O livre convencimento motivado é um dos corolários que marcam o processo civil brasileiro.
Ao magistrado é conferida a prerrogativa de decidir motivadamente conforme seu livre convencimento, ainda que seja para divergir de outros julgados.
É bem verdade que há um informativo de unificação do sistema judiciário brasileiro, segundo o qual o precedente passa a ter uma força persuasiva mais forte, quando não vinculante.
Podemos citar de passagem o chamado ‘stare decisis’ em sentido horizontal do Artigo 285-A do CPC, autorizando o indeferimento liminar da inicial quando, naquele juízo (e eu particularmente entendo “juízo” como um termo objetivo), houver múltiplas decisões no mesmo sentido. Penso que se o dispositivo autoriza a rejeição de plano da petição, ao juiz que desejar (motivadamente) mudar o entendimento já sedimentado deverá ser exigido um esforço argumentativo diferenciado e consistente.
Ou seja, há – talvez ainda timidamente (ou não) – um apelo para que se guarde uniformidade na jurisdição, evitando a chamada “jurisprudência lotérica”, onde a ação tem sua sorte definida na distribuição ao juiz ‘x’ ou ‘y’, ou na substituição/férias de determinado magistrado.
O sistema pede uniformidade.
Mas o que vem a ser a doutrina da tolerância da interpretação divergente?
Vejamos o texto da Súmula 343/STJ:
“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”
O verbete autoriza que o juiz pense diferente, sem ter cassada a sua decisão no futuro.
É o que se convém chamar de tolerância da interpretação divergente.
Havendo teses em contraponto no Judiciário, a sentença exarada pelo julgador, com respaldo em um dos entendimentos existentes, não se sujeitará ao corte rescisório caso – no futuro – a orientação seja diversa.
Essa súmula prestigia o livre convencimento motivado.
Contudo, sabemos que o Supremo Tribunal Federal afasta a aplicabilidade da Súmula 343/STF em matérias constitucionais.
A razão disso é o resultado de uma ponderação principiológica: a interpretação final, dada pelo guardião da constituição, deve prevalecer diante da tolerância da interpretação divergente.
É mais relevante, considerando essa situação, dar prioridade à aplicação da força normativa da carta magna.
Entretanto, podemos visualizar outra questão de igual envergadura para afastar a Súmula 343/STF: a isonomia.
Ora, em termos matemáticos hipotéticos, consideremos que o Judiciário encontra-se dividido entre duas teses, 50% no ‘branco’ e 50% no ‘amarelo’.
As partes recebem decisões diametralmente opostas em relação ao mesmo pleito.
Quando a tese aporta no Supremo Tribunal Federal, corte de sobreposição interpretativa constitucional, a razão fica com os 50% ‘amarelos’.
Que sucederá em termos de isonomia com aqueles litigantes vizinhos, amigos, contribuintes, aposentados, consumidores e etc que receberam os 50% ‘brancos’?
É justo que assistam aos 50% sucumbentes/vitoriosos sem lhe socorrer qualquer medida judicial?
Penso que não. A ação rescisória nesse caso se mostra como uma via inevitável em socorro da isonomia na aplicação do direito aos mesmos fatos da vida.
As paredes das varas não podem proporcionar soluções dispares em relação àqueles que se encontram no mesmo contexto. O Poder é uno e o Judiciário também precisa ser.
Agora é que se pode chegar ao ponto: e porque não relativizar o verbete também em relação aos julgados do STJ, notadamente aqueles representativos de controvérsia, firmados na sistemática de amostragem?
De fato, a supremacia constitucional não é mais fundamento. Mas e a isonomia jurídica?
Vejamos então, especificamente a esse respeito, a ementa do RESP 1.163.267:
“RECURSO ESPECIAL Nº 1.163.267 – RS (2009/0206097-0)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : LUIZ CAMILO TEIXEIRA
ADVOGADO : CLAUDIO GONSIOROCKI MOMBRU E OUTRO(S)
RECORRIDO : FUNDAÇÃO BRTPREV
ADVOGADO : FABRÍCIO ZIR BOTHOMÉ E OUTRO(S)
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. SENTENÇA RESCINDENDA. JULGAMENTO CONTRÁRIO A ENTENDIMENTO SUMULADO NO STJ (SÚMULA N. 289). DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL SUPERADO. SÚMULA N. 343/STF. NÃO INCIDÊNCIA. SEGURANÇA JURÍDICA. UNIFORMIDADE E PREVISIBILIDADE DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NECESSIDADE.
1. A principiologia subjacente à Súmula n. 343/STF é consentânea com o propósito de estabilização das relações sociais e, mediante a acomodação da jurisprudência, rende homenagens diretas à segurança jurídica, a qual é progressivamente corroída quando a coisa julgada é relativizada.
2. Porém, o desalinho da jurisprudência – sobretudo o deliberado, recalcitrante e, quando menos, vaidoso – também atenta, no mínimo, contra três valores fundamentais do Estado Democrático de Direito: a) segurança jurídica, b) isonomia e c) efetividade da prestação jurisdicional.
3. A Súmula n. 343/STF teve como escopo a estabilização da jurisprudência daquela Corte contra oscilações em sua composição, para que entendimentos firmados de forma majoritária não sofressem investidas de teses contrárias em maiorias episódicas, antes vencidas. Com essa providência, protege-se, a todas as luzes, a segurança jurídica em sua vertente judiciária, conferindo-se previsibilidade e estabilidade aos pronunciamentos da Corte.
4. Todavia, definitivamente, não constitui propósito do mencionado verbete a chancela da rebeldia judiciária. A solução oposta, a pretexto de não eternizar litígios, perpetuaria injustiças e, muito pelo contrário, depõe exatamente contra a segurança jurídica, por reverenciar uma prestação jurisdicional imprevisível, não isonômica e de baixa efetividade.
5. Assim, a Súmula n. 343/STF não obsta o ajuizamento de ação rescisória quando, muito embora tenha havido dissídio jurisprudencial no passado sobre o tema, a sentença rescindenda foi proferida já sob a égide de súmula do STJ que superou o mencionado dissenso e se firmou em sentido contrário ao que se decidiu na sentença primeva.
6. Recurso especial provido para, removendo-se o óbice da Súmula n. 343/STF, determinar o retorno dos autos à Corte Estadual para que se prossiga no julgamento da ação rescisória.”
De plano há que se fazer o seguinte comentário: embora a segurança jurídica respalde a estabilização das relações sociais e a súmula 343 venha em favor disto, pode-se entender que o mesmo princípio autoriza a relativização do verbete.
É que a segurança jurídica, além de primar pela estabilização dos conflitos sociais deve se ater igualmente à forma como há essa estabilidade.
É estável um conflito social, em termos gerais, que divide os jurisdicionados e impede alguns de obter o mesmo resultado, estando em uma mesma situação fática?
É legítimo, do ponto de vista da capacidade contributiva, que alguns contribuintes afastem uma exação e outros não, tendo todos praticado o mesmo fato gerador?
Assim, é de se refletir qual segurança jurídica se quer primar: a individual ou a que respeita a força dos precedentes das Cortes Superiores, tribunais de sobreposição interpretativa – seja das Leis, seja da Constituição.
Tanto que no item 2 da ementa acima, o Tribunal se refere novamente ao princípio da segurança jurídica.
Entretanto, da leitura atenta do julgado, percebe-se que há uma peculiaridade a ser considerada: à época da prolação da sentença, já havia súmula do STJ sobre o tema (item 5 da ementa). Ou seja, a problemática não era divergente.
Entretanto, as súmulas da jurisprudência dominante não são vinculantes, mas simplesmente persuasivas.
Ao autorizar o prosseguimento da ação rescisória com base em verbete persuasivo do tribunal, o STJ deu um passo à frente no debate acerca da relativização da súmula 343.
É preciso ficar atento às decisões futuras que envolvam o mesmo tema, notadamente quando for o caso de aplicação de repetitivo como paradigma de relativização.
Portanto, fica a dica para que o candidato esteja atento aos novos contextos que podem advir da técnica de julgamento por amostragem e sistemática de recursos repetitivos, no contexto da admissibilidade da ação rescisória.
Abraços,
Renato Cesar Guedes Grilo.
Procurador da Fazenda Nacional
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