam, ainda, quanto ao art. 1º, § 4º, a expressão “do inquérito ou”, da LC nº 105/2001, bem como o art. 1º da LC nº 104/2001, na parte em que inseriu o § 1º, inciso II, e o § 2º ao art. 198 do CTN, normas que proporcionam o fornecimento à autoridade administrativa de “informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”, para a utilização em processo administrativo instaurado com o intuito de apurar a prática de infração administrativa.

Conquanto se observe que vários dispositivos foram questionados, dois merecem destaque relativamente aos debates travados no âmbito do STF, quais sejam, o art. 5º e art. 6º, da LC 105/2001, in verbis:

Art. 5o O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.

  • 1o Consideram-se operações financeiras, para os efeitos deste artigo:

        I – depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança;

        II – pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques;

        III – emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados;

        IV – resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança;

        V – contratos de mútuo;

        VI – descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito;

        VII – aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável;

        VIII – aplicações em fundos de investimentos;

        IX – aquisições de moeda estrangeira;

        X – conversões de moeda estrangeira em moeda nacional;

        XI – transferências de moeda e outros valores para o exterior;

        XII – operações com ouro, ativo financeiro;

        XIII – operações com cartão de crédito;

        XIV – operações de arrendamento mercantil; e

        XV – quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou outro órgão competente.

  • 2o As informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados.
  • 3o Não se incluem entre as informações de que trata este artigo as operações financeiras efetuadas pelas administrações direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
  • 4o Recebidas as informações de que trata este artigo, se detectados indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, a autoridade interessada poderá requisitar as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos.
  • 5o As informações a que refere este artigo serão conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor.

Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

        Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

Com especial ênfase na disciplina dos dispositivos transcritos acima, discutiu-se acerca da possibilidade de fornecimento, pelas instituições financeiras, de informações bancárias de contribuintes ao Fisco sem a intermediação do Poder Judiciário. O ponto nodal do debate consistiu em verificar se o procedimento previsto na LC 105/2001 configuraria ou não quebra de sigilo bancário, violando o artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal de 1988, que dispõe que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Como consequência, debateu-se se o direito à intimidade e à privacidade deveriam prevalecer ante o dever fundamental de pagar tributos.

A Fazenda Nacional, dentre outros inúmeros argumentos, como a inexistência de quebra de sigilo, sustentou que não entendia adequado o posicionamento que, a pretexto de se proteger a esfera privada do contribuinte, implicasse a possibilidade de se conferir o direito de declarar valor inverídico. Assim, o acesso aos dados de operações financeiras promoveria o verdadeiro tratamento isonômico, já que, sobretudo em relação a pessoas jurídicas de grande poder econômico, tal acesso permitiria o cotejo, pelo fisco, entre as informações prestadas e os dados existentes para aferir a veracidade do que foi declarado.

Conforme já mencionado, embora o julgamento do RE 601.314/SP e das ADIS ainda não tenha sido finalizado, acredita-se já ser possível afirmar a alteração da jurisprudência do STF, uma vez que, na sessão plenária do dia 18/02/2016, já foram proferidos 6 (seis) votos favoráveis da tese fazendária, de modo que já há entendimento majoritário da Corte Suprema em tal sentido.

No que pertine à modificação jurisprudencial, é importante que se mencione que, em sessão de 15 de dezembro de 2010, o STF havia decidido, por maioria, contrariamente à Fazenda Nacional, um recurso extraordinário sem repercussão geral (RE 389.808/PR) em que se discutia o acesso da Receita Federal a informações fiscais de uma empresa, sem ordem judicial. Na ocasião, prevaleceu o voto do Ministro Marco Aurélio (vencido na sessão de 18.02.2016) que, em síntese, conferiu à legislação de regência do tema interpretação conforme à Constituição Federal por tê-la como conflitante com o texto constitucional, considerando que implicaria afastamento do sigilo bancário do cidadão, da pessoa natural ou jurídica, sem ordem do Poder Judiciário.

Segundo se extrai do voto Ministro Marco Aurélio no RE 389.808/PR, dever-se-ia dar prevalência ao entendimento que resguardasse o cidadão de atos extravagantes que alcançassem sua dignidade. Segundo o Ministro, além de as exceções ao sigilo das correspondências, das comunicações telegráficas e de dados serem impassíveis de serem estendidas para outras finalidades que não a investigação criminal ou instrução processual penal, não poderiam prescindir de autorização judicial, ressalvadas as hipóteses restritas consagradas pela jurisprudência do próprio STF (e mesmo nesses casos os atos não poderiam ser indiscriminados).

Dentre os precedentes citados pelo Ministro Marco Aurélio, no RE 389.808/PR, estava o decidido na Pet 3898, em que restara assentado que nem mesmo o Ministro de Estado da Fazenda poderia ter acesso a dados bancários de determinado cidadão individualizado existentes na Caixa Econômica Federal.  Citou, ainda, o RE 461.366/DF, no qual se decidiu que a atuação fiscalizadora do Banco Central do Brasil não permitiria, no campo administrativo, alcançar dados bancários de correntistas, afastando o sigilo do inciso XII, do art. 5º, da Constituição Federal.

Entretanto, o STF, ao iniciar o julgamento do RE 601.314/SP e das ADIs, está revisitando a matéria e adotando novo posicionamento. Isso porque os Ministros Edson Fachin (relator do Recurso Extraordinário), Dias Toffoli (Relator das ADIs), Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber e Carmem Lúcia votaram favoravelmente a esse acesso, registrando-se, por enquanto, apenas um voto contrário, do Ministro Marco Aurélio. Faltam votar ainda os Ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, o que deve ocorrer em breve (possivelmente na sessão do dia 24.02.2016).

De acordo com o Ministro Fachin, a questão do sigilo bancário, no tocante às dimensões da proteção à privacidade e do dever de pagar tributos, deve ser vista sob a ótica do princípio da moralidade, já que a proteção do sigilo não pode consubstanciar verdadeira autorização para prática de ilícitos e implicar violação ao princípio da moralidade. De acordo com ele, na linha do que foi defendido pela Fazenda Nacional, a finalidade da tributação é promover o princípio constitucional da igualdade (promover a justiça distributiva), de modo que não haveria direito absoluto em matéria de sigilo, o qual deveria ser mitigado na hipótese de transações bancárias que denotem a existência de ilícitos. O sigilo não deve ser protegido no afã de encobrir ilícitos. É importante que o fisco tenha acesso a informações que possibilitem a identificação do fato gerador. O Ministro ainda destacou que o Brasil, aderindo a vários tratados internacionais, busca combater os ilícitos fiscais. Demais disso, asseverou que o sigilo dos dados permanece, existindo apenas uma transferência da esfera bancária para a fiscal.

Consoante o voto do Ministro Dias Toffoli, na linha do entendimento esposado por ocasião do RE 389.808, ocasião em que restara vencido, o §1º do art. 145 ao dispor que “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” respalda a atuação do fisco, na forma da LC nº 105/2001, sobretudo porque há manutenção do sigilo.

Com efeito, o voto do Ministro alicerça-se, essencialmente, em dois pilares: (a) a inexistência de violação à intimidade, na medida que não há quebra de sigilo; e (b) na confluência entre o dever do contribuinte de pagar tributos e os deveres do fisco de bem tributar e fiscalizar.

Quanto ao primeiro aspecto, o Ministro Dias Toffoli destacou que, para haver quebra de sigilo, pressupõe-se a exposição ou a circulação dos dados bancários dos contribuintes, o que não ocorre dentro da sistemática da LC 105/2001, de forma que há, em verdade, afirmação do direito à intimidade. Isso porque não há divulgação dos dados, coibindo-se o vazamento das informações, tanto do ponto de vista criminal como da responsabilização civil do servidor.Há, dentro da sistemática da LC 105/2001, verdadeira transferência de dados, o que não impediria o uso de tais informações pelo fisco.

Já sob a ótica dos deveres do fisco e do contribuinte, o Ministro Dias Toffoli, citando, dentre outros doutrinadores, José Casalta Nabais, considerou que o tributo não constitui mero exercício do poder estatal ou sacrifício do cidadão, mas é essencial para a vida em comunidade organizada em um estado fiscal. A tributação alicerça-se, pois, na ideia de solidariedade social. Assim, o tributo ostenta a condição de dever fundamental e, como tal, impõe ao Estado que promove direitos fundamentais a necessidade de adotar mecanismos efetivos de combate à sonegação. Nesse diapasão, o cruzamento de dados configura uma das medidas mais importantes para reduzir a sonegação.

O Ministro Roberto Barroso, conquanto tenha afirmado que a quebra de sigilo bancário deve observar a reserva de jurisdição, considerou que, na linha dos Ministros Edson Fachin e Dias Toffoli, no caso da LC105/2001, não há uma quebra, já que a RFB seria destinatária natural de dados dos contribuintes.

Para o Ministro Teori Zavascki, aderindo ao posicionamento dos ministros que votaram anteriormente a ele, acrescentou que o “culto fetichista” ao sigilo não visa à privacidade, mas serviria para negar informações para investigação das autoridades em prejuízo ao combate das atividades ilícitas. Ademais, as informações sobre operações bancárias não se situariam, propriamente, no âmbito da esfera privativa, pessoal e íntima, protegidas pelo art. 5º da CF/88. Na verdade, conforme destacado pelo Ministro, a rigor, todos os contribuintes têm a obrigação de fornecer ao fisco essas informações sobre operações bancárias, ainda que sejam um retrato da realidade no dia 31/12, que é a data do ajuste anual, mas nada impediria, teoricamente, que, como se faz com as empresas, que fosse obrigatório fornecer informações com uma periodicidade menor.

Segundo o Ministro Teori Zavascki, são as mesmas informações fiscais, de forma que dizer que há reserva da intimidade em relação a elas seria dizer que existiria relação de intimidade em relação as demais informações que são prestadas à RFB e, na prática, são prestadas informações muito mais íntimas, como já havia sido observado pelo ministro Barroso, como aquelas relativas à saúde, à condição pessoal e às pensões alimentícias. De acordo com o Ministro Teori, a questão não se colocaria no plano da intimidade, até porque falar em intimidade da pessoa jurídica, que tem obrigação de prestar contas não apenas ao fisco, mas à CVM e a acionistas, é ainda mais estranho.

Vale ainda mencionar que o Ministro Teori Zavascki ressaltou que o entendimento de que, no caso, não há a reserva de jurisdição não implica dizer que os atos administrativos não estariam submetidos ao controle jurisdicional, já que há a possibilidade de controle a posteriori, o qual já seria eficaz. Não haveria, portanto, necessidade da reserva prévia de jurisdição.

A Ministra Rosa Weber convenceu-se pelo argumento da transferência de sigilo bancário, entendendo que não haveria a quebra e destacou a necessidade de se privilegiar o interesse coletivo. Após o voto da ministra Rosa Weber, votou a Ministra Cármen Lúcia, a qual se manifestou pela ausência de quebra da privacidade, na medida em que as informações são protegidas, sendo importante equilibrar a segurança das informações ao público e permitir que o fisco fiscalize se não há desbordamento das atividades do contribuinte.

Por fim, impende destacar que também está prevalecendo o entendimento pela possibilidade de aplicação retroativa da lei, na medida em que seria uma medida instrumental relacionada ao lançamento e que não proporcionaria aumento ou diminuição de tributo.

Espero ter contribuído com os estudos! Sem dúvidas é um tema que despencará em concursos públicos!

Até breve!

Flávia Coelho – Procuradora da Fazenda Nacional