Olá alunos da Ebeji! Vamos falar hoje de Direito do Consumidor, sobre aspecto bastante relevante da responsabilidade civil, no que diz respeito a fato do produto.

Em texto anterior aqui no blog já falamos sobre a Teoria da Qualidade, que é pressuposto de extrema importância para se compreender adequadamente o regime da responsabilidade civil no âmbito consumerista. Se você ainda não leu, recomendo a leitura para que possa aproveitar o texto de hoje de forma satisfatória e clara, pois alguns conceitos podem se misturar.

O dano causado por produto defeituoso que afeta a incolumidade física do consumidor é chamado de acidente de consumo e é tratado pelo CDC no âmbito do fato do produto. Isto é, o fato do produto cuida da responsabilidade pelo dano causado em acidente de consumo, em virtude da existência de vício de qualidade por insegurança.

Tendo em vista, então, que o acidente de consumo decorre do vício de qualidade por insegurança, é preciso que definamos o que exatamente é este vício. Segundo Antonio Herman V. Benjamin (in Manual de Direito do Consumidor, Revista dos Tribunais, 5a edição), ele é “a desconformidade de um produto ou serviço com as expectativas legítimas dos consumidores e que tem a capacidade de provocar acidentes de consumo”.

Para que ele exista, portanto, é imprescindível a presença simultânea de dois elementos: 1- desconformidade com expectativa legítima (o que legitimamente se espera, relacionado à normalidade e previsibilidade do risco)  e 2- capacidade de provocar acidentes. A ausência de um dos dois elementos impede que se configure tal vício.

O art. 12, §1o, CDC estabelece que o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera. E qual grau de segurança qualifica o produto como defeituoso? Há graus de segurança estabelecidos pela doutrina, a saber: a) periculosidade inerente (risco intrínseco, periculosidade normal e previsível), b) periculosidade adquirida (torna-se perigoso em razão de defeito – ou seja, ausente o vício, não traz risco superior) e c) periculosidade exagerada (alto grau de nocividade inerente – são tidos como sendo portadores de defeito de concepção – a informação é de pouca valia e os riscos são excessivos). Apenas as últimas duas formas podem ser consideradas portadoras de vício de qualidade por insegurança, pois possuem potencial danoso superior ao que legitimamente se espera.

Dito isso, é de se concluir, portanto, que o produto cuja periculosidade lhe seja inerente, mas que cause algum dano ao consumidor, não gerará ao fabricante a responsabilidade pela indenização, uma vez que não há desconformidade com a expectativa legítima, pois encontra-se dentro da esfera de previsibilidade do consumidor o risco que ele possui.

Desta forma, podemos compreender mais facilmente o recentíssimo e importante julgado do Superior Tribunal de Justiça, veiculado no informativo n. 603, no qual discutiu-se acerca da responsabilidade de fabricante de remédio que ocasionou a morte de um paciente:

REsp 1.599.405-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, por unanimidade, julgado em 4/4/2017, DJe 17/4/2017.

Ação de indenização por danos morais e materiais. Medicamento anti-inflamatório. Ingestão. Falecimento do paciente. Fundamento da reponsabilidade objetiva do fornecedor pelo fato do produto. Inobservância do dever de segurança, a partir da fabricação e inserção no mercado de produto defeituoso. Não verificação. Produto de periculosidade inerente. Riscos previsíveis e informados aos consumidores. Em se tratando de produto de periculosidade inerente (medicamento), cujos riscos são normais à sua natureza e previsíveis, eventual dano por ele causado ao consumidor não enseja a responsabilização do fornecedor. A controvérsia centra-se em saber se laboratório farmacêutico responde objetivamente pelos danos advindos da morte, por insuficiência renal aguda, de pessoa que, por prescrição médica, ingeriu medicamento (anti-inflamatório Vioxx) por aquele produzido, cuja bula adverte, expressamente, como possíveis reações adversas, a ocorrência de doenças graves renais. Debate-se, nesse contexto, se o remédio poderia ser considerado defeituoso, na dicção legal. Sobre a responsabilidade do fornecedor pelo chamado acidente de consumo, releva anotar, de início, que o Código de Defesa do Consumidor acolheu a teoria do risco do empreendimento (ou da atividade). Há que se bem delimitar, contudo, o fundamento desta responsabilidade, que, é certo, não é irrestrita, integral, na medida em que pressupõe requisitos próprios (especialmente, o defeito do produto como causador do dano experimentado pelo consumidor) e comporta eximentes. Assinala-se que o fornecedor não responde objetivamente pelo fato do produto simplesmente porque desenvolve uma atividade perigosa ou produz um bem de periculosidade inerente, mas sim, concretamente, caso venha a infringir o dever jurídico de segurança (adentrando no campo da ilicitude), o que se dá com a fabricação e a inserção no mercado de um produto defeituoso, de modo a frustrar a legítima expectativa dos consumidores. Este dever jurídico, cuja inobservância confere supedâneo à responsabilidade objetiva do fornecedor, está expresso no art. 8º do Código de Defesa do Consumidor, ao dispor que os produtos e serviços colocados no mercado não poderão acarretar riscos à segurança ou à saúde dos consumidores — revelando-se defeituosos, portanto —, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição. Daí ressai que o sistema protetivo do consumidor, na esteira do dispositivo legal acima destacado, não tem por propósito obstar, de modo absoluto, a inserção no mercado de produto ou serviço que propicie riscos à segurança e à saúde dos consumidores. Uma disposição com esse propósito afigurar-se-ia de todo inócua, pois ignoraria uma realidade intrínseca a todo e qualquer produto, qual seja, a de guardar, em si, um resquício, um grau mínimo, de insegurança. Esta realidade, a propósito, apresenta-se de modo muito contundente em relação aos medicamentos em geral (qualificados como produtos de periculosidade inerente), pois todos, sem distinção, guardam riscos à saúde dos consumidores, na medida em que causam efeitos colaterais, de maior ou menor gravidade, indiscutivelmente. Por conseguinte, os riscos normais e previsíveis, em decorrência da natureza ou da fruição do produto, são absolutamente admissíveis e, por consectário lógico, não o tornam defeituoso, impondo-se ao fornecedor, em qualquer hipótese, a obrigação de conferir e explicitar as informações adequadas a seu respeito. Coerente com tais diretrizes, o artigo 12 do CDC teceu os contornos da responsabilidade objetiva do fornecedor pelo fato do produto. O defeito do produto apto a ensejar a responsabilidade do fornecedor é o de concepção técnica (compreendido como o erro no projeto, pela utilização de material inadequado ou de componente orgânico ou inorgânico prejudicial à saúde ou à segurança do consumidor), de fabricação (falha na produção) ou de informação (prestação de informação insuficiente ou inadequada), que não se confunde com o produto de periculosidade inerente. Neste, o produto não guarda em si qualquer defeito, apresentando riscos normais, considerada a sua natureza ou a sua fruição, e previsíveis, de conhecimento do consumidor, pela prestação de informação suficiente e adequada quanto à sua periculosidade. O produto de periculosidade inerente, que apresente tais propriedades, não enseja a responsabilização de seu fornecedor, ainda que, porventura, venha a causar danos aos consumidores, afinal, o sistema de responsabilidade pelo fato do produto adotado pelo Código de Defesa do Consumidor é o do risco do empreendimento, e não o do risco integral, como se fosse o fornecedor um segurador universal de seus produtos. Portanto, em se tratando de produto de periculosidade inerente, cujos riscos são normais à sua natureza (medicamento com contraindicações) e previsíveis (na medida em que o consumidor é deles expressamente advertido), eventual dano por ele causado não enseja a responsabilização do fornecedor, pois, de produto defeituoso, não se cuida. (Grifos meus)

Portanto, alunos, o que temos é que no caso de produtos com periculosidade inerente, em que os riscos são normais e previsíveis, a ocorrência de determinado acidente de consumo relativo a este risco não gera a responsabilidade do fabricante, uma vez que não há que se falar em vício do produto.

Desta forma, como o efeito colateral do medicamento do caso em tela (possibilidade de ocasionar grave insuficiência renal), foi informado e estava dentro do risco previsível, não há que se falar em defeito, na forma do que dispõe o art. 12, §1o, II:

Art. 12.

§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

        I – sua apresentação;

        II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

[…]

Inexistente o defeito, automaticamente está afasta a responsabilidade (que não é integral, pois admite causas que a afastem), em virtude da excludente do art. 12, §3o, II, CDC.

Embora o julgado pareça, numa primeira visão, complicado, ao destrincharmos os conceitos que se relacionam à teoria da qualidade e ao fato do produto, passamos a compreender claramente a linha de raciocínio que conduz à conclusão da exclusão da responsabilidade do fornecedor, dai porque a importância do domínio dos temas envolvidos.

Bons estudos a todos e até a próxima!