No final de 2014, o STF proferiu decisão relevante, em sede de repercussão geral, atinente à inaplicabilidade da teoria do fato consumado em matéria de concurso público:

Ementa: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO REPROVADO QUE ASSUMIU O CARGO POR FORÇA DE LIMINAR. SUPERVENIENTE REVOGAÇÃO DA MEDIDA. RETORNO AO STATUS QUO ANTE. “TEORIA DO FATO CONSUMADO”, DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA E DA SEGURANÇA JURÍDICA. INAPLICABILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Não é compatível com o regime constitucional de acesso aos cargos públicos a manutenção no cargo, sob fundamento de fato consumado, de candidato não aprovado que nele tomou posse em decorrência de execução provisória de medida liminar ou outro provimento judicial de natureza precária, supervenientemente revogado ou modificado. 2. Igualmente incabível, em casos tais, invocar o princípio da segurança jurídica ou o da proteção da confiança legítima. É que, por imposição do sistema normativo, a execução provisória das decisões judiciais, fundadas que são em títulos de natureza precária e revogável, se dá, invariavelmente, sob a inteira responsabilidade de quem a requer, sendo certo que a sua revogação acarreta efeito extunc, circunstâncias que evidenciam sua inaptidão para conferir segurança ou estabilidade à situação jurídica a que se refere. 3. Recurso extraordinário provido. (RE 608482, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 07/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014).

Embora a temática seja simples, por conta de seus reflexos, vale lembrar um pouco dos seus termos, compreendendo-os adequadamente.

Para isso, vamos imaginar a seguinte situação: um candidato ajuíza ação alegando que foi indevidamente reprovado em uma das etapas do concurso X, pugnando, assim, pela anulação de sua eliminação e, por consequência, por sua nomeação e posse no cargo pleiteado.

O Poder Judiciário, então, acolhendo a alegação de nulidade da eliminação do candidato e observando que ele possuía classificação suficiente para ter sido nomeado caso não fosse o erro da Administração, acolhe também o seu pedido de nomeação, antecipando os efeitos da tutela na sentença para que ela ocorra ainda que em curso a ação judicial.

Cinco anos depois, quando do julgamento do recurso de apelação interposto pela União, o TRF, contudo, entendeu ser legítima a reprovação do candidato e, com isso, reformou a sentença de 1º grau. Inconformado, o candidato opôs embargos de declaração, sustentando a aplicação da teoria do fato consumado ao caso, eis que estava empossado no cargo há 5 anos, já tendo, inclusive, cumprido todo o período do estágio probatório com êxito.

Deve prosperar a tese do candidato?

Não.

É preciso, contudo, entender os fundamentos usados pelo STF para fixar a posição contrária ao pedido do candidato.

Durante muito tempo, STF e STJ não conseguiram uniformizar sua jurisprudência, por vezes entendendo ser possível o deferimento do pleito de nomeação, ainda que de forma precária.

Ao julgar o RE 608482, porém, o STF findou por consolidar posição favorável ao Estado, e, com isso, primeiramente, consolidou o entendimento de não existir o instituto da nomeação e posse precária.

E qual o fundamento para isso?

Como é sabido, o acesso aos cargos públicos somente se dá mediante a aprovação do candidato em concurso de provas ou de provas e títulos. Ao falar em aprovação, portanto, a Constituição exigiu que o candidato supere todas as etapas do concurso, obtendo resultado favorável e de forma definitiva.

Vejamos a redação do inciso II do art. 37:

II – ainvestidura em cargo ou emprego público depende deaprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

Assim, se o candidato está questionando judicialmente sua reprovação em uma das etapas do concurso, enquanto não existir decisão judicial transitada em julgado, qualquer decisão favorável a sua pretensão não poderá ser tida como definitiva, não podendo, por conseguinte, se entender como definitiva também a sua aprovação no concurso público.

Não havendo decisão definitiva, portanto, não há como ser reconhecido seu direito à nomeação e posse, por não existir, em direito administrativo, o instituto da nomeação e posse precárias.

Nesses casos, a providência cabível deve ser a reserva da vaga em favor do candidato.

Foi a partir dessa constatação que pode o STF construir seu entendimento quanto à inaplicabilidade da teoria do fato consumado, da seguinte forma:

Se não há, no nosso direito, o instituto da posse precária, eis que nossa Constituição exige expressamente a aprovação em concurso público para o acesso a cargos públicos, eventual posse concedida por ato judicial precário é considerada ato nulo, e, como tal, não se convalida apenas pelo decurso do tempo.

Aliás, é exatamente por esse fundamento que o STJ, respaldando a posição adotada pelo STF, entende que a própria conclusão com êxito de eventual curso de formação ou mesmo a aprovação no estágio probatório não asseguram a aplicação da teoria do fato consumado:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CONCURSO PÚBLICO. SERVIDOR ESTADUAL. POLICIAL MILITAR. LIMINAR REVOGADO NO EXAME DE MÉRITO. POSTULAÇÃO DE APLICAÇÃO DA TEORIA DO FATO CONSUMADO. SÚMULA 405/STF. JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA NO STF. PRECEDENTES. 1. Recurso ordinário em mandado de segurança interposto porex-servidor militar estadual que foi guindado a tal condição em razão de liminar, que lhe permitiu continuar em concurso público para refazer o teste de aptidão física. O mérito da ação judicial lhe foi desfavorável e a Administração Pública o exonerou. 2. O agravante insiste na aplicação da teoria do fato consumado para reverter ao cargo, alegando que estava exercendo as funções públicas há mais de três anos. Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de ser “inaplicável a teoria do fato consumado em favor de candidato que permaneceu no cargo público por pouco mais de dois anos, ainda assim por força de medida cautelar cassada por Órgão Colegiado” (RE 534.738/DF, 2º julgamento, Relator Min. Dias Toffoli, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, Acórdão Eletrônico publicado no DJe-032 em 19.2.2015). 3. No mesmo sentido: RE 608.482/RN, Relator Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, Acórdão Eletrônico publicado no DJe-213 em 30.10.2014; AgR no RE 405.964/RS, Relator Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, Acórdão Eletrônico publicado no DJe-095 em 16.5.2012. 4. No caso, é aplicável o teor da Súmula 405 do STF: “Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária” (Aprovada pela Sessão Plenária de 1º.6.1964, publicado no DJ de 6.7.1964, p. 2181). Agravo regimental improvido. (AgRg no RMS 47.240/MT, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2015, DJe 11/05/2015).

Além desse fundamento, o STF destacou que acolher o pedido do candidato, em tais hipóteses, seria ainda sobrepor o seu interesse particular em detrimento do interesse público e da obrigatoriedade constitucional de concurso público, o que não se podia admitir, ainda que sob a alegação de boa fé ou confiança legítima do candidato.

Destacou, também, que o caso requer a simples aplicação das regras relativas à execução provisória de decisões judiciais, as quais impõem que, revogada a decisão, seja restabelecido o status quo ante, não podendo o transcurso do tempo ser suficiente para afastar todo um regramento processual.

Importante observar o seguinte trecho do voto do Ministro Teori Zavascki, Relator:

Considerando o regime próprio da execução provisória das decisões judiciais – que, como se sabe, é fundada em títulos marcados pela precariedade e pela revogabilidade a qualquer tempo, operando, nesse último caso, por força de lei, automático retorno da situação jurídica ao status quo ante –, não faz sentido pretender invocar os princípios da segurança jurídica ou da proteção da confiança legítima nos atos administrativos. Pelo contrário: o que se deve considerar é que o beneficiário da medida judicial de natureza precária não desconhecia, porque isso decorre de lei expressa, a natureza provisória e revogável dessa espécie de provimento, cuja execução se dá sob sua inteira responsabilidade e cuja revogação acarreta automático efeito extunc, sem aptidão alguma, consequentemente, para conferir segurança ou estabilidade à situação jurídica a que se refere.

(…)

Se nem esses princípios podem, aqui, ser contrapostos aos que orientam o sistema constitucional de acesso aos cargos públicos, o que resta como fundamento para sustentar a conclusão do acórdão recorrido é, apenas, o interesse individual de manter o cargo. Ora, esse interesse da recorrida não tem aptidão para justificar o desatendimento do superior interesse público no cumprimento das normas constitucionais. Aliás, a esse interesse individual se opõe, desde logo e com manifesta supremacia, até mesmo outro interesse particular de mesma natureza, daquele candidato que, tendo se submetido e obtido aprovação no concurso, foi, no entanto, alijado do cargo, que acabou ocupado por outro concorrente sem observância das exigências constitucionais.

Em resumo, não é aplicável a teoria do fato consumado em tema de concurso público, eis que:

Não existe, no nosso direito, o instituto da posse precária, pois nossa Constituição exige a aprovação efetiva em concurso público para o acesso a cargos públicos;

Sendo inexistente, a posse precária é um ato nulo que, portanto, não pode ser convalidada pelo simples decurso do tempo;

Não se pode preferir o interesse particular do candidato sob a alegação de boa fé ou princípio da confiança legítima se, nesse caso, implica ele em violação flagrante ao artigo 37, II, da Constituição.

E por que essa decisão permanece relevante?

Porque ela irradia efeitos em relação a outros julgados relativos ao Direito Administrativo. Vamos ver?

Suponhamos que João, servidor efetivo nomeado e empossado devidamente, agora pretende sua remoção para acompanhar cônjuge.

Esse tipo de remoção, nos termos da Lei 8.112/90, está condicionado à remoção de ofício do companheiro, no interesse da Administração, não sendo cabível quando a movimentação do servidor dá-se a pedido. Essa é a redação do art. 36, parágrafo único, III, a, da referida lei.

Apesar disso, João resolve acionar o Judiciário para garantir sua remoção para acompanhar Maria, alegando que, embora ela tenha sido removida a pedido, possui direito à movimentação por ser o Estado responsável por garantir a unidade familiar.

Em 1º Grau, João obtém liminar favorável, posteriormente confirmada em sentença. Contudo, quando do julgamento da apelação do Estado, cinco anos após sua remoção, o TRF acaba por reformar a sentença, determinando o retorno imediato de João a sua lotação de origem.

Nesse caso, será cabível a alegação de fato consumado?

Segundo decidiu o STJ, não:

PROCESSO EREsp 1.157.628-RJ, Rel. Min. Raul Araújo, por maioria, julgado em 7/12/2016, DJe 15/2/2017.
RAMO DO DIREITO DIREITO ADMINISTRATIVO
TEMA Servidor público. Remoção. Resistência da administração pública. Teoria do fato consumado. Inaplicabilidade.

 

DESTAQUE

A “teoria do fato consumado” não pode ser aplicada para consolidar remoção de servidor público destinada a acompanhamento de cônjuge, em hipótese que não se adequa à legalidade estrita, ainda que tal situação haja perdurado por vários anos em virtude de decisão liminar não confirmada por ocasião do julgamento de mérito.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Busca-se a uniformização do entendimento no STJ quanto à aplicação da “teoria do fato consumado” para consolidar remoção ilegal de servidor público, concedida com fundamento em provimento judicial de natureza precária, não mais em vigor. A fim de indicar a divergência entre órgãos julgadores do STJ, aduz-se como acórdão paradigma o AgRg no REsp 1.453.357-RN (Segunda Turma, DJe 9/10/2014), segundo o qual a “teoria do fato consumado visa preservar não só interesses jurídicos, mas interesses sociais já consolidados, não se aplicando, contudo, em hipóteses contrárias à lei, principalmente quando amparadas em provimento judicial de natureza precária”. Em uma primeira linha, a teoria do fato consumado tem sido aplicada, no âmbito judicial, para as hipóteses em que, pela própria lei da natureza, não haveria como desfazer os acontecimentos decorrentes do ato viciado. Também tem sido reconhecida a incidência da teoria do fato consumado nas hipóteses em que a Administração permite, por vários anos, a permanência de situação contrária à legalidade estrita, atribuindo ares de legalidade a determinada circunstância, e, assim, fazendo crer que as pessoas agem de boa-fé, conforme o direito. Nessa perspectiva, a teoria do fato consumado guarda íntima relação com a convalidação dos atos administrativos, atualmente regulada pelo artigo 54 da Lei n. 9.784/99. Quanto aos comportamentos das partes ao longo do tempo, faz-se necessário, para que se tenha por aplicável a teoria do fato consumado, distinguir duas situações que podem ocorrer quando se pratica um ato equivocado. A primeira situação corresponde à hipótese em que um ato contrário à lei é praticado sem dolo e sem contestação, tendo vigência por anos a fio, e assim atribuindo à situação fática ares de legalidade, atraindo para si o valor da segurança jurídica. Há, nesses casos, de ser preservada a estabilidade das relações geradas pelo ato inválido, cuja regularidade manteve-se inconteste por anos, fazendo convalescer o vício que originalmente inquinava sua validade. Protege-se, com isso, a boa-fé e o princípio da confiança legítima do administrado, a ela associado. Situação diversa é aquela em que determinado ato é praticado sob contestação das pessoas envolvidas, que o reputam irregular e manifestam a existência de tal irregularidade nas vias adequadas, mas que, por causa da demora no transcurso do procedimento destinado à apuração da legalidade do ato, termina por gerar efeitos no mundo concreto. Nessa última hipótese, verificada ou confirmada a ilegalidade, sendo ainda possível, o ato deve ser desfeito, preservando-se apenas aquilo que, pela consolidação fática irreversível, não puder ser restituído ao status quo ante. Mesmo nesses casos, se ficar configurado prejuízo decorrente do fato irreversível, deve ser ressalvada à parte prejudicada o direito de exigir perdas e danos. E, embora se reconheça o relevante valor social da família, cuja proteção encontra-se determinada pela própria Constituição Federal, o STF já assentou que o artigo 226 da Lei Fundamental não é motivo suficiente, por si só, para garantir ao servidor o direito a lotação na cidade em que possui vínculos afetivos. Por outro lado, a remoção de servidor fora das hipóteses legais termina por desbalancear o quadro de lotação dos órgãos públicos, retirando da Administração a discricionariedade que a lei lhe outorgou na distribuição de sua força de trabalho, segundo as reais necessidades do serviço público. A teoria do fato consumado não se presta, assim, para mitigar a interpretação do art. 36, III, “a”, da Lei n. 8.112/90, assegurando ao servidor lotação para acompanhamento de cônjuge fora da estrita moldura normativa. Não se deve perder de vista que a teoria do fato consumado é de aplicação excepcional e deve ser adotada com cuidado e moderação, para que não sirva de mecanismo para premiar quem não tem direito pelo só fato da demora no julgamento definitivo da causa em que fora deferida uma decisão liminar, cuja duração deve ser provisória por natureza. Com essas considerações, tem-se por inaplicável a teoria do fato consumado para consolidar remoção destinada a acompanhamento de cônjuge, em situação que não se adéqua à legalidade estrita, mitigando a interpretação do artigo 36, III, “a”, da Lei n. 8.112/90, ainda que tal situação haja perdurado por vários anos em virtude de decisão liminar não confirmada quando do julgamento de mérito.

 

Aqui, interessante observar as considerações feitas pelo STJ para tratar a questão:

Primeiramente, observou-se haver uma certa divergência no âmbito do próprio tribunal quanto à aplicação da teoria, a demandar, portanto, que uma posição consolidada sobre o tema se fixasse.

Nesse intuito, portanto, a Corte acabou por estabelecer a necessidade de se diferenciar dois casos, da seguinte forma:

CASO 1: situações indevidas, mas que ocorreram sem dolo, de boa-fé, por não haver resistência das partes envolvidas;

CASO 2: situações indevidas, ilegais, perpetradas de forma volitiva, que foram objeto de resistência.

Em se tratando de pedido indevido de remoção, que, como no exemplo dado, foi objeto de litigio judicial, inequívoco que a ilegalidade ocorrida foi objeto de resistência.

Em sendo assim, quanto ao caso 2, portanto, não há como se aplicar o fato consumado, sob pena de se premiar aquele que se beneficia da demora na prestação jurisdicional adequada.

Veja que o próprio STJ discorreu quanto ao direito constitucional à unidade familiar, frisando que ele não pode ser utilizado como argumentação suficiente para manter uma situação ilegal que irradia efeitos na própria organização da Administração, já que impacta na lotação dos órgãos públicos.

Assim, concluiu que a teoria do fato consumado deve ser excepcional, apenas aplicável nos casos em que houver boa-fé na constituição de uma situação indevida.

Portanto, sobre a teoria, temos o seguinte:

Não é aplicável a teoria do fato consumado para salvaguardar nomeações precárias nem remoção fora das hipóteses legais, considerando a resistência do Estado a tais situações e, ainda, que a aplicação da teoria em tais casos acabaria por premiar aquele que pratica a ilegalidade com o decurso de tempo para a apreciação judicial da questão.