A legitimidade da defensoria pública para ações coletivas (Informativo 541/STJ)

Diante da sinalização de que a Defensoria Pública da União (DPU) está prestes a lançar edital para novas vagas de Defensor Público Federal e tendo em vista que algumas Defensorias Públicas Estaduais lançaram recentemente os seus concursos, acho pertinente a definição da questão da legitimidade desta instituição para as ações coletivas. Em especial pelo decidido na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Resp nº 1.192.577/RS, veiculado no informativo nº 541.

A legitimatio ad causam da defensoria pública para o ajuizamento de ação civil pública foi definitivamente resolvido a partir da edição da Lei 11.448/07 que colocou este ente como um dos legitimados para o ajuizamento de ação coletiva.

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 134, define que a defensoria pública é essencial à função jurisdicional do Estado e deixa claro que esta Instituição tem a missão de orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados econômicos, exercendo relevantes funções e possibilitando o acesso à justiça para aqueles que possuem uma hipossuficiência econômica (sendo esta a sua função típica).

Além dessa função, os Defensores Público desempenham um papel atípico que não pressupõe a hipossuficiência econômica, mas sim jurídica (necessitado jurídico), podendo citar como exemplo o curador especial (art. 9º, II do CPC) e o defensor dativo no processo penal (art. 265 do CPP).

Nas ações coletivas em geral um dos seus princípios informadores é o Princípio da Adequada Representação (legitimidade). Nas palavras de Fredie Didier e Hermes Zaneti Jr., in Curso de Direito Processual Civil, volume 4, tal princípio que impõe o controle judicial desta representação adequada, só estaria legitimado quem, após a verificação da legitimação pelo ordenamento jurídico, apresentar condições de adequadamente desenvolver a defesa em juízo dos direitos afirmados (legitimação conglobante). Ou seja, há a necessidade de verificar a chamada representatividade adequada, uma garantia constitucional advinda do devido processo legal coletivo.

Analisando o complexo legislativo que regula as atribuições da Defensoria Pública, cabe trazer à baila dispositivo previsto na Lei Complementar 80, de 12 de janeiro de 1.994:

Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:

(…)

VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;”

Este dispositivo deixa claro que a legitimidade da Defensoria para a ações coletivas impõe a análise sobre os possíveis beneficiários do resultado da demanda, sendo imprescindível que a lide possa beneficiar grupo que inclua pessoas caracterizadas como hipossuficientes.

Ademais, interpretando a Lei 7.347/85 sob a ótica da Constituição Federal, a legitimação extraordinária da Defensoria para o processo coletivo deve ser analisada em face de cada espécie de direito metaindividual tutelado em juízo, dado que sob o aspecto subjetivo há um limitador do exercício de sua função institucional. Isso porque as características diferenciadas desses “tipos” de direitos coletivos vão definir quais são as situações que a defensoria é legitimada e quais situações ela não é.

Sumariamente dizendo, os direitos coletivos podem ser de três espécies distintas:

(i)     Direitos Difusos: são aqueles transindividuais, pertencentes a uma coletividade, de natureza indivisível e cujos titulares são pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato, inexistindo qualquer vínculo de natureza jurídica, que afeta um número incalculável de pessoas sem que haja uma relação jurídica base;

(ii)    Direitos Coletivos Stricto Sensu: são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, pertencente a um grupo, categoria ou classe de pessoas indeterminadas, mas determináveis, que se ligam entre si ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base;

(iii)   Direitos Individuais Homogêneos: são aqueles direitos individuais com dimensão coletiva, decorrentes de uma origem comum, nascendo em consequência da própria lesão ou ainda da ameaça de lesão, não significando necessariamente uma unidade factual ou temporal. Trata-se de direitos marcados pela homogeneidade e pela possibilidade de identificar individualmente os lesados (ou ameaçados de lesão).

A jurisprudência do STJ em vários julgados (AgRg no AREsp 67205/RS; AgRg no REsp 1000421/SC; AgRg no AgRg no Ag 656360/RJ) admite a legitimidade de Defensoria Pública em ajuizar ações coletivas, não definindo de maneira clara a necessidade dos substituídos estarem caracterizados como hipossuficientes financeiros.

No julgamento do Resp 1.192.577/RS, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão (15/05/2014) o tribunal definiu a questão da pertinência subjetiva da defensoria, sendo importante a transcrição do julgado como publicado no Informativo nº 541:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA EM AÇÕES COLETIVAS EM SENTIDO ESTRITO.

A Defensoria Pública não possui legitimidade extraordinária para ajuizar ação coletiva em favor de consumidores de determinado plano de saúde particular que, em razão da mudança de faixa etária, teriam sofrido reajustes abusivos em seus contratos. A Defensoria Pública, nos termos do art. 134 da CF, “é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”. Assim, a Defensoria Pública é vertida na prestação de assistência jurídica ao necessitado que comprovar “insuficiência de recursos” (CF, art. 5º, LXXIV), isto é, aquele que, sem prejuízo da sua subsistência, não possuir meios de arcar com as despesas atinentes aos serviços jurídicos de que precisa – contratação de advogado e despesas processuais. Verifica-se que o legislador infraconstitucional, por meio da LC 80/1994 – responsável por organizar a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescrever normas gerais para sua organização nos Estados – também vincula a atuação da instituição em comento à defesa em prol dos necessitados. Portanto, diante das funções institucionais da Defensoria Pública, há, sob o aspecto subjetivo, limitador constitucional ao exercício de sua finalidade específica, devendo todos os demais normativos serem interpretados à luz desse parâmetro, inclusive no tocante aos processos coletivos, restringindo, assim, a legitimidade ativa dessa instituição para atender efetivamente as suas funções institucionais conferidas pela CF. Diante disso, conforme entendimento doutrinário, a Defensoria Pública tem pertinência subjetiva para ajuizar ações coletivas em defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, sendo que, no tocante aos difusos, sua legitimidade será ampla, bastando, para tanto, que beneficie grupo de pessoas necessitadas, haja vista que o direito tutelado é pertencente a pessoas indeterminadas, e, mesmo que indiretamente venham a ser alcançadas pessoas que tenham “suficiência” de recursos, isso, por si só, não irá elidir essa legitimação. No entanto, em se tratando de interesses coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos, diante de grupos determinados de lesados, a legitimação deverá ser restrita às pessoas notadamente necessitadas. Posto isso, deve-se considerar que, ao optar por contratar plano particular de saúde, parece intuitivo que não se está diante de consumidor que possa ser considerado necessitado, a ponto de ser patrocinado, de forma coletiva, pela Defensoria Pública. Ao revés, trata-se de grupo que, ao demonstrar capacidade para arcar com assistência de saúde privada, acabou como em condições de arcar com as despesas inerentes aos serviços jurídicos de que necessita, sem prejuízo de sua subsistência, não havendo falar em necessitado. Assim, o grupo em questão não é apto a conferir legitimidade ativa adequada à Defensoria Pública, para fins de ajuizamento de ação civil.

Desta maneira é importante que fiquem bem definidos alguns pontos:

(i)            O STJ admite que a Defensoria Pública tem legitimidade para ajuizar ação coletiva;

(ii)          A amplitude desta legitimidade vai depender do direito coletivo que se busca tutelar:

(ii.a)    Direito Difuso – Legitimidade Ampla, visto que os destinatários são indeterminados, bastando que beneficie grupo de hipossuficientes, ainda que seja favorável também para parcela de pessoas sem tal característica (não se investiga se os beneficiários seriam apenas os hipossuficientes).

(ii.b)    Direitos Coletivos Stricto Sensu e Direitos Individuais Homogêneos – para estas duas categorias o STJ tem posição mais restritiva no sentido de que a legitimidade da Defensoria deverá ser restrita às pessoas notadamente necessitadas, uma vez que é possível a determinação dos lesados (deve ser analisado se apenas aqueles considerados hipossuficientes serão beneficiários da tutela coletiva obtida).

Tal entendimento jurisprudencial deve ser bem entendido pelos alunos, ciente de que esta decisão do Superior Tribunal de Justiça não é imune a críticas dado o seu caráter restritivo. Isto inviabiliza, ou ao menos enfraquece muito, a força da tutela coletiva na proteção de interesses de uma coletividade.

Pensar que pelo fato dos direitos coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos permitir que se identifique os lesados e que por isso a Defensoria Pública só representaria os hipossuficientes econômicos diminui a importância da entidade e do próprio processo coletivo.

Entendo que a forma de decidir que melhor realizaria a ideia de acesso à jurisdição é permitir que a defensoria pública seja legitimada para ajuizar processo coletivo sempre que puder beneficiar um grupo de hipossuficientes buscando a tutela de direitos fundamentais.

Exemplifico, trazendo uma ilustração feita por Didier e chamando atenção para uma questão prática: a defensoria pública jamais teria legitimidade para ajuizar uma ação civil pública buscando o ressarcimento de pessoas que compraram um caro vídeo game que não funciona direito. Entretanto, como no caso decidido pelo STJ, acho que é razoável permitir que esta entidade, essencial à justiça, busque a reparação de prejuízos causados por uma operadora de plano de saúde, dado que há o potencial de beneficiar diversas camadas populacionais, entre elas os necessitados financeiramente, não havendo violação de sua função institucional.

Dr. João Paulo Lawall Valle, Advogado da União.

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