Analice da Silva

Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado de Rondônia

Aprovada para Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas

Olá, prezados leitores!

Certamente, já ouviram falar sobre o jogo “baleia azul”, mas já se atentaram para as suas implicações penais? Como o tema é novo e está em alta na mídia e nas redes sociais, convém nos aprofundarmos sobre ele, porque logo será objeto de discussão em prova.

O game, de origem Russa, consiste em uma série de 50 desafios diários, enviados à vítima por um denominado “curador”. Inicia-se com tarefas simples como ouvir músicas psicodélicas, assistir a filmes de terror e desenhar uma baleia azul numa folha de papel, progredindo para outras macabras, como cortar os lábios ou furar a palma da mão diversas vezes. Em outra tarefa, o participante deve “desenhar” uma baleia azul em seu antebraço com uma lâmina. O desafio final é o suicídio.

Imaginemos a hipótese, a seguir:

Um jogador brasileiro entrou na disputa, por mera curiosidade, após um convite pelo WhatsApp. Diante do recrudescimento das tarefas, tentou sair do jogo. Entretanto, foi constrangido pelos curadores a permanecer, mediante ameaças de praticar mal injusto e grave contra seus entes queridos, com a menção de informações verdadeiras sobre eles, o que foi capaz de incutir elevado temor na vítima. Assim, ela chegou ao desafio final: o suicídio.

O aluno preparado, imediatamente, vai dizer que está configurado o crime de participação em suicídio previsto no artigo 122 do Código Penal.

Entretanto, amigo, a situação merece uma análise mais complexa, porque depende da qualidade da vítima, sem prejuízo da caracterização de outros possíveis crimes.

Sobre o evento morte, vamos analisar a existência de cinco possibilidades de enquadramento típico:

(1) Caso a vítima possua plena capacidade de discernimento e resistência, mesmo assim prossiga no jogo até o desafio final.

Os curadores do jogo por terem induzido (incutir a ideia) ou instigado (reforçar a ideia) a suicídio irão responder pelo artigo 122, caput, do CP.

(2) Já se a vítima possuir a capacidade de discernimento e resistência reduzida. Exemplo: induzir um doente mental a brincar de “roleta russa”, encostando a arma na cabeça e ir puxando o gatilho.

Neste caso, aplica-se a causa de aumento do parágrafo único, inciso II, do mesmo artigo, ou seja, a pena é duplicada.

(3) Ressalta-se, ainda, a hipótese de a vítima não possuir um mínimo de capacidade de discernimento e resistência, quando haverá o crime de homicídio e não participação em suicídio.

(4) Por fim, cabe destacar a discussão quando a vítima é menor de idade.

(a) A maior parte da doutrina presume a total falta de capacidade de entendimento quando a vítima não for maior de 14 anos.

Por essa interpretação, segundo Damásio de Jesus, Alberto Silva Franco, Flávio Monteiro de Barros, Fernando Capez, dentre outros, a causa de aumento do parágrafo único do artigo 122 do CP só tem incidência se a vítima tiver mais de 14 e menos de 18 anos na data do suicídio.

Se for menor de 14, o fato será homicídio, ante a interpretação sistemática do Código Penal, considerada a vulnerabilidade da vítima menor de 14 anos (art. 217-A do CP).

(b) Outra corrente, defendida por Celso Delmanto e Heleno Cláudio Fragoso, não aponta a idade de 14 anos limítrofe, pois o texto do inciso II fala tão somente “menor”. Então, basta que a vítima seja menor de 18 anos, não podendo falar em presunção de incapacidade.

Assim, o fato só poderia ser homicídio quando mediante prova efetiva (pericial, testemunhal etc.) ficasse demonstrado que o menor de 14 anos que tirou a própria vida não tinha qualquer capacidade de compreensão do ato.

(c) A hipótese narrada agrega, ainda, a chamada coação moral irresistível, ou seja, mediante sérias e graves ameaças proferidas pelos curadores, a vítima foi compelida a praticar o suicídio para proteger seus familiares.

Assim, entendo que, caso a vítima seja menor de 18 anos, configuraria sempre o crime de homicídio, pois o coator é o autor mediato (art. 22 do CP), servindo-se de um instrumento (coagido) para a prática de seu crime.

A qualidade da vítima também é relevante para aferir a configuração do crime de lesão corporal. Pois, embora seja atípica a autolesão, esse crime pode ser caracterizado, por autoria mediata imprópria, caso a vítima não possua qualquer cognoscibilidade.

Configura, também, a hipótese narrada o crime de constrangimento ilegal previsto no artigo 146 do Penal, porque em momentos distintos e com desígnios autônomos, os curadores do jogo constrangeram o jogador, mediante grave ameaça, a permanecer no jogo.

Numa eventual questão aberta convém atentar-se para a possível configuração de associação criminosa, pois, pelos casos até então apurados e divulgados na mídia, existem espalhados no Brasil os chamados “curadores”, os quais são responsáveis pelo envio dos desafios aos participantes por meio das redes sociais (especialmente, WhatsApp e Facebook).

 Ao enviarem as mensagens ameaçadoras, mencionam serem comandados pelo mentor do jogo, que é chamado “baleia azul”, o qual seria o responsável por exercer a repressão dos desertores do jogo. Portanto, há divisão de tarefas, estabilidade e permanência na associação que tem por finalidade, precípua, a prática de crimes por meio do game.

Por fim, outro detalhe importante é a questão da competência. Pois, segundo o STJ, o simples fato de o crime ter sido praticado pela Internet não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal, salvo se amoldar em uma das hipóteses do artigo 109 da Constituição Federal. (CC 121.431-SE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 11/4/2012).

Portanto, no jogo “baleia azul”, que tem como alvo principal crianças e adolescentes, é possível que haja ofensa à Convenção sobre Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada pelo Decreto legislativo 28/90 e pelo Decreto 99.710/90, o que é suficiente para atrair a competência da Justiça Federal (art. 109, V, CF).

Assim, espero ter contribuído para instigar a reflexão e a pesquisa sobre o assunto, para não serem surpreendidos com o tema nas próximas provas objetivas ou discursivas.

Bons estudos!