A regra da impenhorabilidade das verbas alimentares está plasmada no art. 649, inciso IV, do Código de Processo Civil, e visa resguardar os “vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família”.

A primeira exceção à referida regra está no próprio art. 649 que, no § 2º, determina que não se aplique nos casos de penhora para pagamento de prestação alimentícia. Ou seja, se o fundamento da impenhorabilidade é a natureza alimentar da remuneração, diante de um crédito também de natureza alimentar (ex.: execução de alimentos – decorrentes de vínculo de família ou de ato ilícito), a restrição da impenhorabilidade não pode prosperar.

Pois bem, o que esse post pretende abordar é se haveria outra hipótese, afora a exceção prevista no § 2º do art. 649 do CPC, de penhorabilidade de verbas alimentares. A resposta é positiva, pelas razões a seguir.

A parte final do art. 649, IV do CPC, antes inexistente e hoje incluída pela mini-reforma realizada pela Lei n. 11.382/2006, trouxe a condicionante de que impenhorável é, somente, a verba alimentar destinada ao sustento do devedor e de sua família.

E não poderia ser diferente, afinal, a mens legis do aludido dispositivo é salvaguardar o caráter alimentício dessas verbas, de modo que não venham a padecer, o devedor e seus dependentes, dos valores necessários a própria manutenção.

Ocorre que, não obstante alicerçado, o art. 649, IV, do CPC, no princípio da dignidade da pessoa humana – fundamento de nossa República (art. 1º, inciso III da Constituição Federal), deve-se também considerar a dignidade do exequente, e não somente do executado. Não suficiente, a melhor interpretação ao caso deve ser iluminada pelo princípio da economia e eficiência processual, introduzido na nossa Carta Magna pela EC n. 45/2004, insculpindo no art. 5º o inciso LXXVIII, que assim dispõe: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 

Em verdade, a garantia da impenhorabilidade, plasmada na regra processual acima, não deve ser interpretada de forma gramatical e absoluta, podendo ter aplicação mitigada em certas circunstâncias, como sucede com crédito de natureza alimentar de elevada soma, que permite antever-se que o próprio titular da verba pecuniária destinará parte dela para atendimento de gastos supérfluos e não, exclusivamente, para o suporte de necessidades fundamentais.

Com efeito, a regra contida no art. 649, IV do CPC, em casos excepcionais, pode ser mitigada a fim de emprestar efetividade ao processo de execução (art. 5º, LXXVIII da CF), mormente quando não se verificar que o bloqueio de parte da renda privará o executado de honrar outros compromissos assumidos.

Insta destacar que na doutrina pátria já é defendida a inexistência de impenhorabilidade absoluta à norma inserta no art. 649, IV, do CPC, como se infere das lições de Fredie Didier Jr, Leonardo José Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira:

b) De acordo com as premissas fáticas desenvolvidas acima, é possível mitigar essa regra de impenhorabilidade, se, no caso concreto, o valor recebido a título de verba alimentar (salário, rendimento de profissional liberal e etc) exceder consideravelmente o que se impõe para a proteção do executado. É possível penhorar parcela desse rendimento. Restringir a penhorabilidade de toda a \’verba salarial\’, mesmo quando a penhora de uma parcela desse montante não comprometa a manutenção do executado, é  interpretação inconstitucional da regra, pois prestigia apenas o direito fundamental do executado, em detrimento do direito fundamental do exequente. (in Curso de Direito Processual Civil, 7ª ed. Vol. 05, Salvador: JusPodivm, 2009, pp. 553-555)

Nesse sentido, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça que, em julgados recentes das Terceira e Quarta Turmas, decidiu pela possibilidade de penhora de verbas alimentares desde que não destinadas ao sustento do devedor e famíliain verbis:

PROCESSO CIVIL. CRÉDITO REFERENTE A HONORÁRIOS  ADVOCATÍCIOS. CARÁTER ALIMENTAR. PENHORA NO ROSTO  DOS AUTOS. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO. PECULIARIDADES DO  CASO CONCRETO. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO  TELEOLÓGICA DO ART. 649, IV, DO CPC. MÁXIMA EFETIVIDADE  DAS NORMAS EM CONFLITO GARANTIDA.

1. A hipótese dos autos possui peculiaridades que reclamam uma  solução que valorize a interpretação teleológica em detrimento da  interpretação literal do art. 649, IV, do CPC, para que a aplicação da  regra não se dissocie da finalidade e dos princípios que lhe dão  suporte.

2. A regra do art. 649, IV, do CPC constitui uma imunidade  desarrazoada na espécie. Isso porque: (i) a penhora visa a satisfação de  crédito originado da ausência de repasse dos valores que os recorrentes receberam na condição de advogados do recorrido; (ii) a penhora de parcela dos honorários não compromete à subsistência do executado e (iii) a penhora de dinheiro é o melhor meio para garantir a celeridade e  a efetividade da tutela jurisdicional, ainda mais quando o exequente já  possui mais de 80 anos.

2. A decisão recorrida conferiu a máxima efetividade às normas em  conflito, pois a penhora de 20% não compromete a subsistência digna  do executado – mantendo resguardados os princípios que  fundamentam axiologicamente a regra do art. 649, IV do CPC – e  preserva a dignidade do credor e o seu direito à tutela executiva.

3. Negado provimento ao recurso especial.”

(REsp 1.326.394/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA  TURMA, julgado em 12/3/2013, DJe de 18/3/2013)

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR DA VERBA. IMPENHORABILIDADE (CPC, ART. 649, IV). MITIGAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS. ELEVADA SOMA. POSSIBILIDADE DE AFETAÇÃO DE PARCELA MENOR DE MONTANTE MAIOR. DIREITO DO CREDOR. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. É firme nesta Corte Superior o entendimento que reconhece a natureza alimentar dos honorários advocatícios e a impossibilidade de penhora sobre verba alimentar, em face do disposto no art. 649, IV, do CPC.

2. Contudo, a garantia de impenhorabilidade assegurada na regra processual referida não deve ser interpretada de forma gramatical e abstrata, podendo ter aplicação mitigada em certas circunstâncias, como sucede com crédito de natureza alimentar de elevada soma, que permite antever-se que o próprio titular da verba pecuniária destinará parte dela para o atendimento de gastos supérfluos, e não, exclusivamente, para o suporte de necessidades fundamentais.

3. Não viola a garantia assegurada ao titular de verba de natureza alimentar a afetação de parcela menor de montante maior, desde que o percentual afetado se mostre insuscetível de comprometer o sustento do favorecido e de sua família e que a afetação vise à satisfação de legítimo crédito de terceiro, representado por título executivo.

4. Sopesando criteriosamente as circunstâncias de cada caso concreto, poderá o julgador admitir, excepcionalmente, a penhora de parte menor da verba alimentar maior sem agredir a garantia desta em seu núcleo essencial.

5. Com isso, se poderá evitar que o devedor contumaz siga frustrando injustamente o legítimo anseio de seu credor, valendo-se de argumento meramente formal, desprovido de mínima racionalidade prática.

6. Caso se entenda que o caráter alimentar da verba pecuniária recebe garantia legal absoluta e intransponível, os titulares desses valores, num primeiro momento, poderão experimentar uma sensação vantajosa e até auspiciosa para seus interesses. Porém, é fácil prever que não se terá de aguardar muito tempo para perceber os reveses que tal irrazoabilidade irá produzir nas relações jurídicas dos supostos beneficiados, pois perderão crédito no mercado, passando a ser tratados como pessoas inidôneas para os negócios jurídicos, na medida em que seus ganhos constituirão coisa fora do comércio, que não garante, minimamente, os credores.

7. Recurso especial a que se nega provimento.

(STJ, REsp 1356404 / DF, Ministro RAUL ARAÚJO, Quarta Turma, 04.06.2013) 

Enfim, a regra do art. 649, inciso IV do CPC é excepcionada não somente pelo § 2º do mesmo dispositivo legal. A impenhorabilidade das verbas salariais pode, também, ter sua interpretação relativizada quando o executado/devedor estiver a receber créditos alimentares de elevada monta, quando a parcela penhorada não comprometa as necessidades fundamentais dele e de sua família.

 

Dr. Petrov Baltar, Advogado da União