Desconsideração da personalidade jurídica pela Administração Pública

Discussão do tema, diante da frente a Lei nº 12.846/2013.

Para combater fraudes e conluios praticados em detrimento do Poder Público, notadamente em suas relações contratuais e nas pertinentes licitações, muitos defendem, há bastante tempo, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, pela própria Administração.

Infelizmente, o tema não é tratado por muitos, com as nuances técnicas necessárias. Alguns apontam o artigo 50 do Código Civil como fundamento para tal desconsideração, contudo, sem perceber que o referido dispositivo estabelece ao juiz a prerrogativa para admiti-la.

O tema envolve discussão que exige uma análise aprofundada, sobretudo em relação à temática das sociedades no ordenamento pátrio e sua submissão à desconsideração da personalidade jurídica. Particularmente, entendemos que essa disposição deve ser vista com cautela. A pessoa jurídica, por conceito legal, tem existência diversa de seus membros, sendo de sua própria natureza, pelo menos na maioria das modalidades de sociedades praticadas em nosso país, a separação do patrimônio do ente social daquele pertencente às pessoas físicas que o compuseram. Essa disposição deriva da imprescindível criação de facilidades na atuação empresarial, como fator essencial à circulação de riquezas e desenvolvimento econômico.

Por razões que envolvem o fomento ao desenvolvimento, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser manejada de forma excepcional e nos limites legais, não se perdendo de vista que a criação dessa instituição busca inspiração na vocação ao progresso social e econômico, e não no embuste e nas fraudes comerciais, deturpações provenientes de sua utilização indevida.

De qualquer forma, e isso é o mais importante para as bancas, mesmo na anterior ausência de expressa previsão legal, há precedentes que admitem a desconsideração da personalidade jurídica, mesmo no âmbito administrativo, com base em princípios jurídicos.

O STJ admite a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estender os efeitos da declaração de inidoneidade à sociedade empresarial diversa, constituída com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.

– A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.

– A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.

– Recurso a que se nega provimento. (STJ – RMS 15166 / BA – Relator: Ministro CASTRO MEIRA – SEGUNDA TURMA – DJ 08.09.2003 p. 262.)

Há também precedente do Tribunal de Contas da União, que admite a desconsideração nas situações de fraude comprovada. Segundo noticiado no informativo nº 108, daquele Tribunal:

 “em caso de fraude comprovada, é possível a responsabilização não só da empresa, mas também dos sócios, de fato ou de direito, a partir da desconsideração da personalidade jurídica da instituição empresarial”  (TCU. Acórdão n.º 1327/2012-Plenário, TC 008.267/2010-3, rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, 30.5.2012.)

Por fim, e esta é a grande novidade, recentemente foi publicada a Lei nº 12.846/2013, a qual tem por objeto dispor sobre a responsabilização objetiva, administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

De acordo com a referida Lei, “a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos nela previstos ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa”.

Este dispositivo legal consolida a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, pela Administração Pública, agora, corretamente, em razão de expressa previsão legal.

Ronny Charles, Advogado da União.