Direito ao Esquecimento em âmbito penal? Analisando a diferença entre reincidência e maus antecedentes.
Prezados,
Muitos alunos me enviam emails pedindo esclarecimentos acerca das diferenças entre maus antecedentes e a reincidência, sobretudo no que tange ao prazo de 5 anos previsto no artigo 64 do CPB. É que a própria legislação criminal, a doutrina e a jurisprudência apontam tranquilamente a adoção do critério da temporariedade para fins de limitação dos efeitos deletérios da reincidência. É que esses negativos efeitos somente durarão ou produzirão efeitos enquanto pendente o chamado período depurador, fixado no artigo 64 do CPB em 5 anos, contados da data do cumprimento da pena ou de sua extinção. Vejamos:
Art. 64 – Para efeito de reincidência: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;
A grande questão a ser analisada é se a vontade do legislador era de limitar a punição de maneira mais exacerbada do cidadão reincidente ao espaço temporal de 5 anos em qualquer hipótese ou simplesmente afastar a reincidência e seus efeitos, ainda que autorizando tratamento mais severo na fixação da pena por outro fundamento.
Em última análise, o que se precisa saber é se, apesar de não classificado como reincidente, após 5 anos da extinção ou cumprimento da pena, o cidadão em nova condenação poderá ser punido de maneira mais severa em razão de ostentar maus antecedentes.
Apesar de discordarmos sensivelmente da posição até então dominante, dúvidas não há que durante muito tempo prevaleceu – doutrinária e jurisprudencialmente – a posição de que o desaparecimento do efeitos da reincidência não afastariam a possibilidade do reconhecimento de maus antecedentes. Nas palavras de Cézar Roberto Bitencourt:
“Apesar de desaparecer a condição de reincidente, o agente não readquire a condição de primário, que é como um estado de virgem, que, violado, não se refaz. A reincidência é como o pecado original: desaparece, mas deixa sua mancha, servindo, por exemplo, como antecedente criminal (art. 59, caput)[1]”.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores ainda é profícua na adoção da referida tese, sustentando que, ao contrário da reincidência que se orienta pelo sistema da temporariedade, os maus antecedentes obedeceriam às regras (ou sistema) da perpetuidade. Nesse sentido, curial se revela registrar julgado desse ano do STJ:
HABEAS CORPUS. ART. 155, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. (1) IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ESPECIAL. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) PENA-BASE. EXASPERAÇÃO. CONDENAÇÃO ANTERIOR. DECURSO DO PRAZO PREVISTO NO ART. 64, I, DO CÓDIGO PENAL. REINCIDÊNCIA. NÃO CABIMENTO. VALORAÇÃO NEGATIVA DOS ANTECEDENTES. POSSIBILIDADE. (3) PENA DEFINITIVA FIXADA EM PATAMAR INFERIOR A 4 ANOS DE RECLUSÃO.CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. REGIME INICIAL SEMIABERTO. ADEQUAÇÃO. (4) WRIT NÃO CONHECIDO.
1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso especial.
2. Conquanto não se desconheça o conteúdo de recente decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, tomada por maioria de votos no HC 119.200/PR (julgado em 11.2.2014, Rel. Min. Dias Toffolli, acórdão pendente de publicação), é de ver que o tema não está pacificado naquela Corte, sendo objeto de repercussão geral (RE 593.818). Nessa toada, e in casu, fica mantido o entendimento já pacificado por este Sodalício de que, mesmo ultrapassado o lapso temporal de cinco anos, podem, contudo, ser consideradas como maus antecedentes as condenações anteriores transitadas em julgado, nos termos do art. 59 do Código Penal.
3. Nos termos dos artigos 33 e 59 do Código Penal, estabelecida a reprimenda em patamar igual ou inferior a 4 (quatro) anos de reclusão, é adequada a estipulação do regime inicial semiaberto, eis que pena-base foi fixada acima do mínimo legal, diante de circunstância judicial desfavorável.
4. Habeas corpus não conhecido. (HC 240.022/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 11/03/2014, DJe 24/03/2014).
Todavia, como no próprio julgado acima colacionado resta previsto, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal colocou um pouco de luz nas trevas do debate e sinalizou posicionamento divergente, no sentido de que não apenas os efeitos da reincidência cessariam ao final de 5 anos (período depurador), mas também qualquer valoração negativa ou mais severa em face de condutas praticadas no passado pelo autor.
O cidadão não pode ser penalizado eternamente por deslizes em seu passado, pelos quais já tenha sido condenado e tenha cumprido a reprimenda que lhe foi imposta em regular processo penal. É dizer que também para os maus antecedentes é aplicável o sistema da temporariedade.
Consoante o precedente de relatoria do Ministro Dias Toffoli abaixo transcrito, é a manifestação do Direito ao Esquecimento dentro da seara penal (MUITA ATENÇÃO A ESSA EXPRESSÃO, POIS PODE SER QUESTÃO DE PROVA!). Vejamos:
Ementa: Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Dosimetria. Fixação da pena-base acima do mínimo legal em decorrência de maus antecedentes. Condenações extintas há mais de cinco anos. Pretensão à aplicação do disposto no inciso I do art. 64 do Código Penal. Admissibilidade. Precedente. Writ extinto. Ordem concedida de ofício. 1. Impetração dirigida contra decisão singular não submetida ao crivo do colegiado competente por intermédio de agravo regimental, o que configura o não exaurimento da instância antecedente, impossibilitando o conhecimento do writ. Precedentes. 2. Quando o paciente não pode ser considerado reincidente, diante do transcurso de lapso temporal superior a cinco anos, conforme previsto no art. 64, I, do Código Penal, a existência de condenações anteriores não caracteriza maus antecedentes. Precedentes. 3. Writ extinto. Ordem concedida de ofício. (HC 119200, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 11/02/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-048 DIVULG 11-03-2014 PUBLIC 12-03-2014).
Registre-se que, apesar desse indicativo de avanço jurisprudencial e reconhecimento do chamado Direito ao Esquecimento na seara penal, a partir de julgados do STF, na referida Corte, a questão não está pacificada! Aliás, o tema encontra-se com repercussão geral reconhecida e pendente de apreciação pelo Pleno do Supremo, consoante se verifica abaixo:
EMENTA: MATÉRIA PENAL. FIXAÇÃO DA PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDIDICAIS. MAUS ANTECEDENTES. SENTENÇA CONDENATÓRIA EXTINTA HÁ MAIS DE CINCO ANOS. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE. MANIFESTAÇÃO PELO RECONHECIMENTO DO REQUISITO DE REPERCUSSÃO GERAL PARA APRECIAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. (RE 593818 RG, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, julgado em 26/02/2009, DJe-064 DIVULG 02-04-2009 PUBLIC 03-04-2009 EMENT VOL-02355-06 PP-01118).
Apesar da posição prevalente do STJ e da ainda dúbia e incerta do STF, dúvidas não há que se abriu a possibilidade de correção dos rumos (no mínimo) estranhos da jurisprudência até então consolidada, com a sinalização de possibilidade da superação dos critérios de efeitos perpétuos dos “maus antecedentes”.
Espero que tenham gostado! Vamos em frente!
Pedro Coelho
Obs.: Se dúvidas houver sobre o tema ou sobre o processo penal, comentem na página da EBEJI ou diretamente no meu FB https://www.facebook.com/pedro.pmcoelho.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 238
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