A aplicação de sanções na Lei de Responsabilidade Fiscal e a jurisprudência do STF

A Lei Complementar nº 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), foi editada para estabelecer limites aos entes da federação, aí incluídas as entidades da administração indireta, no que tange às finanças públicas, prevendo regras na elaboração e execução das leis orçamentárias, receita e dívida públicas, endividamento público, transferências voluntárias. Referida lei foi editada para regulamentar o art. 163 da CF/88 que inaugura a parte das Finanças Públicas.

Portanto, trata-se de lei complementar nacional que deve ser seguida também pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. Aliás, é o que consta expressamente logo na redação do §2º do art. 1º.

Art. 1o Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.

§ 2o As disposições desta Lei Complementar obrigam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Conforme dito, a LRF foi editada no intuito de impor controle dos gastos aos entes públicos, em especial aos estados e municípios, pois era prática corrente os governadores e prefeitos promoverem excessos na execução orçamentária no último ano de seus mandatos, “deixando a conta pra pagar” aos governantes sucessores. Além disso, trouxe normas para dar maior transparência aos gastos públicos.

Com base nesta ideia de limitar os gastos públicos, a LRF possui em seu texto uma parte específica para tratar das Despesas com Pessoal, em especial dispositivos que traçam limites e controle desta modalidade de despesa. Com efeito, são os artigos 19 e 20 da LRF que estipulam os limites de cada ente da federação com as despesas com pessoal atendendo ao art. 169 da CF/88 que atribui à lei complementar a fixação destes limites:

Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar. (Redação dada pela pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Além disso, a própria Constituição, no § 2º do art. 169[1], prevê a sanção ao ente público que não adaptar suas despesas com pessoal aos limites estabelecidos na lei complementar que consiste na suspensão de todos os repasses de verbas federais ou estaduais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Por sua vez, a LRF também prevê as sanções que podem ser aplicadas ao ente público que não obedecer aos parâmetros de despesas com pessoal ali estabelecido. O §3º do artigo 23 é o que regula a questão, nos seguintes moldes:

Art. 23. Se a despesa total com pessoal, do Poder ou órgão referido no art. 20, ultrapassar os limites definidos no mesmo artigo, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras, as providências previstas nos §§ 3º e 4o do art. 169 da Constituição.

§ 3o Não alcançada a redução no prazo estabelecido, e enquanto perdurar o excesso, o ente não poderá:

I – receber transferências voluntárias;

II – obter garantia, direta ou indireta, de outro ente;

III – contratar operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal.

Da mesma forma, o limite para a dívida consolidada dos entes da federação, patamar que é estabelecido por Resolução do Senado Federal (art. 52, inciso VI, da CF/88), se ultrapassado, também enseja a possibilidade do ente sofrer as sanções na LRF, conforme prevê seu art. 31, §1º:

Art. 31. Se a dívida consolidada de um ente da Federação ultrapassar o respectivo limite ao final de um quadrimestre, deverá ser a ele reconduzida até o término dos três subseqüentes, reduzindo o excedente em pelo menos 25% (vinte e cinco por cento) no primeiro.

§ 1o Enquanto perdurar o excesso, o ente que nele houver incorrido:

I – estará proibido de realizar operação de crédito interna ou externa, inclusive por antecipação de receita, ressalvado o refinanciamento do principal atualizado da dívida mobiliária;

II – obterá resultado primário necessário à recondução da dívida ao limite, promovendo, entre outras medidas, limitação de empenho, na forma do art. 9o.

Não demorou muito para a União começar a aplicar as sanções dos referidos dispositivos aos estados e municípios quando estes iam solicitar transferência voluntária de recursos ou contratar operações de crédito junto às instituições financeiras vinculadas à União (ex. BNDES).

Diante da negativa em obterem recursos federais, os estados e municípios se socorreram ao Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pela solução de conflitos entre os entes da federação (art. 102, inciso I, alínea f, da CF/88), argumentando a ilegalidade da negativa feita pela União com base no princípio da intranscendência subjetiva das sanções, o que vem sendo amplamente aceito e adotado pelo STF em seus julgados.

O princípio da intranscendência subjetiva das sanções consiste na ideia de que as restrições e sanções de ordem jurídica não podem ultrapassar o âmbito estritamente pessoal do infrator, ou seja, a sanção não pode ser aplicada contra agente estranho àquele que praticou o ato violador da norma.

Assim, com fundamento neste princípio, os estados e municípios sustentavam que não podiam ser penalizados quando um ente de sua administração indireta (autarquia, fundação ou empresa estatal) não respeitasse os limites de despesas públicas e/ou endividamento público previstos na legislação.

Neste caso, facilmente se observa que não possui amparo jurídico aplicar ao ente da federação (estado ou município) sanção quando a violação dos limites foi praticada por agente que possui personalidade jurídica própria e distinta, como é o caso das entidades da administração indireta.

No entanto, é curiosa a aplicação do princípio na seguinte situação: o estado ou município, por meio do poder executivo, solicita uma transferência voluntária à União ou uma operação de crédito (empréstimo) para aplicar em determinada política pública, mas lhe é negada, pois o poder legislativo, o Tribunal de Contas (no caso de alguns municípios), o judiciário ou o Ministério Público (no caso de estados) de seu território violou algum dispositivo da LRF.

Neste caso, o STF também aplica o princípio da intranscendência subjetiva das sanções, reconhecendo que o estado ou município, representado pelo poder executivo, não pode sofrer sanções por atos de outro poder ou órgão fora de sua estrutura.

Em outras palavras, ainda que o poder legislativo, judiciário, Ministério Público ou Tribunal de Contas não possuam personalidade jurídica própria e distinta do ente da federação a qual pertencem, os atos por si praticados violadores de dispositivos da LRF não podem prejudicar o referido ente.

O que em princípio parece ser absurdo pelo fato do ente ser uma pessoa jurídica própria integrada por órgãos destituídos de personalidade, é explicado ao se analisar os dispositivos da LRF e da CF/88.

O art. 2º da CF/88 assegura a independência dos três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário. Por sua vez, a independência pressupõe autonomia administrativa e financeira, reconhecida expressamente pela Constituição ao Poder Judiciário (art. 99) e ao Ministério Público (art. 127, §§ 2º e 3º). Por outro lado, a LRF traz os limites com as despesas com pessoal discriminado para cada poder (art. 20).

Assim, por dotarem de autonomia administrativa e financeira, o Poder executivo do ente federado não pode obrigar os demais poderes a cumprirem as disposições da LRF. Consequentemente, o poder executivo não pode sofrer as sanções por atos imputados a outros poderes. Conforme dito nas linhas acima, este é o entendimento pacífico no âmbito do STF. A título exemplificativo seguem as ementas de dois julgados:

“(…) – O Poder Executivo estadual não pode sofrer sanções nem expor-se a restrições emanadas da União Federal, em matéria de realização de operações de crédito, sob a alegação de que o Poder Judiciário, a Assembleia Legislativa, o Tribunal de Contas e o Ministério Público locais teriam descumprido o limite individual a eles imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 20, inciso II, “a”, “b” e “d”), pois o Governo do Estado não tem competência para intervir na esfera orgânica de referidas instituições, que dispõem de plena autonomia institucional a elas outorgada por efeito de expressa determinação constitucional. Precedentes” (AC 2659 MC-REF/MS, Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. 12/08/2010, DJe 23/09/2010).

“O ALTO SIGNIFICADO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A QUESTÃO DE SUA APLICABILIDADE AO ESTADO DO MARANHÃO: LIMITE GLOBAL E LIMITES SETORIAIS EM TEMA DE DESPESA COM PESSOAL (PODER LEGISLATIVO E MINISTÉRIO PÚBLICO). – O Poder Executivo do Estado do Maranhão não pode sofrer sanções nem expor-se a restrições impostas pela União Federal em tema de realização de operações de crédito, sob a alegação de que o Ministério Público e o Poder Legislativo locais teriam descumprido, cada qual, os limites individuais a eles impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 20, inciso II, “a”), pois o Governo do Estado do Maranhão não tem competência para intervir nas esferas orgânicas do Poder Legislativo e do Ministério Público, por se tratar de órgãos investidos de autonomia institucional, por força e efeito de expressa determinação constitucional. Precedentes. (ACO 1431 MC-REF, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/2009, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-01 PP-00007 RTJ VOL-00212- PP-00015 LEXSTF v. 31, n. 371, 2009, p. 42-53)”

Portanto, o fato dos órgãos e poderes dos entes não possuírem personalidade jurídica própria e integrarem a mesma pessoa jurídica não significa que o ato praticado por aquele que violou a LRF ensejará consequências jurídicas aos demais, tendo em vista a autonomia administrativa, financeira e orçamentária conferida a cada um deles. Obviamente, este entendimento restringe-se apenas às sanções da LRF não se aplicando nos casos de responsabilidade civil do Estado.

Por fim, este entendimento não é isento de críticas por aqueles que entendem que a não observância da LRF por um dos poderes deve gerar consequência para o ente federado, uma vez que integram a mesma pessoa jurídica.

Neste sentido se posicionou o Ministro Teori Zavascki na decisão monocrática proferida na ACO 1289/AC, que apesar de aplicar o entendimento pacífico do STF, ressalvou sua posição:

“[…]

Além disso, o Pleno do STF também uniformizou o entendimento no sentido de que o Estado só pode sofrer restrições nos cadastros de devedores da União por atos praticados pelo Executivo. Em consequência, atos do Legislativo, Judiciário, Ministério

Público, Tribunal de Contas e os entes da Administração Pública indireta (como as autarquias e as empresas públicas) não podem gerar sanções da União contra o Estado, diante da ausência de ingerência direta do Executivo sobre eles:

[…]

Ressalvo meu entendimento pessoal quanto a esse tema, em casos como os da espécie, em que o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal foi praticado por um dos Poderes de Estado (o Legislativo), que é órgão do próprio Estado. Considerar que tal descumprimento não traz consequências para o Estado significa uma forma indireta de irresponsabilidade por seus atos, ou por atos praticados por seus próprios órgãos internos (em contrariedade ao previsto no art. 2º, I, da Lei Complementar 101/2000).”

Dr. Diogo Oliveira, Advogado da União.

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