O Novo Código Penal e os Crimes Relativos a Estrangeiros

 

O projeto de Código Penal em tramitação no Senado Federal (PLS 236/2012) representa mais uma etapa nos esforços de reforma que remontam à década de 1960. Caso se converta em lei e entre em vigor, consistirá na quarta grande modificação da Parte Geral desde a edição do Código vigente. Das outras três, duas se limitaram à disciplina das penas – Leis 6.416/1977 e 9.714/1998 – e a remanescente, posto que tenha instituído uma nova Parte Geral, igualmente se concentrou nesse mesmo aspecto (Lei 7.209/1984).

O Título XVI do Projeta apresenta uma grande inovação no ordenamento jurídico brasileiro, ao deixar consignadas condutas inéditas para os estrangeiros. Veja-se:

 

“TÍTULO XVI

DOS CRIMES RELATIVOS A ESTRANGEIROS

Uso de informações falsas

Art. 466. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território nacional, nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou qualquer documento falso:

Pena – prisão, de dois a cinco anos.

Atribuição falsa de qualificação ou informação

Art. 467. Atribuir a estrangeiro qualificação ou informação que sabe não ser verdadeira, para promover-lhe a entrada ou permanência em território nacional:

Pena – prisão, de dois a cinco anos.

Introdução clandestina

Art. 468. Introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino ou irregular:

Pena – prisão, de dois a cinco anos.

Declaração falsa

Art. 469. Fazer declaração falsa em processo de transformação de visto, de registro, de alteração de assentamentos, de naturalização, ou para a obtenção de passaporte para estrangeiro ou documento de viagem laissez-passer:

Pena – prisão, de dois a cinco anos.

Retenção indevida de passaporte

Art. 470. Reter, indevidamente, o passaporte de estrangeiro no território nacional:

Pena – prisão, de dois a cinco anos.

Parágrafo único. Se a retenção do passaporte do estrangeiro tiver como finalidade submetê-lo a qualquer forma de exploração sexual, ao exercício de trabalho forçado ou a qualquer trabalho em condições análogas à de escravo:

Pena – prisão, de três a seis anos.

Propriedade ou posse ilegal de bens

Ari. 471. Prestar-se a figurar como proprietário ou possuidor de propriedade, meios de comunicação, empresa, ação, título ou valor pertencente a estrangeiro, nos casos em que a este é vedada por lei a propriedade ou a posse de tais bens:

Pena – prisão, de dois a quatro anos.

Refugiados

Art. 472. O requerimento da condição de refugiado suspende a persecução penal dos crimes previstos nos arts. 466 a 469. Se essa condição é deferida, a punibilidade deles é extinta.

Parágrafo único. Incide nas penas dos artigos 466 e 467 quem usar ou atribuir a terceiro nome, dados de qualificação ou de origem falsos, prestar informações não verdadeiras ou empregar documentos falsos para fins de obtenção da condição de refugiado.”

 

De início, cabe esclarecer que o caput do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil determina:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

Yussef Said Cahali, em sua obra Estatuto do Estrangeiro, assim discorre sobre as distinções entre os brasileiros e estrangeiros:

“Dentre dessas perspectivas, os Estados, ainda que de ordinário adotem o sistema da igualdade, estabelecem numerosas restrições à regra geral, de modo que a equiparação dos estrangeiros aos nacionais não é completa, nem quanto aos direitos públicos, excluídos os direitos políticos, que, geralmente, são recusados aos estrangeiros, nem quanto aos direitos privados.

Tal acontence com o direito brasileiro, onde várias leis, por motivos óbvios, que entendem com a segurança nacional e a defesa do Estado, com a ordem econômica e de educaçãoe cultura, recusam ao estrangeiro o gozo de certos direitos, que são exclusivos de nacionais. A igualdade, pois, entre nacionais e estrangeiros não pode ser tomada ao pé da letra, mas sim com sentido de que se refere aos direitos naturais e garantias elementares de vida, liberdade, família e propriedade. E daí a razão por que o preceito constitucional que a estabelece, legitimamente entendido, não impede restrições à capacidade dos estrangeiros, toda vez que o exijam as conveniências do Estado.

Em realidade, apenas formalmente se pode pretender que a igualdade jurídica dos nacionais e estrangeiros esteja integrada na nossa tradição constitucional.

É certo que a Constituição de 1891, em seu art. 72, pr., estatuíra: ‘A Constituição assegura, a brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade’; e semelhante garantia reaparece nas Constituições posteriores.” (op. cit. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 2. ed. p. 365)

Verifica-se, portanto, que a igualdade entre os brasileiros e estrangeiros no ordenamento jurídico brasileiro não é absoluta, garantindo apenas que os alienígenas tenham acesso aos direitos fundamentais elencados na nossa Constituição. Nesse aspecto, sob o ponto de vista da possibilidade de tipificação de condutas aos estrangeiros, de uma maneira abstrata, não se vislumbra nenhuma incompatibilidade entre tais dispositivos previstos no Projeto de Lei e o ordenamento constitucional brasileiro.

Nada obstante já tenha sido demonstrado que a igualdade entre estrangeiros e brasileiros não é absoluta, torna-se passível de argumentação que alguns artigos do Projeto do Novo Código Penal brasileiro, em discussão no Congresso Nacional, podem criminalizar os movimentos migratórios e poderão, igualmente, afetar solicitantes de refúgio e migrantes que chegam ao Brasil de forma irregular, assim como as organizações e indivíduos solidários com essas populações.

Assim, merecem reflexão tais dispositivos que podem conflitar com os compromissos internacionais da República Federativa do Brasil com o Direito Internacional Humanitário e os Direitos Humanos, bem como com as garantias já previstas na legislação brasileira aos solicitantes de refúgio que buscam proteção internacional no Brasil.

É inegável que o texto amplia a criminalização da irregularidade migratória, prevendo a criação de novos tipos penais que podem, em algumas situações, desconsiderar eventuais circunstâncias extremas em que muitos estrangeiros têm ao deixar seus Estados de origem para fugir de perseguições baseadas em questões de nacionalidade, raça, religião, opinião política ou no fato de pertencerem a determinado grupo social – questões que são a base para pedidos de refúgio, segundo a lei brasileira e as convenções internacionais sobre o tema.

A República Federativa do Brasil é signatária da Convenção de 1951 da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados e que possui uma lei nacional sobre o tema – Lei n.º 9.474/1997, considerada avançada em relação à proteção de estrangeiros refugiados.

Dessa forma, notadamente os artigos 466 a 472, contidos no Título XVI do anteprojeto do novo Código Penal brasileiro podem, eventualmente, criminalizar o estrangeiro que usar documentos falsos ou fizer declarações inverídicas para entrar no país e solicitar refúgio. Sobre os indivíduos e organizações que apoiam estas populações, será considerado crime atribuir informações ou qualificações inverídicas aos estrangeiros para promover sua entrada ou permanência no território nacional (inclusive para assegurar-lhes a condição de refugiado), assim como promover sua entrada e abrigo de forma clandestina.

De certa forma, tais artigos revelam-se sensíveis porque não levam em consideração as peculiaridades inerentes ao deslocamento e à proteção dos solicitantes de refúgio e refugiados no mundo. A perseguição sofrida no país de origem impõe uma grave ameaça à vida, liberdade ou integridade física dos refugiados. E a fuga caracteriza-se pela urgência, o que inviabiliza a espera pela documentação adequada que permita o acesso regular ao país onde podem buscar asilo. Assim, não raro o refugiado é obrigado a valer-se de documentação adulterada justamente para conseguir sair do país onde a perseguição é perpetrada.

Com efeito, é comum que os refugiados viajem sem qualquer documento de identidade, o que exige dos países de acolhida a sensibilidade e capacidade técnica adequada à identificação dos estrangeiros que possuem um fundado temor de perseguição e que não podem ser criminalizados em decorrência dos meios utilizados para salvar sua própria vida.

Deve ficar destacado, no entanto, que o Projeto contém dispositivo muito semelhante com os artigos 33 e 34, da Lei n.º 9.474/1997, qual seja:

“Refugiados

Art. 472. O requerimento da condição de refugiado suspende a persecução penal dos crimes previstos nos arts. 466 a 469. Se essa condição é deferida, a punibilidade deles é extinta.

Parágrafo único. Incide nas penas dos artigos 466 e 467 quem usar ou atribuir a terceiro nome, dados de qualificação ou de origem falsos, prestar informações não verdadeiras ou empregar documentos falsos para fins de obtenção da condição de refugiado.”

No entanto, como restou demonstrado, o tema “Refugiados” é de extrema sensibilidade, seja em razão dos compromissos internacionais assumidos pela República Federativa do Brasil, seja em razão da situação excepcional das pessoas que buscam tal proteção, já devidamente fragilizadas em razão de perseguições das mais variadas naturezas.