O incidente de desconsideração da personalidade jurídica e a Fazenda Pública

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1. Conceito

Normalmente, a pessoa jurídica possui autonomia em relação aos seus sócios de forma que não há comunicação entre o seu patrimônio e o patrimônio das pessoas que integram seu quadro societário. Contudo, situações há em que os sócios usam o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar a lei ou abusar do direito. Quando isso acontece, a lei permite com que o manto de autonomia que separa os patrimônios de pessoas jurídica e física cai por terra e os sócios respondem pelas obrigações assumidas pela pessoa jurídica que integram.

Registre-se, ainda que os administradores podem responder nos termos do art. 50 do Código Civil.

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 2. Desconsideração Inversa

Logo, percebe-se claramente que se tem um sentido de desconsideração, qual seja, afasta-se a autonomia da pessoa jurídica para atingir os bens dos sócios, a esse sentido chama-se desconsideração direta da personalidade jurídica. A chamada desconsideração inversa muda o sentido antes apresentado, ou seja, a autonomia da física é afastada no sentido de atingir os bens da pessoa jurídica para saldar dívidas contraídas pelo particular.

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3. Pressupostos

São várias as fontes normativas que fixam pressupostos para o instituto estudado, vejamos:

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3.1. Direito do Consumidor – CDC

Por óbvio, trata-se de regulação para as relações de consumo. Diz o art. 28 do CDC que permite a aplicação da desconsideração direta quando em “detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social” ou, ainda, quando houver “falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

Ainda para as relações de consumo, poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores (art. 28, parágrafo 5º).

O CDC sustenta a Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica é uma teoria ampla, mais benéfica ao consumidor, pois não exige prova da fraude ou do abuso de direito como exige o CC, veremos.

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3.2. Direito Civil – CC

Para as relações não consumeristas, a lei civil estabelece norma geral prevista no art. 50 (Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica). O dispositivo justifica a Teoria Maior da desconsideração, ante a necessidade de comprovação dos requisitos do abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

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3.3. Direito Econômico – Lei 12.529/2011

A desconsideração da personalidade jurídica por infração da ordem econômica é possível quando houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social (art. 34), bem como falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração (art. 34, parágrafo único).

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3.4. Direito do Trabalho – CLT

A Lei 13.467/2017 que implementou o que se conheceu como reforma trabalhista, estabeleceu nova redação ao art. 2º, parágrafo 2º da CLT dizendo: “Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego”. Não houve mudança propriamente, a nova redação incorporou à lei o grupo econômico que, na prática, já respondia solidariamente com base no mesmo dispositivo mesmo com redação anterior. Sobre o tema, a Súmula 129 do TST diz: “Contrato de trabalho. Grupo econômico. A prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, salvo ajuste em contrário”.

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3.5. Direito Tributário – CTN

No âmbito do direito público, o CTN determina que são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: a. As pessoas referidas no artigo 134; b. Os mandatários, prepostos e empregados; e c. Os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado (art. 135), bem como permite que terceiros (incisos do art. 134) respondam nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, quando solidariamente com este intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis.

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3.6. Direito Ambiental –  Lei 9605/1998

Em matéria ambiental, a desconsideração da personalidade jurídica encontra previsão no artigo 4º da Lei 9605/98, que assim dispõe:

“Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”

Perceba que, assim como CDC, aplica-se aqui a Teoria Menor da desconsideração, ou seja, sem a necessidade de comprovação da fraude ou do abuso de direito.

Na jurisprudência do STJ (2ª Seção, EREsp 1.306.553/SC), temos:

  • 1. A desconsideração é regra de exceção;
  • 2. É restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica;
  • 3. Aplica-se em casos extremos, sempre que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio de finalidade institucional ou a confusão patrimonial.

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6. Incidente de desconsideração de personalidade jurídica de ofício

Uma questão interessante, o CPC diz que o IDPJ (incidente de desconsideração de personalidade jurídica) será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. Contudo, há quem defenda a possibilidade de que o IDPJ seja instaurado de ofício

A posição doutrinária mais interessante é a que defenda a possibilidade de decretação de ofício com base no que dispõe o CDC (art. 28), vejamos:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

De todo modo, recomendo defender a possibilidade decretação judicial sempre que o direito material não a iniciativa da parte.

Na prática da Advocacia Pública o que vemos? Nas execuções de acórdão do Tribunal de Contas, na Execução Fiscal, enfim nos processos em que o Ente Pública busca reparação judicial em face das pessoas jurídicas que são suas devedoras, quando não há pedido da Fazenda, os juízes despacham assim, por exemplo: “Intime-se a União para, havendo interesse, promover o incidente de desconsideração de personalidade jurídica” ou “Diga a Fazenda Pública sobre o interesse na desconsideração da personalidade jurídica”.

O que importa, em qualquer caso, é que sempre seja respeitado o contraditório prévio para a concretização da desconsideração, sendo esta a finalidade principal do incidente, ou seja, o exercício do contraditório.

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7. Do procedimento do IDPJ

7.1. Cabimento

O incidente de desconsideração é cabível em qualquer tipo e momento do processo (art. 134, CPC). Na primeira instância deve ser instaurado perante o juiz de primeiro grau, na instância recursal, a atribuição para a recebimento do incidente é do relator, contudo, de sua decisão cabe recurso de agravo interno para o colegiado (art. 136 parágrafo único, CPC).

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7.2. DPJ requerida na petição inicial ou em outro momento processual

Nesse caso, não se forma incidente, a inicial deve trazer o pedido de desconsideração com a citação da pessoa jurídica ou do sócio que pode ser atingido pela desconsideração. O contraditório se perfaz na própria contestação bem como a produção de provas no curso normal do procedimento, não havendo suspensão do processo.

Se requerida em qualquer outro momento processual, o incidente suspende o curso do processo até a sua decisão final. O IDPJ terá petição própria por meio da qual se demonstrará a realização dos pressupostos materiais para o deferimento do pleito. No incidente, por óbvio, o contraditório deve ser materializado com a oitiva da parte contrária e devem ser citados o sócio ou a pessoa jurídica a ser atingida pelo incidente que podem se manifestar e requerer provas no prazo de 15 (quinze) dias (art. 135, CPC).

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7.3. Do contraditório no IDPJ

O prazo para o exercício do contraditório do sócio ou da pessoa jurídica a ser atingida pelo incidente é, como vimos, de quinze dias e comum, ou seja, não se aplica o prazo em dobro do art. 229, CPC, ainda que possuam procuradores diferentes. O STJ entende trata-se de nulidade relativa a falta de citação dos sócios em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, sendo reconhecida a nulidade apenas em caso de demonstração de efetivo prejuízo ao exercício da defesa (AgRg no Resp 1.471.665, 3ª Turma).

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7.4. Da decisão e do recurso

A decisão que examina o pedido de DPJ tem natureza interlocutória (art. 136, CPC) sujeita, portanto, a agravo de instrumento (art. 1015, IV, CPC).

Se a decisão é do relator para IDPJ instaurada na instância recursal quando competente originariamente o tribunal, o recurso cabível é o agravo interno (art. 1.021. CPC).

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7.5 Fraude à execução o Art. 792, parágrafo 3º do CPC

Reconhecida a execução, atos de alienação ou de oneração serão tidos por ineficazes, ou seja, os atos de alienação ou oneração dos terceiros atingidos (sócio ou pessoa jurídica) serão tidos em fraude à execução. Aqui, atenção, já que normalmente a fraude à execução pressupõe demanda pendente. Contudo, a partir de quando se considera em fraude à execução essas alienações ou onerações dos terceiros atingidos pela desconsideração? O CPC responde:

Art. 792. § 3o Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

Assim, atenção, desde a citação da pessoa jurídica que se presente desconsiderar e não dos terceiros que serão responsabilizados no incidente é que se considera em fraude à execução as alienações e onerações.

Esse dispositivo é muito importante para a Fazenda Pública, muitas vezes estamos diante de ação contra pessoa jurídica que não tem patrimônio para responder por suas dívidas. Assim, o procurador, se constatar os requisitos materiais da desconsideração (seja pelo CC, CTN, Lei 12.529/2011 ou legislação ambiental) deve instaurar o incidente e, acaso procedente, requerer a penhora, na execução, de todos os bens dos terceiros que respondem em razão da desconsideração desde a citação da pessoa jurídica no processo. Na desconsideração inversa, da mesma forma, a citação do sócio é o marco para que se considere fraudulentas as onerações e alienações de pessoa jurídica que vai responder em razão da desconsideração.

Para tanto, a Fazenda Pública deve proceder o registro quanto à existência da ação no registro público do bem ou, em não havendo o registro, provar que o terceiro adquirente tinha ciência da existência de demanda em curso contra o devedor e, ainda assim, adquiriu o bem alienado em fraude (Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça – O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente).

Importante registrar que o STJ tem decisão que sustenta que a fraude à execução tem termo inicial contado a partir da citação do sócio e não da pessoa jurídica que se quer desconsiderar (A fraude à execução só poderá ser reconhecida se o ato de disposição do bem for posterior à citação válida do sócio devedor, quando redirecionada a execução que fora originariamente proposta em face da pessoa jurídica. STJ, REsp 1.391.830-SP, INFO 594), contudo, referida decisão tem como razão da decidir a análise dos fundamentos previstos no CPC de 1973, razão pela qual não se pode dizer que o Tribunal afastou a aplicação do art. 792, parágrafo 3º do CPC de 2015, ainda que em obiter dictum, uma vez que não há menção ao dispositivo em todo o julgado.

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8. A importância do instituto para a Fazenda Pública e para os concursos

Para a Fazenda, o instituto é fundamental na recuperação de crédito, especialmente nos processos de execução.

O procurador deve sempre estar atento aos processos que envolvam pessoas jurídicas como devedoras ou pessoas físicas que participam de quadro societário de pessoa jurídica, ante a possibilidade da desconsideração inversa.

Nos processos envolvendo a Fazenda Pública, a incidência dos instituto se dá especialmente com os fundamentos previstos no Código Civil, art. 50, Código Tributário Nacional, arts. 134 e 135, Lei 12.529/2011 (ordem econômica), art. 34 e Lei 9605/98 (ambiental), art. 4º.

A incidência de cobrança sobre a desconsideração da personalidade jurídica em concurso da Advocacia Pública é grande, tanto em provas objetivas quanto em provas subjetivas. Portanto, fique ligado.