Samuel Sales Fonteles é Promotor de Justiça
Professor da EBEJI e autor de obras jurídicas
EBEJI
A Teoria do Impacto Desproporcional foi objeto de questionamento no concurso para procurador da república (2011). Recentemente, voltou a ser indagada, desta vez na prova oral para promotor de justiça na Bahia (2015).
Vejamo-la.
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1. NOÇÕES GERAIS: Dizem que “de boas intenções o inferno está cheio“. Imagine-se o leitor, por um instante, na condição de legislador. Repleto de boas intenções, você apresenta uma proposição legislativa com uma redação impecável. No entanto, você saberia dizer, de antemão, o impacto que essa lei geraria na sociedade? Que consequências práticas a norma geraria? Mesmo tomado pelos mais nobres sentimentos, o diploma legal poderia gerar efeitos colaterais jamais previstos pelo seu criador.
Nem sempre o legislador tem a dimensão exata do impacto da sua obra legislativa. No mundo hipotético, um projeto de lei pode ser considerado dos mais humanitários, porém, quando colocado em prática, algumas distorções (injustiças) podem nascer. É possível que a redação de uma lei não vulnere a isonomia, mas a sua aplicação, no caso concreto, resvale em discriminações. Trata-se de uma discriminação indireta, não por obra do texto legal, mas pelos efeitos práticos provenientes da aplicação da norma. É como se um acidente isonômico sobreviesse à aplicação da lei, cuja incidência acaba por ofender minorias ou grupos vulneráveis.
Parte-se da premissa de boa-fé do legislador, que supostamente agiu de maneira não deliberada. Se o fez intencionalmente, conseguiu mascarar muito bem suas intenções, pois o texto por ele produzido foi neutro. Somente na prática o dano pode ser percebido. Surge, nesse contexto a denominada Teoria do Impacto Desproporcional (disparate impact doctrine), por força da qual o exame de constitucionalidade de uma lei, no que tange à isonomia, não deve cingir-se ao seu teor (à mera redação), devendo-se aferir ainda se a sua incidência no suporte fático não resvala em discriminações. Ou seja, a compatibilidade de uma lei com o princípio da igualdade pode ser aquilatada em abstrato (discriminações diretas), mas também quanto aos seus efeitos práticos (discriminações indiretas). Por exemplo, na petição inicial da ADIn 4424/DF, a Procuradoria Geral da República afirmou que condicionar à representação a punição do crime de lesão corporal, no ambiente doméstico, é exigência legal que gera “efeitos desproporcionalmente nocivos para as mulheres“.
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2. ORIGEM: O leading case foi o caso Griggs v. Duke Power Co. (1971), julgado pela Suprema Corte Norte Americana: para promover seus funcionários, uma empresa aplicava testes de conhecimentos gerais. A medida, aparentemente neutra e meritocrática, acabava por beneficiar os trabalhadores que estudaram nas melhores escolas, prejudicando aqueles não brindados com a mesma oportunidade. Ocorre que os funcionários negros eram justamente os que haviam estudado nas escolas de pior qualidade, ou seja, o impacto da medida foi a promoção apenas de funcionários brancos. Isto levou a Suprema Corte a vedar a aplicação do teste. (VITORELLI, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas, 2ª Edição, p. 83).
Percebam que, no casso narrado, a discrminação não adveio de uma lei, mas sim de uma prática empresarial. Apesar disso, à luz da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a discriminação indireta pode (e deve) ser invalidada pelo Judiciário. É o que veremos no conceito a seguir.
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3. CONCEITO: como esclarece JOAQUIM BARBOSA, “Toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas“. (Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade – O Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 24).
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4. APLICAÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA: O Supremo Tribunal Federal empregou o raciocínio da Teoria do Impacto Desproporcional no julgamento da ADIn 1946-5/DF, que tratou do salário-maternidade. Isso porque, a depender das circunstâncias, a inserção da mulher no mercado de trabalho poderá ser turbada pelos encargos trabalhistas. Como se vê, a pretexto de proteger a mulher, no caso concreto, a lei pode acabar voltando-se contra ela. É isto que chamamos de discriminação indireta. Ao fim e ao cabo, na ADPF 291, o STF foi chamado a esclarecer se o crime militar de pederastia (art. 235, CPM) recebeu as boas vindas da Constituição de 1988. O delito em apreço veda que militares pratiquem atos libidinosos, homossexuais ou não, em lugares sujeitos à Administração Militar. O STF acabou entendendo que o delito foi recepcionado, mas que as expressões alusivas à homossexualidade não o foram. De maneira muito interessante, a teoria do impacto desproporcional foi utilizada no voto do Eminente Ministro Luís Roberto Barroso como um argumento contrário à recepção do crime de pederastia: “Torna-se, assim, evidente que o dispositivo, embora em tese aplicável indistintamente a atos libidinosos homo ou heterossexuais, é, na prática, empregado de forma discriminatória, produzindo maior impacto sobre militares gays. Esta é, portanto, uma típica hipótese de discriminação indireta, relacionada à teoria do impacto desproporcional (disparate impact), originária da jurisprudência norte-americana. Tal teoria reconhece que normas pretensamente neutras podem gerar efeitos práticos sistematicamente prejudiciais a um determinado grupo, sendo manifestamente incompatíveis com o princípio da igualdade”
À vista das considerações tecidas, tenho que a teoria foi elucidada a contento.
Se a minha memória não me traiu, o assunto já vem sendo abordado nas nossas aulas de Direito Constitucional na EBEJI.
Recebam o meu abraço.
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