O uso da falsa identidade está incluído dentro do direito constitucional à ampla defesa?

De maneira bem simples, pode-se dizer que o direito à ampla defesa é formado pelo binômio “defesa técnica + autodefesa”. E é em relação à sempre polêmica autodefesa (ainda muito timidamente valorada de maneira efetiva pela doutrina e jurisprudências pátrias) que se insere a compreensão da indagação do presente texto. É que nela se insere o conceito do direito ao silêncio de modo abrangente como o direito de não produzir prova contra si mesmo em uma persecução penal (Nemo tenetur se detegere).

O referido brocardo encontra guarida (direta e indiretamente) em importantes normativos aplicáveis à jurisdição nacional, como se depreende da leitura do art. 5º da CF/88, art. 8º, II, g do Pacto de São José da Costa Rica (CADH – Convenção Americana de Direitos Humanos) e ainda do próprio art. 186 do CPP. A existência formal, portanto, do direito ao silêncio como materialização da ampla defesa em sua faceta autodefesa é indene de questionamentos. O grande problema é até onde, no dia a dia prático dos Tribunais, essa garantia pode ser estendida?

Para responder à referida indagação de maneira mais direta, interessante apreciar questão que sempre (e nesse ano de 2014 não vem sendo diferente) se põe aos Tribunais Superiores, ou seja, será que o uso de documento falso ou de imputação de falsa identidade estaria incluída nesse “direito ao silêncio” ou, nesse caso, ainda que a correta identificação gerasse dano processual ao agente ele estaria obrigado a “produzir essa prova contra si”?

De início, foi possível identificar posicionamentos divergentes entre as principais Cortes brasileiras, já que o STJ, por ambas as Turmas (em posicionamento inicial muito favorável àqueles que se preparam para provas de Defensorias Públicas), asseverou que tanto a falsa identidade como o uso de documento falso estariam dentro dos limites do direito ao silêncio, razão pela qual tais condutas, nesses cenários, não poderia constituir ilícito penal. Vejamos:

HABEAS CORPUS. USO DE DOCUMENTO FALSO PARA OCULTAR A CONDIÇÃO DE FORAGIDO. EXERCÍCIO DE AUTODEFESA. ABSOLVIÇÃO. CRIME DE RECEPTAÇÃO. PENA-BASE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. REINCIDÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE BIS IN IDEM. REGIME PRISIONAL SEMIABERTO.

1. Consolidou-se nesta Corte o entendimento de que a atribuição de falsa identidade, visando ocultar antecedentes criminais, constitui exercício do direito de autodefesa.

2. No caso dos autos, a conduta atribuída ao paciente foi a de fazer uso de documento falso. É bem verdade que a finalidade era a mesma, ou seja, ocultar sua verdadeira identidade, por ser “procurado pela Justiça”. 3. Embora o delito previsto no art. 304 do Código Penal seja apenado mais severamente que o elencado no art. 307 da mesma norma, a orientação já firmada pode se estender ao ora paciente, pois a conduta por ele praticada se compatibiliza com o exercício da ampla defesa. 4. Absolvição que se impõe quanto ao crime de uso de documento falso.(…). (HC 151470/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 16/11/2010, DJe 06/12/2010).

Essa posição não se compactuava com o entendimento prevalente no STF, no sentido de apontar a inadequação das condutas tipificadas nos artigos 304 e 307 do CPB como manifestações do Nemo tenetur se detegere. Inclusive, houve repercussão geral da matéria, no julgamento do Recurso Extraordinário 640. 139. Vejamos:

EMENTA CONSTITUCIONAL. PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL. ATRIBUIÇÃO DE FALSA INDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA. ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE DA CONDUTA CONFIGURADA. O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes.
(RE 640139 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 22/09/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-05 PP-00885 RT v. 101, n. 916, 2012, p. 668-674 ).

Nesse caminhar, é preciso registrar que a antiga distinção de posicionamentos não mais existe entre o STJ e o STF. Isso porque, após o reconhecimento da repercussão geral e o posicionamento ratificado pelo Supremo, o Superior Tribunal de Justiça, no final de 2013, apreciou através da 3ª Seção (que reúne as 2 Turmas especializadas em matéria criminal) modificou de vez o sua antiga postura para agora registrar que “não há falar em manifestação de autodefesa quando o agente, com tal justificativa, pratica as condutas tipificadas nos artigos 304 e 307 do CPB”. Atente-se ao julgamento do Recurso Especial abaixo colacionado, uma vez que se deu através da sistemática de Recursos Repetitivos! Vejamos:

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. DIREITO PENAL. ART. 307 DO CP. PRISÃO EM FLAGRANTE. FALSA IDENTIFICAÇÃO PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. AUTODEFESA. INEXISTÊNCIA. TIPICIDADE DA CONDUTA DE FALSA IDENTIDADE. SUBMISSÃO AO RITO PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC E NA RESOLUÇÃO N. 8/2008 DO STJ.

1. Típica é a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa (art. 307 do CP). 2. O Supremo Tribunal Federal – ao julgar a repercussão geral no RE n. 640.139/DF, DJe 14/10/2011 – reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria controvertida, no sentido de que o princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, LXIII, da CF) não alcança aquele que se atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP).

3. Recurso especial provido exclusivamente para restabelecer a condenação do recorrido pelo delito de falsa identidade (art. 307 do CP), consoante o decisum de primeiro grau, mantido, no que não contrariar este voto, o acórdão a quo. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução n. 8/2008 do Superior Tribunal de Justiça. (REsp 1362524/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 23/10/2013, DJe 02/05/2014).

Assim, apesar de ainda ser interessante arguir o entendimento contrário em provas de 2ª fase e oral de Defensorias (em que se revela imperiosa a adoção de teses e posturas mais favoráveis ao réu) indubitavelmente que o STF (em repercussão geral) e o STJ (na sistemática de repetitivos) entendem que o uso de documento falso e de falsa identidade não estão englobados no exercício do direito constitucional da autodefesa.

É isso! Firmeza nos estudos!

Pedro Coelho