Samuel Sales Fonteles é Promotor de Justiça

Professor da EBEJI e autor de obras jurídicas

EBEJI

Muito se tem ouvido e pouco se tem lido a respeito da derrotabilidade das regras (defeasibility). Com este breve ensaio inaugural, chamo a peito a tarefa de elucidar, de uma vez por todas, o mínimo que o leitor precisa saber a respeito do tema. Para extrair o essencial de um assunto tão árido, resumi um estudo científico que elaborei para ser submetido à Revista do Ministério Público de Minas Gerais (De jure), com cerca de 20 laudas.

Primeiro, uma noção básica.

Quando aquilo que é descrito por uma norma jurídica acontece na prática, aciona-se um gatilho que faz a lei disparar seus efeitos em um alvo: o caso concreto. No Direito Tributário, a incidência da norma que instituiu a exação fiscal opera-se com a ocorrência do fato gerador. No Direito Penal, a norma incriminadora incide para punir o agente que consuma o delito nela tipificado. E assim por diante. Podemos concluir, então, que uma norma jurídica incide no suporte fático quando a hipótese, abstratamente descrita no arquétipo legal, ocorre no mundo fenomênico. Em termos mais simples, podemos sintetizar afirmando que a norma irradia seus efeitos quando se configura sua hipótese de incidência.

A ideia acima pode ser expressa em uma equação lógica binária, a saber: “Se A, então B”. Exemplificando, se o art. 121 do Código Penal descreve o ato de assassinar alguém, desde que um indivíduo mate o outro (e ressalvadas as excludentes de ilicitude e dirimentes de culpabilidade), a norma incidirá.

Porém, em um tom didático, é possível afirmar que a equação “Se A, então B” só será verdadeira em condições normais de temperatura e pressão. Diante de casos anômalos, a incidência da norma poderia se voltar contra o próprio espírito da lei ou mesmo resvalar em uma injustiça. Por conseguinte, em nome da mens legis ou do ideal de justiça, o magistrado sonega os efeitos de uma norma existente, válida e eficaz.

É hora de ilustrar.

Se uma esposa estipula que seu marido não deve mentir, a regra é clara: “fale a verdade”. O espírito da regra (mens legis) é a sinceridade que deve prevalecer no relacionamento conjugal. Suponhamos, no entanto, que a sinceridade do esposo possa frustrar a surpresa de uma festa de aniversário planejada pelos colegas de trabalho. Para assegurar a nobre emoção proporcionada pela surpresa da festividade, o cônjuge temporariamente omite a verdade, chegando, inclusive, a mentir. Como se vê, a mens legis da sinceridade não foi comprometida na sua essência, de modo que a hipótese configuraria uma legítima exceção. A regra, então, passaria a ser enunciada da maneira a seguir: “fale a verdade, exceto se for para me surpreender positivamente em uma festa de aniversário”. Porém, imaginemos que essa mesma esposa, em um rompante de fúria, imediatamente após descobrir estar sendo furtada pela empregada doméstica, se valha de uma vassoura e persiga implacavelmente a sua funcionária. Ao perdê-la de vista, a mulher indaga ao marido para que direção a ladra correu. O homem, preocupado com o descontrole de sua companheira, prefere dizer que não viu. Minutos depois, quando a paz é restaurada, o marido explica que mentiu para acalmar os ânimos da esposa. Mais uma vez, em tese, a hipótese pode configurar uma exceção legítima ao dever genérico de falar a verdade. A regra inicial, então, se transmudaria para “fale a verdade, exceto se for para me surpreender positivamente em uma festa de aniversário ou me proteger da minha ausência de freios inibitórios”. Certamente, com o passar dos anos, a regra original sofreria inúmeras mutações, para comportar exceções cada vez mais específicas e inusitadas.

É fácil concluir que a vida pode apresentar infinitas hipóteses casuísticas que justificariam a flexibilização de uma regra, que escapam da previsibilidade do legislador, mas nem por isso são reputadas como injustas. Este é o fundamento da derrotabilidade das regras: a não ser por meio de dons premonitórios, é impossível ao legislador antever todas as hipóteses reais que justificariam fosse excepcionada a regra que pretende elaborar. Juliano Taveira Bernardes assevera que “dessa incapacidade de antecipação normativa derivam exceções implícitas em número diretamente proporcional ao das múltiplas variáveis presentes nos diversos tipos de conduta que se pretende regular” (Aborto de Feto Anencefálico e Derrotabilidade. Suplemento Direito e Justiça, Jornal Correio Braziliense, 07.03.2005).

Repito para que fique claro. A derrotabilidade (ou superabilidade) de uma regra implica a não incidência de uma norma existente, válida e eficaz, ou seja, embora tenha percorrido todos os degraus da escada ponteana, não se sagra vitoriosa no caso que normatizou. Nisso se distingue do controle de constitucionalidade, afinal, enquanto a sindicância de constitucionalidade aquilata a validade das normas, a derrotabilidade trabalha com uma norma válida, mas episodicamente afastada em nome do que é (ou parece ser) justo. É como se a norma paramétrica migrasse da Constituição para a Justiça ou mesmo para assegurar os fins que a norma se propõe a resguardar.

Feita esta breve explicação, passamos didaticamente aos aspectos relevantes para provas de concursos públicos:

Conceito: por força da doutrina da derrotabilidade das regras (defeasibility), uma norma pode alojar infinitas exceções implícitas e imprevisíveis que, em um dado caso concreto, justificam seja episodicamente afastada, a pretexto de se fazer Justiça ou de assegurar os seus fins, permanecendo íntegro o texto que alberga o seu comando. Na feliz síntese de Carsten Bäcker, “derrotabilidade deve ser entendida como a capacidade de acomodar exceções” (Regras, Princípios e Derrotabilidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n.º 102, p. 60, jan./jun. 2011).

Origem: a paternidade da teoria da derrotabilidade das regras é atribuída a Hart, em seu ensaio The Ascription of Responsability and Rights (1948). O jusfilósofo empregou a expressão defeasibility, cuja tradução para o português é prejudicada pela inexistência de um correspondente exato. Entre nós, o termo quer significar que a regra é superada, temporariamente vencida, episodicamente derrotada. Vimos que, na Teoria Geral do Direito, uma norma jurídica incide no suporte fático quando a hipótese abstratamente descrita no arquétipo legal se verifica no mundo fenomênico. Porém, Hart defendeu em seu trabalho que, ainda que isso venha a acontecer, exceções podem impedir a incidência da norma, como se os enunciados normativos contivessem uma expressão imaginária “a menos que”.

Fundamento: a impossibilidade de o legislador antecipar-se cauisticamente, para apontar todos as possibilidades que justificariam o afastamento da regra.

O que é derrotado e o que vem a triunfar?

 Derrota-se a norma, jamais o texto que a abrigou. Tem prevalecido que normas regras são derrotadas, mas isso não se afigura possível quando se trata de normas princípios. Em sentido contrário, Humberto Ávila sustenta que as duas normas admitem derrota. O aprofundamento escapa aos objetivos deste ensaio e é feito de maneira oportuna no trabalho intitulado “O Dilema do Ministério Público diante da Derrotabilidade das Regras (defeasibility)”. Por fim, o afastamento pontual é levado a efeito em nome dos fins perseguidos pela norma ou a pretexto de fazer triunfar a Justiça.

 É possível aplicar a derrotabilidade das regras no Brasil?

Trata-se de uma técnica contra legem, logo, não encontra amparo explícito no Direito. Com uma sinceridade rara e sem maiores cerimônias, Cristiano Chaves de Farias arremata: “Sem dúvida, a admissibilidade da derrotabilidade das regras, ainda que em caráter excepcional, autoriza a prolação de uma decisão contra legem – sem eufemismo ou puritanismo” (Derrotabilidade das Normas-Regras (legal defeseability) no Direito das Famílias: Alvitrando Soluções para os Extreme Cases (Casos Extremos). Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro: MPRJ, n. 53, jul./set. 2014, p.45).

Na jurisprudência brasileira, é raríssimo um julgado que aluda à derrotabilidade das regras. Um dos poucos Tribunais que expressamente fez menção ao fenômeno foi o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, embora a aplicação do instituto tenha sido levada a efeito de maneira desvirtuada e em uma  certa confusão com o controle de constitucionalidade. Transcreve-se a ementa do único julgado que consta da pesquisa no sistema unificado da Justiça Federal (sem grifo no original):

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. TRANSFERÊNCIA DE ESTUDANTE DEPENDENTE DE EMPREGADO DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. INEXISTÊNCIA, NO LOCAL DE DESTINO, DE INSTITUIÇÃO CONGÊNERE. “DERROTABILIDADE” DA VEDAÇÃO CONTIDA NO ARTIGO 99 DA LEI 8.112/90. APLICAÇÃO DA PARTE FINAL DA SÚMULA 43 DESTA CORTE. 1. A alegação de que à vista do disposto no artigo 173, § 1º, II, da Constituição, os empregados de sociedade de economia mista e de empresas públicas que exploram atividade econômica não poderiam ser equiparados, para o fim da transferência deles e de seus dependentes, não tem, com a devida vênia, forte relevância jurídica, uma vez que o objetivo da norma constitucional não é restringir os direitos dos empregados daquelas pessoas jurídicas, mas sim não permitir que elas possam competir com as empresas privadas, usufruindo vantagens não aplicáveis a estas. 2. Por outro lado, o disposto na parte final da súmula 43 da jurisprudência predominante desta Corte (“A transferência compulsória para instituição de ensino congênere a que se refere o art. 99 da Lei 8.112/90, somente poderá ser efetivada de estabelecimento público para público ou de privado para privado, salvo a inexistência, no local de destino, de instituição de ensino da mesma natureza”) não atenta contra a decisão do Plenário da Suprema Corte que, ao julgar a ADI 3324/DF, relator Ministro MARCO AURÉLIO (Carta Magna, art. 102, § 2º), uma vez que nesse caso (inexistência no local de destino de instituição da mesma natureza), a vedação em causa é “derrotável”, porquanto o legislador, ao editar o dispositivo em referência, não considerou essa circunstância em sua formulação normativa, de forma que o princípio do direito constitucional à educação (Carta Magna, art.205), bem como o de que as normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente “derrotam” a vedação contida no referido dispositivo legal. 3. Embargos de declaração não providos. (EDAMS 00055488020014013500, Juiz Federal Leão Aparecido Alves (CONV.), DJe 18/04/2005)

No que atine ao STF e ao STJ, ambos já derrotaram normas sob todos os pretextos, mas ainda não empregaram a terminologia da derrotabilidade (defeasibility). O Excelso Pretório se valeu dessa metodologia, por exemplo, na ADIn 3689/PA.

O maior obstáculo à derrotabilidade das regras é a dificuldade de discernir o que é uma exceção implícita e aquilo que deve ser considerado como um silêncio eloquente por parte do legislador. O erro por parte do julgador implica uma ferida na democracia.

Quando o assunto é derrotabilidade das regras, não se pode conhecer aquém disto.

Dou por inaugurada, no blog da EBEJI, nossa coluna de altos estudos em Direito Constitucional. Voltada para concursos, é bem verdade, mas sempre escrita para aqueles que, assim como eu, nutrem amor pelas ciências jurídicas.

Um forte abraço do articulista.

Samuel Sales Fonteles