Ministério Público, Ação Civil Pública e a proteção à dignidade de grupos religiosos

 Já está em vigor a Lei nº 12.966/2014, que traz expressamente, por meio do instrumento da ação civil pública, a proteção à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.

A Lei incluiu no rol de direitos e interesses defendidos através da ação civil pública, em seu art. 1º, agregando aos demais como cabíveis as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente; ao consumidor; bens e direitos de valor artístico, estético, histórico ou paisagístico e outros.

 Neste texto, vamos tratar sobre a proteção da honra e da dignidade de grupos religiosos.

 Vale lembrar que própria Lei, no inciso IV do art. 1º, já trazia a previsão genérica de tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” por meio da ação civil pública.

 Neste sentido, através de seus legitimados a propor a ação civil pública e a respectiva medida cautelar (Ministério Público; Defensoria Pública; União, Estados, Distrito Federal e Municípios; autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; associação), observando, evidentemente, sua pertinência temática para o ajuizamento da respectiva ação.

 Já há muito a jurisprudência vem acatando ações civis públicas do Ministério Público para casos como este.

 Em decisão do TRF da 3ª Região, é reconhecida a legitimidade ativa do Ministério Público Federal para promover ação civil pública para a defesa de outros interesses difusos ou coletivos como, no caso concreto, o respeito e a não discriminação ás religiões afro-brasileiras:

 “PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. NECESSIDADE DE PROTEÇÃO À LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E ÀS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS. (…) 3. Legitimidade ativa do Ministério Público Federal, uma vez que compete a este órgão promover a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III, da Constituição Federal). No presente caso, está-se diante de um interesse metaindividual consistente na defesa de bens sociais e culturais de toda a sociedade, quais sejam, o respeito e a não discriminação às religiões afro-brasileiras, sendo cabível a ação civil pública e legitimado para promovê-la o Ministério Público Federal. (…) 5. A transcrição de trechos dos programas apresentados pelas emissoras rés (TV Record e Rede Mulher) demonstra a utilização de termos desrespeitosos às religiõesafro-brasileiras, o que denota um caráter discriminatório em relação às mesmas.” (TRF 3ª Região – Desembargadora Federal Consuelo Yoshida – AI – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 234396 – 6ª Turma  DJU 09/12/2005)

 Em decisão recente, neste mês de maio/2014, o TRF da 4ª Região também acatou o pedido do Ministério Público Federal, determinando que a União e o Departamento de Trânsito (Detran) do Paraná permitam a todas as freiras católicas da Região de Cascavel retirar e renovar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) com o hábito religioso completo. Neste caso, acredito que, até por isonomia e garantia dos direitos dos seguidores de todo o Estado do Paraná e das demais religiões, o Detran, na edição de ato administrativo para cumprimento do acórdão do TRF, deve estender tal direito para as demais religiões que, de alguma forma, utilizam alguma forma de vestimenta sobre as cabeças, para que a implementação de uma decisão judicial não seja motivo de nova discriminação religiosa. Tal extensão seria ainda melhor se, evidentemente, pudesse ser levada para todo o Brasil, para se uniformizar tal questão.

 Já em decisão também atual e muito polêmica, o Juiz Federal do Rio de Janeiro Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, apesar de reconhecer a legitimidade do MPF para o caso, negou o pedido em ação civil pública para a retirada de vídeos da internet, supostamente ofensivos, e considerou que as crenças afro-brasileiras “não contêm os traços necessários de uma religião“, já que não possuiriam as características essenciais a uma religião, que seriam, em seu entendimento, a existência de um texto base (como a Bíblia ou Alcorão), de uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado. Logo após, recuou, com o seguinte argumento: “Destaco que o forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões, daí porque faço a devida adequação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto base são elementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea.”

 Assim, o Juiz Federal, apesar de reconhecer que os cultos afro-brasileiros são considerados religiões, negou o pedido de retirada de vídeos publicados na internet, que estariam ofendendo os seguidores dos referidos cultos, que buscaram a tutela jurisdicional através do Ministério Público Federal, mas não negou a legitimidade do Ministério Público para questionar a questão.

 Acredito que o próprio inciso IV do art. 1º da Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal nº 7.347/85) já amparava os pedidos do MP e dos outros legitimados para  ações que visassem a proteção à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, como já vinha ocorrendo.

 Tais pedidos podem ser feitos por associações, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por exemplo, na defesa da coletividade, para o respeito e a não-discriminação entre as religiões, ou para a defesa de grupo específico, quando esteja sob ataques em sua própria condição de manifestação e de culto, por exemplo, seja por manifestações de ofensas a determinados grupos ou manifestações religosas por sua mera condição de existir ou de sobreviver, seja pela forma de seus cultos, hábitos ou vestimentas.

 Sempre que a manifestação extrapolar a mera liberdade de expressão e constranger a dignidade e a honra destes grupos será possível o manejo desta ação.

 Porém, de fato, a previsão expressa em nosso ordenamento jurídico reforça a importância desta garantia para que se evite qualquer discussão jurídica e que a ocorrência de eventuais violações a grupos raciais, étnicos e religiosos possam ser cada vez mais combatidas efetivamente por este importante instrumento de tutela coletiva que é a ação civil pública.

 Dr. Alan Mansur, Procurador da República.