Vanessa Siqueira é Procuradora do Rio de Janeiro
e Professora da EBEJI
EBEJI
Questão da Prova Específica de Direito Constitucional do MP-RJ (2016)
2ª Questão – Direito Constitucional
Em razão de grave crise financeira que assola determinado Estado da federação, o Chefe do Poder Executivo inseriu, no projeto de lei orçamentária, preceito que autorizava a contratação de empréstimo externo no valor de 500 milhões de reais, com o objetivo de garantir a conclusão das obras de construção de escolas públicas e a realização de obras de conservação de unidades preexistentes, que tinham sido orçadas em 400 milhões.
O orçamento foi aprovado nos termos do projeto. Ocorre que, realizadas as obras, sobejou a importância de 100 milhões de reais. Como a receita prevista no orçamento não fora integralmente realizada, inviabilizando o pagamento das despesas de pessoal e a realização de políticas públicas, a referida importância foi encaminhada pela Secretaria de Fazenda para a conta única do Estado.
Ao término do exercício financeiro, embora inexistisse qualquer sobra de recursos, o Estado não tinha restos a pagar para o exercício subsequente. Apesar dos elogios recebidos dos meios de comunicação, os Poderes Executivo e Legislativo foram acusados de afrontar a Constituição da República.
Essa acusação procede? Justifique. Resposta objetivamente fundamentada.
EBEJI
RESPOSTA
É possível a inserção no projeto de Lei Orçamentária Anual de dispositivo autorizando a contratação de operação de crédito, porquanto está-se diante de exceção ao princípio constitucional orçamentário da exclusividade, consubstanciado no art. 165, § 8º.
Com efeito, a parte final do aludido parágrafo 8º agasalha duas exceções, sendo certo que a segunda exceção concerne à possibilidade de a lei orçamentária albergar dispositivo autorizando a contratação de operação de crédito.
A circustância ora apresentada versa sobre a emissão de dívida pública externa, a pressupor a inarredável autorização do Senado Federal, nos moldes tais como preconiza o art. 52, V, da CRFB, combinado com o art. 32, § 1º, IV, da LC n.º 101/00. Ao ensejo, vale realçar que a autorização específica a ser conferida pelo Senado Federal não assume as vestes de um aval da União, tratando-se de mera formalidade habilitante dirigida ao aperfeiçoamento da avença.
No que tange à possibilidade de se verter para a conta única do Estado a sobra oriunda da operação de crédito, duas considerações merecem ser levadas a efeito.
A primeira observação recai sobre a eventual possibilidade de se aplicar receita de capital para suprir despesa de caráter corrente, notadamente a de pessoal.
Neste particular, o ordenamento jurídico brasileiro consagra uma série de restrições, a começar pela própria Constituição da República, a qual, em seu art. 167, III, estabelece que a realização de operações de crédito não pode exceder as despesas de capital, ressalvadas as provenientes de créditos adicionais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta.
O inciso em questão, ao cristalizar semelhante restrição, embute o que se convencionou chamar de “regra de ouro”, a qual, numa análise global, objetiva ilidir a nada saudável praxe de se recorrer ao endividamento de sorte a que se possa financiar despesas correntes.
A “regra de ouro” fora, inclusive, reforçada com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Tal conclusão pode ser facilmente extraída da inteligência dos arts. 12, § 2º, e 44, ambos da Lei n.º 101/00. Vejamos:
“Art. 12, § 2º. O montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.”
“Art. 44. É vedada a aplicação da receita de capital derivada da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio público para o financiamento de despesa corrente, salvo se destinada por lei aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos.”
Nesta ordem de ideias, a “regra de ouro” visa sinalizar que a receita corrente deve cobrir as despesas correntes, não sendo admitido o déficit corrente.
Conforme se pode notar, a legislação procura restringir a aplicação de receitas de capital em despesas correntes. Não se olvide, no entanto, que a análise em tela deve tomar em conta os valores totais.
Sem embargo, importante ressalvar que o gestor público ainda pode encontrar espaço para custear gastos correntes por intermédio de receitas oriundas de operações de crédito, contanto que autorizadas mediante a aprovação de créditos adicionais suplementares ou especiais, com finalidade específica e aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta. Trata-se, portanto, de situação excepcional.
Sendo assim, emerge a conclusão segundo a qual se afigura possível a aplicação de receita de capital em despesas correntes, desde que observadas as restrições legais. Não foi o que ocorreu.
Não é demais averbar que a intenção do legislador constituinte foi a de inibir a corriqueira “criação” de sobras por ocasião da celebração de operações de crédito, a ensejar, em última análise, o frequente remanejamento para as despesas de pessoal daquilo que porventura viesse a sobejar.
A “regra de ouro” pretende coibir o financiamento de despesas correntes por intermédio de operações de crédito, de modo a impedir a dissonância entre a dinâmica das receitas e despesas primárias.
De parte isto, imperioso considerar a questão do equilíbrio orçamentário, atualmente em larga medida materializado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias, sede da meta de superávit primário.
O superávit primário tem a ver com o dinheiro que o governo deve economizar para arcar com o serviço (juros) de sua dívida pública, sendo certo que o incremento da dívida implica o impostergável aumento da meta de resultado primário, fato a culminar num maior engessamento do orçamento, colocando em xeque o próprio equilíbrio orçamentário.
Por fim, cabe mencionar que não poderia a Secretaria de Fazenda, por si só, remanejar rubricas orçamentárias, pelo que estar-se-ia a afrontar o princípio da proibição de estorno, cuja previsão encontra guarida no inciso VI do art. 167 da CRFB, o qual veda a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa. Não custa aclarar que a autorização legislativa afigurar-se-ia prescindível na eventualidade de se estar diante – o que não é o caso – de despesas afetas a atividades de ciência, tecnologia e inovação, com o objetivo de viabilizar os resultados de projetos restritos a essas funções, conforme dispõe o parágrafo 5º do art. 167 da Constituição da República.
Grande abraço, Vanessa Siqueira.
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