Pedro Coelho é Defensor Público Federal
Professor da EBEJI
EBEJ
Prezados leitores,
Hoje trataremos de um tema bastante pertinente e frequente em provas de concurso público, já que se trata de um dos principais e mais frequentes pontos de indagação quando o assunto é inquérito policial. Estou falando de arquivamento das investigações criminais!
Trata-se de uma das medidas possíveis de serem adotadas pelo membro do Ministério Público quando se depara com o inquérito policial (ou qualquer outra peça de informação), sobretudo quando não vislumbrar o preenchimento das condições da ação penal. Nesse sentido, vale conferir o teor do artigo 18 do CPP:
Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.
Apesar de ser medida pleiteada pelo membro do Ministério Público, vale salientar que é possível asseverar que se trata, em verdade, de um “ato complexo”. É que para sua efetivação, faz-se necessário que a autoridade judiciária competente homologue esse pedido ou, caso discorde, aplique a previsão do artigo 28[1] do CPP.
Questão controversa se refere ao reconhecimento da coisa julgada na decisão que homologa o arquivamento do inquérito policial. Sabe-se que há, fundamentalmente, dois tipos de coisa julgada: (i) a formal e a (ii) material.
Por coisa julgada formal, deve-se entender o fenômeno de caráter endoprocessual, ou seja, a partir dela não mais se pode modificar a decisão dentro da mesma relação processual, não havendo óbices, contudo, para eventual rediscussão em outro processo, desde que preenchidos alguns requisitos. Lado outro, a coisa julgada material é ainda mais ampla e foge dos limites de determinada relação processual. É dizer, pois, que ao se asseverar que determinada decisão foi alcançada pela coisa julgada material, estaremos a afirmar que aquele decisum não mais poderá ser modificado na mesma ou em outra relação processual.
Grande celeuma que envolve a coisa julgada nas decisões que homologam os pedidos de arquivamento de investigação criminal efetivados pelos membros do Ministério Público é se elas se revestem do manto da coisa julgada formal e material.
A regra é que, uma vez determinado o arquivamento do inquérito, a sua reabertura é condicionada ao surgimento de notícias de novas provas, inclusive com possibilidade de apresentação de ação penal, condicionando-se à demonstração cabal de surgimento efetivo de novas provas. Por tal razão, aponta-se que a decisão de arquivamento, em regra, é regida pela cláusula rebus sic stantibus. Mantidas as circunstâncias e pressupostos verificados quando do arquivamento, a decisão deve se manter intangível. Lado outro, havendo alterações no acervo probatório (notícias de novas provas), é possível o desarquivamento.
Tem-se, pois, em outras palavras, que a regra é de coisa julgada formal, com efeitos endoprocessuais, ressalvando a possibilidade de revisão da decisão caso haja notícias de novas provas. Essa conclusão é extraída do teor do artigo 18 do CPP (supratranscrito) e da Súmula 524 do STF:
Súmula 524 STF – Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.
Pedro, há exceção a esse entendimento? Há alguma possibilidade de a decisão de arquivamento produzir coisa julgada material?
Esse é um imbróglio que, recentemente, teve novo e polêmico capítulo jurisprudencial. Tradicionalmente, a maior parte da doutrina processual penal (não é unanimidade) afirma que há casos em que devemos reconhecer que a decisão homologatória do arquivamento do inquérito policial tona-se imutável e impede, definitivamente, tanto o desarquivamento do inquérito, quanto à propositura de ação penal.
Existe, em casos tais, a coisa julgada material, ou seja, um grau de imutabilidade da decisão de arquivamento que impede nova persecução penal pelo mesmo fato. Isso se verifica, conforme ensina o professor da USP Gustavo Henrique Badaró[2], nas hipóteses em que o arquivamento se opera não em razão de uma mera constatação de insuficiência de elementos de informação sobre a existência material do fato ou de sua autoria, já que nesses casos há apenas a coisa julgada formal (rebus sic stantibus). A coisa julgada material seria formada quando, a partir de reconstrução fática segura, houver o reconhecimento de (i) atipicidade dos fatos investigados, (ii) extinção da punibilidade ou ainda (iii) excludente da ilicitude.
Nesses casos apontados como exceção, há indubitavelmente uma manifestação do juízo acerca de matéria meritória, razão pela qual se estaria diante de juízo de convencimento quanto à inexistência de conduta criminosa, ao contrário de um mero juízo de insuficiência probatória. Apesar de ser essa a minha opinião, compartilhada (repita-se) pela majoritária doutrina especializada, em relação especificamente à formação da coisa julgada material quando o arquivamento do inquérito policial se pautar em causa excludente da ilicitude, há intensa e severa divergência jurisprudencial.
No Superior Tribunal de Justiça, essa matéria é mais tranquila e, acompanhando a doutrina, a Corte recentemente ratificou o entendimento de que “promovido o arquivamento do inquérito policial pelo reconhecimento de legítima defesa (leia-se qualquer causa excludente da ilicitude), a coisa julgada material impede rediscussão do caso penal em qualquer novo feito criminal, descabendo perquirir a existência de novas provas” (vide REsp 791.471/RJ[3]) .
Já na Suprema Corte (STF), o tema sempre foi objeto de intensa controvérsia. Em nossas aulas de processo penal na EBEJI mencionávamos um julgado (até então) ISOLADO da 1ª Turma, no HC 95.211/ES[4], em que se concluiu que “decisão que determina o arquivamento de inquérito policial, a pedido do Ministério Público e determinada por juiz competente, que reconhece que o fato apurado está coberto por excludente de ilicitude, não afasta a ocorrência de crime quando surgirem novas provas, suficientes para justificar o desarquivamento do inquérito, como autoriza a Súmula 524 deste Supremo Tribunal Federal”.
Como salientado, esse era o entendimento isolado desse precedente! O novo “capítulo” nessa polêmica foi noticiado no informativo do STF de nº 796 (2015), especificamente ao abordar o conteúdo do julgamento do HC 125.101/SP. Pela importância, vejamos a ementa:
EMENTA Habeas corpus. Processual Penal Militar. Tentativa de homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º, inciso IV, c/c o art. 14, inciso II). Arquivamento de Inquérito Policial Militar, a requerimento do Parquet Militar. Conduta acobertada pelo estrito cumprimento do dever legal. Excludente de ilicitude (CPM, art. 42, inciso III). Não configuração de coisa julgada material. Entendimento jurisprudencial da Corte. Surgimento de novos elementos de prova. Reabertura do inquérito na Justiça comum, a qual culmina na condenação do paciente e de corréu pelo Tribunal do Júri. Possibilidade. Enunciado da Súmula nº 524/STF. Ordem denegada. 1. O arquivamento de inquérito, a pedido do Ministério Público, em virtude da prática de conduta acobertada pela excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal (CPM, art. 42, inciso III), não obsta seu desarquivamento no surgimento de novas provas (Súmula nº 5241/STF). Precedente. 2. (…) 3. Ordem denegada. (HC 125101, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 25/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 10-09-2015 PUBLIC 11-09-2015).
Assim, em relação à formação da coisa julgada material quando o fundamento do arquivamento de IP for uma causa excludente da ilicitude, temos que as mais recentes decisões do STF, em ambas as Turmas, se inclinaram pela sua não verificação, ao contrário dos casos de atipicidade e extinção da punibilidade! Percebe-se, claramente, uma dissonância entre o STF e o STJ nesse ponto!
Pedro, podemos dizer que essa é a posição do Supremo Tribunal Federal?
Estou vendo muita gente boa falando isso e, devo confessar, não sinto segurança para fazer tal afirmação! Sem dúvidas, se o examinador questionar sobre as últimas decisões do STF, sem dúvidas, como apontado, é de que a excludente de ilicitude não tem o condão de produzir coisa julgada material na decisão de arquivamento.
A cautela aqui se dá porque não há manifestação do Pleno do STF. Ao contrário, resta pendente o julgamento do tema no HC 87.395/PR, cujo andamento encontra-se suspenso em razão de pedido de vista. Percebam que aqui, nesse julgamento, já houve 3 votos favoráveis à tese de que a partir do momento em que uma excludente de ilicitude é invocada para justificar o arquivamento, há produção da coisa julgada formal e também material!!! Precisamos aguardar a finalização desse julgado para podermos asseverar com firmeza qual é o “entendimento do Supremo Tribunal Federal”.
Destarte, com todas as cautelas acima pontuadas, podemos esquematizar a coisa julgada quando do arquivamento com base em excludentes de ilicitude da seguinte forma:
Conclusão 1: O STJ entende, de maneira tranquila, que há nessas situações a formação da coisa julgada formal e também material, razão pela qual a rediscussão dos mesmos fatos é impossível. Da mesma forma, assim se posiciona a doutrina especializada majoritariamente.
Conclusão 2: O STF, em suas últimas manifestações, por ambas as Turmas, se posiciona em sentido diverso ao STJ, apontando que, ao contrário da atipicidade e extinção da punibilidade, o arquivamento com base em excludente de ilicitude somente faria coisa julgada formal e, com o surgimento de novas provas, seria possível o desarquivamento das investigações.
Conclusão 3: Apesar de haver uma tendência da atual composição da Corte Suprema no sentido de que a excludente de ilicitude não faria coisa julgada material quando for fundamento do arquivamento, é necessário acompanhar a definição do julgamento pelo Plenário da ordem de habeas corpus 87.395/PR, cujo andamento se encontra suspenso!
Espero que tenham gostado! Com a certeza de que estou vivo, posso afirmar que isso será questão de próximas provas! Sendo assim, redobrar a atenção é imprescindível!
Vamos em frente!
Grande abraço,
Pedro Coelho, Defensor Público Federal
[1]Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.
[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. Editora Elsevier, 2ª edição, 2014, pág. 88.
[3] PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. INQUÉRITO POLICIAL ARQUIVADO POR RECONHECIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA. DESARQUIVAMENTO POR PROVAS NOVAS. IMPOSSIBILIDADE. COISA JULGADA MATERIAL. PRECEDENTES.
1. A permissão legal contida no art. 18 do CPP, e pertinente Súmula 524/STF, de desarquivamento do inquérito pelo surgimento de provas novas, somente tem incidência quando o fundamento daquele arquivamento foi a insuficiência probatória – indícios de autoria e prova do crime. 2. A decisão que faz juízo de mérito do caso penal, reconhecendo atipia, extinção da punibilidade (por morte do agente, prescrição…), ou excludentes da ilicitude, exige certeza jurídica – sem esta, a prova de crime com autor indicado geraria a continuidade da persecução criminal – que, por tal, possui efeitos de coisa julgada material, ainda que contida em acolhimento a pleito ministerial de arquivamento das peças investigatórias. 3. Promovido o arquivamento do inquérito policial pelo reconhecimento de legítima defesa, a coisa julgada material impede rediscussão do caso penal em qualquer novo feito criminal, descabendo perquirir a existência de novas provas. Precedentes. 4. Recurso especial improvido. (REsp 791.471/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 16/12/2014).
[4] EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. INQUÉRITO POLICIAL: ARQUIVAMENTO ORDENADO POR JUIZ COMPETENTE A PEDIDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, COM BASE NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL. EXCLUDENTE DE ILICITUDE. ANTIJURIDICIDADE. DESARQUIVAMENTO. NOVAS PROVAS: POSSIBILIDADE. SÚMULA 524 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ORDEM DENEGADA. 1. A decisão que determina o arquivamento de inquérito policial, a pedido do Ministério Público e determinada por juiz competente, que reconhece que o fato apurado está coberto por excludente de ilicitude, não afasta a ocorrência de crime quando surgirem novas provas, suficientes para justificar o desarquivamento do inquérito, como autoriza a Súmula 524 deste Supremo Tribunal Federal. 2. Habeas corpus conhecido e denegado. (HC 95211, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-160 DIVULG 19-08-2011 PUBLIC 22-08-2011 EMENT VOL-02570-01 PP-00169)
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