Vanessa Siqueira é Procurador do Rio de Janeiro

e Professora da EBEJI

EBEJI

O princípio da não vinculação ou da não afetação, plasmado no art. 167, IV, da Constituição da República, tem a ver com o elemento finalístico dos impostos. Como se sabe, o imposto é espécie de tributo desvinculado nas duas “pontas”. Explica-se: nos impostos, não há vinculação quanto ao fato gerador, o qual não se origina de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte; tampouco há vinculação no que se refere ao produto arrecadado, já que a receita oriunda dos impostos deve ser vertida para as despesas genéricas do Estado, notadamente as despesas relacionadas aos serviços públicos uti universi.

Neste sentido, o princípio da não vinculação diz respeito àquilo que se deve fazer com o produto arrecadado a título de impostos. De feito, está-se diante de ordem dirigida ao legislador, que, de pronto, se vê impedido de atrelar a receita proveniente dos impostos a fundo, órgão ou despesa.

O princípio se justifica na medida em que reserva, ao orçamento e à própria Administração – em sua atividade discricionária na execução da despesa pública –, espaço para determinar os gastos com investimentos e políticas sociais. No entanto, o princípio em tela tem pouca aplicação, já que as normas do Direito Administrativo e do Direito Econômico, conforme adiante explicitar-se-á, vinculam grande parte das receitas.

Como se viu, não poderia haver uma lei dispondo acerca da vinculação da receita de determinado imposto a fundo, órgão ou despesa específica. Nada obstante a determinação constitucional, o princípio em debate comporta 8 exceções. Isto quer significar que o legislador constituinte ora vinculou a receita oriunda de imposto a uma despesa específica, ora permitiu fosse vinculada a receita de imposto a uma despesa específica.

Dentre as exceções, duas delas advieram originalmente no texto constitucional, quais sejam: as transferências constitucionais (repartição obrigatória de receitas) e a manutenção do ensino. As demais exceções foram enxertadas na Constituição por obra do constituinte derivado e estão espalhadas pelo texto constitucional, muito embora reunidas, em remissão, no art. 167, inciso IV, parte final, e no parágrafo quarto do mesmo artigo.

Assim, em apertada síntese, a receita dos impostos não será vinculada, excetuadas oito situações, quais sejam:

  • a) repartição constitucional das receitas, consoante prescreve a Constituição da República, nos arts. 157 a 162. Trata-se a distribuição intergovernamental de receitas de instrumento financeiro que cria para os entes políticos menores o direito a uma parcela do produto arrecadado pelo ente maior;
  • b) manutenção do ensino, nos termos do art. 212 da Constituição da República, o qual determina que a União nunca aplique menos que 18% da receita dos impostos em educação, e os Estados e Municípios, nunca menos que 25%;
  • c) oferecimento de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com esta. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, ao celebrarem contrato de empréstimo com a União, precisam garanti-lo, de molde que, após a EC n.º 3/93, adveio a possibilidade das receitas tributárias constituírem objeto desta garantia;
  • d) implementação da saúde, nos percentuais definidos pela LC n.º 141/12 (EC n.º 29/00);
  • e) vinculação de verbas federais, estaduais e municipais a Fundos de Combate e Erradicação da Pobreza, consoante rezam os art 81 e 82 do ADCT (EC n.º 31/00);
  • f) realização de atividades da administração tributária (EC n.º 42/03), suplementando a norma disposta no art. 37, inciso XXII, da Lei Maior;
  • g) vinculação de verbas estaduais a programas de apoio à inclusão e promoção social, até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, consoante preconiza o parágrafo único do art. 204 da Carta Magna (EC n.º 42/03);
  • h) vinculação de verbas estaduais a fundo estadual de fomento à cultura, até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para fins de financiar programas e projetos culturais, nos moldes do consubstanciado no art. 216, 6.°, da Carta Magna (EC n.º 42/03).

Ante o exagerado número de exceções, é intuitivo concluir que o nosso orçamento tornou-se absolutamente rígido, porquanto, muito embora a Constituição – em tese – propugne pela não vinculação, o que existe, à luz das exceções constitucionais, é verdadeira vinculação, posto que a receita oriunda dos impostos encontra-se, em sua quase totalidade, vinculada, nos termos lá consubstanciados.

Destarte, uma vez caracterizada a excessiva rigidez orçamentária ditada pelas inúmeras vinculações, precisou-se criar um instrumento de modo a que se promovesse a necessária e imperiosa desvinculação. Isto se deveu ao fato de que ao Presidente, no momento da confecção da peça orçamentária, não restava margem de manobra suficiente para dizer onde e como se devia gastar, sendo certo que este passou a contar, apenas, com cerca de 10% de discricionariedade para elaborar o projeto de lei orçamentária, lembrando, nesse particular, que pertence ao Chefe do Executivo a iniciativa da confecção dos projetos de leis orçamentárias.

Na prática, pois, há genuína vinculação, e, em tese, somente em tese, é que se tem a originalmente almejada desvinculação.

Nesta ordem de ideias, o constituinte derivado procurou envidar esforços no sentido de contemporizar essa excessiva rigidez orçamentária, pelo que concebeu um instrumento de sorte a promover a desvinculação, atualmente denominado Desvinculação de Receitas da União (DRU), que nada mais é do que um fundo integrado por 20% de tudo o quanto a União vier a arrecadar a título de impostos, contribuições sociais e contribuições de intervenção do domínio econômico, nos moldes tais como preconiza o art. 76 do ADCT.

A DRU adveio sob o codinome de Fundo Social de Emergência, por intermédio da Emenda Constitucional de Revisão n.º 1, que, em verdade, enfraqueceu o princípio da não vinculação, ao criar, nos exercícios de 1994 e 1995, o referido fundo, contando com os recursos oriundos da arrecadação do IOF, do IR, da CSLL, bem como de 20% da arrecadação de todos os tributos da União. Tal Fundo fora prorrogado pela EC n.º 10/96 e pela EC n.º 17/97, passando a ser denominado Fundo de Estabilização Fiscal. Pela EC n.º 27/00, o seu nome fora alterado para Desvinculação da Receita da União (DRU), que desvinculou de órgão, fundo ou despesa, no período de 2000 a 2003, 20% da arrecadação de impostos, contribuições sociais e contribuições de intervenção no domínio econômico. Registre-se que, com a promulgação da EC n.º 42/03 – responsável pela Reforma Tributária – houve nova prorrogação, nos termos do art. 76 do ADCT. Em seguida, a EC n.º 56/07 levou a efeito, nos mesmos moldes da EC n.º 42/03, outra prorrogação. Finalmente, a EC n.º 68/11 deu novo fôlego à desvinculação, prorrogando o aludido mecanismo até o dia 31 de dezembro do corrente ano.

Grande abraço, Vanessa Siqueira.