Em casos de conflitos entre duas coisas julgadas que trataram do mesmo objeto, com exaurimento do prazo da ação rescisória, qual delas deve prevalecer? Há instrumentos para combater a segunda coisa julgada, nestes casos?
Esta é uma excelente questão para ser abordada em segunda fase de concursos de alto desempenho e até mesmo na etapa objetiva, com questionamento sobre o entendimento do STJ.
É acesa a controvérsia sobre os efeitos que emanam do conflito entre duas coisas julgadas, quando a segunda não é alvo da ação rescisória no prazo decadencial. A questão é indefinida na doutrina, em que há duas correntes bem delimitadas, não sendo possível assegurar qual delas conta com a adesão majoritária, bem como na jurisprudência, como passamos a explicitar.
De acordo com Teresa Wambier, valendo-se dos ensinamentos de Liebman, o autor da ação replicada é carecedor de interesse de agir, nas vertentes utilidade e necessidade, e a sentença que, “equivocadamente, julga o ‘mérito’ quando, a rigor, encontram-se ausentes as condições da ação, é um arremedo de sentença”. Segundo a processualista, os pressupostos negativos da primeira coisa julgada obstam a rediscussão da matéria em outro processo, que, acaso proposto, seria singela expressão do direito de petição, no máximo, um simulacro de processo, inapto à formação de uma coisa julgada que se sobrepusesse à primeira.
Arremata a professora da PUC/SP que a sentença proferida em hipóteses tais é inexistente, sendo possível à parte contrária resistir à pretensão executiva por embargos à execução, exceção de pré-executividade ou querela nullitatis, em qualquer tempo, sendo despiciendo o ajuizamento da ação rescisória, muito embora o legislador tenha reservado hipótese típica de rescindibilidade para este caso (art. 485, IV, do CPC-73; art. 966, IV, do CPC-15), o que é incompreensível e desnecessário, para esta vertente doutrinária. Aderem a este posicionamento – de prevalência da primeira coisa julgada – os professores Sérgio Rizzi, José Miguel Garcia Medina, Thereza Arruda Alvim, Cassio Scarpinella Bueno, Antonio Carlos Marcato, Nelson Nery Jr., Rosa M. de A. Nery, Sérgio Gabriel Porto e Araken de Assis.
De outra sorte, há entendimento que advoga a subsistência da segunda coisa julgada, se não rescindida no prazo bienal, em aplicação analógica dos efeitos que decorrem do conflito entre leis, no aspecto da temporalidade, para firmar o raciocínio de que a lei posterior revoga a lei anterior, por incompatibilidade ou por ter versado, integralmente, sobre a mesma matéria (art. 2º, §1º da LINDB). Vale dizer, em interpretação das normas que atribuem à sentença força de lei, como ocorria no art. 468 do CPC-73, construiu-se o fundamento principal que confere substrato à esta corrente de pensamento, que é defendida por autores como Pontes de Miranda, Guilherme Marinoni, Humberto Theodoro Jr., Barbosa Moreira, Vicente Greco Filho e Cândido Rangel Dinamarco. Em acréscimo, advogam a tese de que, se assim não fosse, restaria esvaziada a norma do art. 485, IV, do CPC-73 (art. 966, IV, do CPC-15).
E qual é o entendimento do STJ? Temos que ter atenção, pois a jurisprudência é vacilante.
Verifica-se que a posição defendida pela primeira corrente, a exemplo do que ensina Teresa Wambier, já foi agasalhada por decisões do Tribunal da Cidadania. Na linha do entendimento de sua 3ª Turma, exarado no RESP n° 1.354.225-RS, deve prevalecer a primeira coisa julgada. Esclareceu o relator, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que fragiliza a segunda corrente o fato de que “a revogação de lei anterior por lei posterior é ato lícito e legítimo, ao passo que a prolatação de outra sentença em demanda já decidida é ato manifestmente contrário ao direito, não sendo cabível, pois, aplicar essa analogia”. Observe-se o teor da ementa do referido julgado:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. COISA JULGADA DÚPLICE. CONFLITO ENTRE DUAS SENTENÇAS TRANSITADAS EM JULGADO. CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR NA SEGUNDA DEMANDA.INEXISTÊNCIA DA SEGUNDA SENTENÇA. ALEGAÇÃO EM EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. CABIMENTO.1. Hipótese em que o autor da demanda, sucumbente na Justiça do Trabalho, repetiu o mesmo pedido perante a Justiça Estadual, obtendo êxito e gerando conflito frontal entre os comandos das duas sentenças, identificado apenas na fase de execução.2. Controvérsia doutrinária acerca da existência da segunda sentença ou, caso existente, da natureza rescisória ou transrescisória do vício da coisa julgada.3. Inexistência de interesse jurídico no ajuizamento da segunda demanda. Doutrina sobre o tema.4. Inexistência de direito de ação e, por conseguinte, da sentença assim proferida. Doutrina sobre o tema.5. Analogia com precedente específico desta Corte, em que se reconheceu a inexistência de sentença por falta de interesse jurídico, mesmo após o transcurso do prazo da ação rescisória (REsp 710.599/SP).6. Cabimento da alegação de inexistência da segunda sentença na via da exceção de pré-executividade.7. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.” (REsp 1354225/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/02/2015, DJe 05/03/2015) (grifo nosso).
Acrescente-se que o precedente supracitado não é isolado, tendo o STJ reiterado o entendimento por ocasião do julgamento do RESP n° 710.599/SP (Rel. Min. Denise Arruda, 1ª Turma, DJ 14/02/2008).
Noutro giro, encampou a Corte da Cidadania decisão favorável à prevalência da segunda coisa julgada, que somente seria afastada pela ação rescisória, nos seguintes precedentes: RESP 400.104/CE, Rel. Min. Paulo Medina, 6ª Turma, DJ 09/06/2003, RESP n° 598.148/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, DJE 31/08/2009, entendimento reiterado no RESP n° 1524123/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª Turma, julgado em 26/05/2015, DJe 30/06/2015).
Ocorre que na última decisão do STJ a que temos notícia sobre a controvérsia, consolidada no seio da 3ª Seção, prestigiou-se a prevalência da primeira coisa julgada. Referimo-nos aos Embargos à Execução em Mandado de Segurança n° 3.901/DF, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, em que se aderiu ao entendimento então externado pelas 1ª e 3ª Turmas, consoante se observa dos seguintes excertos do julgado:
“Tal o contexto, analisando os arts. 267, IV, e 485, IV, do Código de Processo Civil, cujas disposições impedem que uma ação seja proposta quando houver coincidência de partes, causa de pedir e pedido em reação a outra já julgada e, acaso proposta, impõe sua extinção sem julgamento de mérito, a não observância pelo magistrado dessas vedações não pode convalidar o julgamento, conferindo-lhe o caráter imutável decorrente da coisa julgada.
Tanto é assim que o art. 485, IV, do Código de Processo Civil traz essa situação como hipótese de cabimento de ação rescisória. Contudo, não se pode admitir, caso ultrapassado o prazo decadencial da ação desconstitutiva, que essa segunda sentença venha a prevalecer sobre o (sic) primeira, já alcançada pela coisa julgada.
Portanto (…) minha convicção é no sentido de que a primeira coisa julgada deve prevalecer.” (grifo no original) (Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, 3ª Seção, julgado em 25/11/2015, DJe 09/12/2015).
Uma vez expostas as correntes doutrinárias e o posicionamento do STJ, passemos a enfrentar quais os instrumentos podem ser adotados pelo executado para resistir à segunda coisa julgada.
Consoante a primeira corrente, a segunda coisa julgada pode ser impugnada, mesmo após o decurso do biênio, por meio de querela nullitatis, embargos à execução (no tempo e modo e, a partir do CPC-15, impugnação ao cumprimento de sentença) e exceção de pré-executividade, sendo este último instrumento expressamente citado pelas 1ª e 3ª Turmas e 3ª Seção do STJ.
Para uma melhor compreensão da matéria, observe-se o seguinte esquema:
Prevalência da 1ª coisa julgada |
Prevalência da 2ª coisa julgada |
Teresa Wambier, Medina e outros – o autor que replicou a ação é carecedor de interesse de agir e a sentença prolatada é inapta à formação da coisa julgada. A segunda ação é um simulacro processual. |
Pontes de Miranda, Marinoni e outros – lei posterior revoga a lei anterior. Evitar esvaziamento da norma que prevê como causa de pedir da ação rescisória o conflito entre coisas julgadas. |
Instrumentos processuais – Querela nullitatis, embargos à execução e exceção de pré-executividade. |
Instrumentos processuais – a segunda coisa julgada só pode ser combatida pela ação rescisória, antes do decurso do prazo decadencial, tornando -se “soberana”, em caso de inércia. |
1ª e 3ª Turmas e 3ª Seção do STJ(11/2015 – última decisão) – “a revogação de lei anterior por lei posterior é ato lícito e legítimo, ao passo que a prolatação de outra sentença em demanda já decidida é ato manifestamente contrário ao direito, não sendo cabível, pois, aplicar essa analogia”. |
2ª e 6ª Turmas do STJ (06/2015) – lei posterior revoga a lei anterior. |
Instrumentos processuais – Exceção de pré-executividade* |
Instrumentos processuais – a segunda coisa julgada só pode ser combatida pela ação rescisória, antes do decurso do prazo decadencial, tornando-se “soberana”, em caso de inércia. |
Em remate, a segurança jurídica pode ser outro fundamento a ser invocado por aqueles que defendem a prevalência da primeira coisa julgada, por ofensa a seus dois corolários, quais sejam, a estabilidade, que objetiva salvaguardar situações passadas consolidadas (passado) e a previsibilidade, que consiste na justa expectativa de que a ação replicada deve ser extinta, sem exame de mérito (futuro).
Caros leitores do blog, fiquem atentos a esta controvérsia e aos principais fundamentos defendidos por cada corrente. Se o assunto for cobrado em segunda fase, alcançará maior nota aquele que expuser as duas linhas de pensamento e demonstrar conhecimento da jurisprudência. Em primeira fase, pode ser exigido o entendimento de uma doutrina específica ou mesmo o posicionamento mais recente do STJ, na qualidade de intérprete da legislação infraconstitucional.
Bons estudos!
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