Incidente de deslocamento de competência: antecedentes históricos, previsão legal, requisitos e jurisprudência

O tema de que trataremos hoje constitui uma das notáveis inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, e é de especial importância para aqueles que se preparam para carreiras da área federal.

Recentemente, no dia 13 de agosto de 2014, noticiou-se no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que a Terceira Seção daquela Corte determinou que se transferisse imediatamente à Polícia Federal o inquérito instaurado pela Polícia Civil de Pernambuco para investigar a morte do promotor Thiago Faria Soares, ocorrido em outubro de 2013 no interior de Pernambuco.[1]

Aproveitando a atualidade do tema, iremos destacar alguns aspectos acerca do contexto histórico no qual está inserida a previsão do incidente de deslocamento de competência (IDC), seus requisitos e, por fim, a casuística envolvendo o referido incidente.

É importante lembrar, de início, que a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) foi ratificada pelo Brasil e introduzida no ordenamento jurídico nacional mediante o Decreto nº. 678, de 6 de novembro de 1992. Com isso, o Estado brasileiro, representado pela União enquanto pessoa jurídica de direito público externo, comprometeu-se a investigar, julgar e repelir quaisquer violações de direitos humanos que venham a ocorrer no nosso país, sob pena de ser responsabilizado internacionalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), cuja competência para julgamento de violações a direitos humanos fora reconhecida pelo Decreto Legislativo nº. 89/98.

Assim, para fins de responsabilidade internacional por violação a direitos humanos, a União estará sujeita às sanções aplicadas pela CIDH, não importando de qual unidade federativa se originou o descumprimento de obrigações firmadas pelo Brasil em tratados internacionais sobre a matéria. Trata-se de previsão contida tanto no art. 28, da CADH, quanto no art. 27, da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, segundo a qual o Estado federal é uno e passível de responsabilização internacional, mesmo que o fato internacionalmente ilícito seja da atribuição de um Estado-membro da federação, razão pela qual não se aceita a chamada “cláusula federal”.[2]

E, vale destacar, a Corte e a Comissão de Direitos Humanos têm efetivamente exercido seu papel na repressão de condutas lesivas aos direitos humanos advindas dos Estados-membros. É o que se pode observar, a título de exemplo, no famoso “caso Maria da Penha Maia Fernandes”, no qual a Comissão considerou que a delonga do Tribunal de Justiça do Ceará, por mais de 17 anos, em prestar justiça e punir o responsável por fatos graves relacionados à violência contra a mulher deveria ser atribuída ao Brasil, muito embora os atos tenham sido realizados por ente federado (Estado do Ceará).[3]

Nesse contexto, a fim de evitar a responsabilização internacional do Estado brasileiro por violações atribuídas aos entes federados, a Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, acrescentou a previsão do IDC no art. 109, inc. V-A e §5º, da CF/88, cujo texto é o seguinte:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

(…)

V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

(…)

§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Pois bem. Da leitura do artigo acima conjugada ao entendimento doutrinário[4] e jurisprudencial, é possível concluir que a federalização dos crimes contra os direitos humanos pressupõe três requisitos:

a) crime praticado com grave violação de direitos humanos;

b) demonstração concreta do risco de descumprimento de obrigações firmadas pelo Estado brasileiro por meio de tratados internacionais de direitos humanos;

c) incapacidade de o Estado-membro, por meio de suas instituições e autoridades, levar a cabo a persecução penal.

Além disso, é necessário observar que a legitimidade para suscitar o incidente é do Procurador-Geral da República (PGR), que deve fazê-lo perante a Terceira Seção do STJ, nos termos da Resolução nº. 6/2005, deste Tribunal.

Feita a devida contextualização dos antecedentes históricos que levaram à inclusão do IDC no texto constitucional e vistos os seus requisitos, é interessante analisar brevemente as raras hipóteses nas quais o STJ tem admitido o incidente.

O IDC nº. 1, que trata do homicídio doloso da irmã Dorothy Stang no município de Anapu/PA, foi apreciado pelo STJ em 08/06/2005. No caso, muito embora a Corte tenha indeferido o deslocamento de competência para a Justiça Federal por entender que não teria sido evidenciada a negligência do Estado-membro em realizar a persecução penal dos autores do delito, manifestou-se no sentido de não existir violação ao princípio do juiz natural e à autonomia da federação na previsão do IDC na CF/88.

Posteriormente, no IDC nº. 2 – que se refere ao homicídio do advogado e vereador pernambucano Manoel Bezerra de Mattos Neto por haver denunciado grupos de extermínio que atuavam no Nordeste – o desfecho foi diferente. Desta feita, em 27/10/2010, o STJ concluiu que, além da grave violação de direitos humanos, restou demonstrada a incapacidade das instâncias e autoridades locais de oferecer respostas efetivas no combate às ações desses grupos de extermínio, razão pela qual determinou o deslocamento da competência para a Justiça Federal da Paraíba, tendo em vista o fato de o crime ter ocorrido no município de Pitimbu/PB.

Por fim, chega-se ao recente “caso Thiago Faria Soares” (IDC nº. 5/PE). Trata-se de homicídio doloso praticado em face de promotor do Ministério Público de Pernambuco, morto a tiros enquanto dirigia seu veículo em uma rodovia no município de Itaíba/PE. Segundo as investigações realizadas até então, o crime estaria inserido no contexto da atuação de grupos de extermínio na área, conhecida como “Triângulo da Pistolagem”. Ocorre que, em razão da existência de conflito institucional entre a Polícia Civil e o MP pernambucano, as autoridades locais não estariam conseguindo oferecer a resposta adequada ao crime praticado, de maneira que coube ao PGR fazer o pedido junto ao STJ.

O Min. Rogério Schietti Cruz, relator do caso, destaca que o IDC “deve ser utilizado em situações em que demostrado descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais ou materiais de instituições responsáveis em levar a cabo a responsabilização dos envolvidos na conduta criminosa”. Conclui que, no caso, “há indícios de que o assassinato do promotor provavelmente resultou da ação de grupos de extermínio que atuam no interior de Pernambuco”, ressaltando que é “notório o conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e a persecução penal dos ainda não identificados autores do crime”, o que teria provocado falhas na investigação aptas, inclusive, a comprometer o resultado final e a gerar a impunidade dos mandantes e executores do crime.

Por essa razão, a Terceira Seção do STJ foi unânime em deferir o pedido de deslocamento da competência para a Justiça Federal de Pernambuco, entendimento que foi fundamentado em disposições da CADH e na necessidade de afastar a responsabilização internacional do Estado pelo descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte.

Com essas observações, espero ter contribuído para a preparação de cada um de vocês, especialmente no que se refere ao conhecimento de um tema tão importante – e atual – como o incidente de deslocamento de competência.

Abraços e até outra oportunidade!

Rodolfo Lopes, Procurador Federal

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[1] Disponível em: <https://stjnoticias.tumblr.com/post/94668358068/morte-de-promotor-em-pernambuco-sera-investigada-pela>

[2] Consiste na possibilidade de um dos Estados contratantes não cumprir uma obrigação internacional, bastando, para tanto, alegar a ausência de competência federal.

[3] RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violações de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 197-198.

[4] BRASILEIRO, Renato. Manual de competência criminal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 190.