Olá pessoal, tudo certo?

Hoje conversaremos sobre um tema bastante interessante e que já foi e certamente será objeto de provas de concurso público na área criminal. A Teoria da Cegueira Deliberada, das Instruções do Avestruz ou ainda da Evitação da Consciência, além de receber essas peculiares designações, traz consigo também uma série de polêmicas quanto às consequências de sua aplicação prática.

Para justificar o seu nome, a doutrina aponta a imagem figurativa de um avestruz que, diante de um situação “suspeita”, para não tomar conhecimento dela e se comprometer, opta por colocar sua cabeça em um buraco e deixar, propositadamente, de enxergar o que se passou. Dessa maneira, não poderá ser acusado que sabia do que eventualmente ocorreu naquele momento.

Pedro, não entendi! O que tem a ver uma avestruz com a cabeça no buraco e o direito penal?

Calma, essa é apenas uma imagem figurada. Para ficar mais claro, deixe-me trazer um exemplo prático real. Imagine que um vendedor de joias, no final de seu expediente, quase fechando o estabelecimento comercial, recebe a visita de 4 pessoas vestidas de maneira simples e um tanto afoitas. Ato contínuo, colocam sobre o balcão da loja R$ 100.000,00 (cem mil reais) em notas de R$ 50,00, todas com um ar de mofo (muito tempo guardadas). Após mostrar o dinheiro, os clientes pedem para que o vendedor entregue quaisquer joias, cujos valores culminem no total de R$ 100.000,00 (justamente a quantia que eles dispõem).

Agora as perguntas que devem ser feita: (i) há elementos que sugiram que os valores envolvidos são ilícitos? (ii) o vendedor deve recusar realizar a venda? (iii) Se realizar a venda, estaria atuando com dolo?

Se o vendedor, apesar da inusitada situação, não faz qualquer tipo de questionamento e efetiva a venda, sem dúvidas ele está se colocando em situação deliberada de não conhecimento (ou de ignorância permanente) acerca de todos os fatos, apesar da evidente possibilidade de ciência. É essa a ideia da teoria da cegueira deliberada!

Aquele agente que se coloca deliberadamente em estado de ignorância ou cegueira, evitando a consciência do crime, deve responder por dolo eventual? Ou, lado contrário, ao evitar a consciência delitiva o agente estaria sem qualquer dolo e, portanto, sua conduta seria atípica?

No direito brasileiro, essa doutrina passou a ter (ainda mais) relevância prática a partir da modificação realizada em 2012 na Lei de Lavagem de Capitais. É que, antes da modificação, havia a previsão de punição também daquele que se “utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo”, ou seja, claramente havia a exigência de um dolo DIRETO para a verificação do crime de lavagem de capitais.

Contudo, com a redação conferida pela Lei 12.683/2012, aparentemente o legislador afastou a exigência do dolo direto, admitindo também o dolo eventual, já que o parágrafo 2º, I da Lei de Lavagem de Capitais passou a adotar um texto menos restritivo. Vejamos:

Art. 1o  § 2o  Incorre, ainda, na mesma pena quem:  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

A partir dessa modificação, parcela da doutrina passou a afirmar que se restar comprovado que o agente acusado de ter praticado crime de lavagem de capitais tiver se colocado em posição deliberada de permanecer sem o conhecimento acerca dos fatos integrais e tinha essa possibilidade (como ocorreu em nosso exemplo acima), teríamos uma conduta típica, já que presente o elemento subjetivo exigido, qual seja, o dolo, em sua modalidade eventual!

Como bem anotado por Renato Brasileiro, “restará configurado o delito, a título de dolo eventual, quando comprovado que o autor da lavagem de capitais tenha deliberado pela escolha de permanecer ignorante a resposto de todos os fatos quando tinha essa possibilidade. Em outras palavras, conquanto tivesse condições de aprofundar o seu conhecimento quanto à origem dos bens, direitos ou valores, preferiu permanecer alheio a esse conhecimento, daí porque deve responder pelo crime a título de dolo eventual. Afinal, nos mesmos moldes que a actio libera in causa, positivada no artigo 28, II do CPB, ninguém pode beneficiar-se de uma causa de exclusão da responsabilidade penal provocada por si próprio”[1].

Apesar da cada vez maior popularidade da aplicação da teoria da cegueira deliberada para atestar o dolo eventual nos crimes de lavagem, fato é que essa polêmica longe está de ser pacífica! É que importante corrente se posiciona em sentido diverso. É muito complicado afirmar e comprovar no caso concreto se houve um efetivo dolo (vontade + consciência) de se colocar na condição de ignorância permanente para se beneficiar da situação e, ainda, que essa postura tenha se dado para evitar o conhecimento de um ilícito penal.

A linha de diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente é bastante tênue. Ocorre que, ao se aplicar a cegueira deliberada como comprovação de um dolo eventual, pode-se legitimar, de maneira enviesada, a punição de um fato cujo elemento subjetivo é a culpa consciente!

E qual o problema disso?

É que a lavagem não é punida com culpa (seja de que modalidade for)! Então, estaríamos diante de um instrumento com muita chance de autorizar uma responsabilização penal objetiva!

Entendo que é ainda preciso muito cuidado e uma melhor definição dos critérios para a utilização legítima da teoria da cegueira deliberada para justificar o dolo eventual. Apesar da minha particular posição, deve-se registrar que a sua adoção é cada vez maior na prática, mormente após as modificações legais de 2012!

Espero que tenham entendido e gostado!

Vamos em frente!

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Ed. Jus Podivm, 2ª Edição, pág.320.

Conheça o NOVO MENTORING DPE/PR da EBEJI.