No que consiste a deslegalização? (delegificação ou degradação da hierarquia normativa ou,

ainda, descongelamento da classe normativa).

EBEJI

Prezados amigos do blog, trataremos de um tema que não é novo, mas tem sido, constantemente, cobrado pelo CESPE. Por isso, é importante compreender bem o instituto e seus sinônimos, para não sermos surpreendidos.

Pois bem, é decorrência do princípio da separação dos Poderes, expressamente previsto na Carta Republicana de 1988, em seu artigo 2º, que as funções do Estado dividem-se em legislativa, executiva e decisória.

No que concerne ao viés legislativo, é dado ao Congresso Nacional dispor sobre todas as matérias de competência da União (art. 48 da CRFB/88), reservando-se ao Poder Executivo a possibilidade de participação no processo legislativo quando oferta medidas provisórias (haja vista a extinção da figura do decreto-lei) ou projetos de lei, de sua iniciativa.

Note-se que, no Brasil, é a lei o veículo próprio de inovação na ordem jurídica ou, em outras palavras, é reservado ao Poder Legislativo disciplinar, de forma inédita, as questões reservadas pelo Poder Constituinte aos entes federativos (União, Estados e Municípios), competindo ao Poder Executivo regulamentar, se o caso, os diplomas legais expedidos, aclarando-o, sem extrapolar as suas balizas, ou seja, sem avançar para criar deveres novos aos destinatários da lei, pena de nulidade.

De outro lado, a experiência francesa demonstra a adoção de um sistema distinto, reservando-se determinado feixe de matérias ao Poder Executivo, que delas pode dispor na íntegra, sem interferência do órgão legislativo, cuja competência fica adstrita a outra gama de questões.

No citado exemplo europeu, o decreto executivo, genuinamente, tem a aptidão para inovar na ordem jurídica, posto que, dentro da matéria que lhe compete, atua tal como a lei, fenômeno denominado pela doutrina de deslegalização ou delegificação (a última denominação é adotada por Diogo de Figueiredo).

E no Brasil, é possível cogitarmos uma inovação jurídica por meio de atos normativos do Executivo? O professor José Santos Carvalho Filho defende a possibilidade em sede de agências reguladoras, que gozariam de um poder técnico expandido, haja vista que o legislador seria incapaz (na verdade, inapto) a disciplinar todas as questões particulares afetas aos objetivos institucionais daquelas entidades autárquicas especiais. (In Manual de Direito Administrativo, Atlas, 27ª ed., p. 59, São Paulo: 2014).

Sobre o assunto, ensina Rafael Oliveira que a deslegalização estaria presente, no Brasil, quando a própria lei dispusesse que determinada questão seria tratada por ato regulamentar do Poder Executivo, vale dizer, a opção legislativa teria o condão de realizar uma “degradação hierárquica”, no sentido de que a matéria poderia ser abordada, com inovação na ordem, por ato infralegal, desde que respeitados os princípios e parâmetros contidos na lei “deslegalizadora”.

Deste modo, o regulamento expedido pela agência seria apto a inovar na ordem jurídica, não se restringindo à mera complementação da lei.

Diverso é o posicionamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem a atividade normativa das agências reguladoras, ainda que na seara técnica, em hipótese alguma, pode divorciar-se do princípio da legalidade, competindo apenas à lei a característica de inovação na ordem jurídica:

O verdadeiro problema com as agências reguladoras é o de saber até onde podem regular algo, sem estar, com isto, invadindo a competência legislativa. (…)

Dado o princípio constitucional da legalidade, e conseqüente vedação a que atos inferiores inovem inicialmente na ordem jurídica (…) resulta claro que as determinações normativas advindas de tais entidades hão de cifrar aspectos estritamente técnicos, que estes, sim, põem, na forma da lei, provir de providências subalternas…” (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 27ª ed., p. 172, São Paulo: 2010).

Por derradeiro, o termo “deslegalização” conecta-se à ideia de “descongelamento”. E isto porque uma matéria que seria regulada por lei (ou seja, cuja tratativa possuísse reserva legal, daí a expressão “congelamento do grau hierárquico”) poderia ser enfrentada por atos infralegais, “descongelando-se”, portanto, o grau hierárquico.

O conhecimento da distinção entre “congelamento” e “descongelamento”, em sede do instituto da “deslegalização”, foi exigido na prova objetiva do concurso de ingresso para juiz substituto do TRF da 1ª Região, aplicada em 2015 (questão 76). Confira-se o teor o enunciado, considerado errado pela banca examinadora (CESPE):

“A transferência das competências tipicamente legislativas para o novo ente administrativo, que passou a exercer a atividade regulatória, é um fenômeno conhecido como deslegalização ou como congelamento do grau hierárquico.”

A matéria também foi objeto da última prova da Advocacia-Geral da União (2015), na questão 9 do caderno tipo “padrão”, que apresentou os seguintes enunciado e assertiva:

“Foi editada portaria ministerial que regulamentou, com fundamento direto no princípio constitucional da eficiência, a concessão de gratificação de desempenho aos servidores de determinado ministério.

(…)

9 Na hipótese considerada, a portaria não ofendeu o princípio da legalidade administrativa, tendo em vista o fenômeno da deslegalização com fundamento na CF.”

O gabarito indicou a questão como errada, no que não merece reparos. É inconstitucional a criação de gratificação fundamentada, apenas, no princípio da isonomia, exigindo-se prévia lei (Enunciado n° 37 da Súmula Vinculante: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia”), não sendo o regulamento “autônomo” apto a justificar o aumento, por si só.

Como se pode notar, este é um bom tema para a segunda fase de concursos, em que pode ser explorado o conceito e a visão da doutrina. Em provas objetivas do CESPE, se for abordado, genericamente, se as agências reguladoras podem inovar na ordem jurídica, acredito ser uma opção segura adotar a corrente doutrinária que não admite tal efeito, a exemplo de Celso Antônio.

Excelente estudo a todos!

Bruno Luiz Dantas de Araújo Rosa

Advogado da União