1. Introdução

A tentativa de reconhecer aos animais o status de sujeitos de direito, proposição que vem surpreendentemente ganhando corpo na esteira do avanço das teorias ecológicas radicais, busca alicerçar-se num suposto igualitarismo das espécies (ou antiespecismo[1], este também uma das pedras de toque da ecologia profunda ou radical).

Como lembra François Ost (1997), o igualitarismo das espécies é abordado pela ecologia radical sob duas perspectivas. A ontológica ou holística, que pugna pela inexistência de diferença substancial entre homens e animais, e a normativa, que, sem desconhecer as diferenças essenciais em jogo, clama pela igualdade de direitos entre os seres.

Observe, no entanto, que a eventual admissão da igualdade ontológica significaria reduzir os homens a sua dimensão animal, em detrimento da faceta cultural que o distingue dos demais elementos vivos da natureza. Por outro lado, um igualitarismo normativo, com a atribuição de direitos à natureza, deslocaria indevidamente o que é do mundo estritamente natural – os animais irracionais, no caso – para o campo da moralidade, que vem a ser exclusivo do homem.

2. Utilitarismo e direitos dos animais

É muito comum, por parte da ecologia profunda ou radical, a tentativa de relacionar o reconhecimento de direitos próprios da natureza com a progressiva ampliação, ao longo da história, do rol dos sujeitos de direito. Diz-se que às crianças, negros, mulheres ou nascituros foram progressivamente reconhecidos direitos que antes lhes eram negados. Como assinalava Aldo Leopold (1968), um dos pontífices da ecologia profunda, os preceitos éticos, que inicialmente relacionavam apenas homens entre si[2], passaram, num segundo momento, a reger as relações destes com a sociedade, para, mais adiante, incluírem também as plantas e os animais no feixe de relações morais.

O filósofo Jeremy Bentham (2010), com sua doutrina utilitarista a relacionar a capacidade de ser detentor de direitos com a aptidão de possuir interesses, foi um dos pioneiros na defesa da assunção dos animais ao rol dos sujeitos morais. Isso porque, para ele, a aptidão de possuir interesse provém da simples capacidade de sentir dor ou prazer, e, como os animais não se diferenciam do homem nesse particular, seriam igualmente sujeitos de direito.

Bentham é mesmo explícito numa célebre passagem de sua obra (curiosamente, uma nota de rodapé), ao asseverar, ainda no século XVIII, que os animais são detentores de direitos. Ali, ele também se vale do argumento da sucessão histórica, ao dizer que “a França já descobrira que a escuridão da pele não seria razão para abandonar um homem aos caprichos de seu algoz”, referindo-se ao Código Negro, um decreto editado por Luís XIV, em 1685, que limitou os castigos corporais nos escravos do império colonial francês. A conquista de direitos pelos negros dá, então, a Bentham a esperança de que:

Se venha a perceber que o número de pernas, a pilosidade da pele ou a extremidade do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar uma criatura sensível à mesma sorte. O que deveria traçar a linha de demarcação? Será a faculdade de raciocinar ou, talvez, de falar? Mas um cavalo adulto ou um cão é, para lá de qualquer comparação, um animal mais sociável e mais racional do que um recém-nascido de um dia, uma semana, ou mesmo de um mês de vida. Mas, supondo que eles sejam diferentes, de que essa diferença valeria? A questão não é “eles podem raciocinar?”, nem tampouco “eles podem falar?”, mas, sim, “eles podem sofrer?[3]

Bentham esquece, entretanto, que o reconhecimento de direitos aos negros (como também às mulheres, crianças ou nascituros) não é mais do que dar ao sentido de humanidade a extensão que lhe é devida[4]. Completamente diferente é o reconhecimento de direitos aos animais, que exigiria a execução de um salto hermenêutico injustificável na tentativa de inapropriadamente universalizar a condição de humano. Se um recém-nascido é menos sociável ou é menos capaz de raciocinar do que um cão, como comumente se argumenta, isso ocorre por razões conjunturais e não por uma condição própria e essencial do humano.

3.Centro teleológico de vida

Paul Taylor (2011), que também defende o reconhecimento de direitos a criaturas não humanas, adota uma posição um pouco diversa da de Bentham, e o faz com base na distinção entre benefício aparente e benefício verdadeiro[5]. Para ele, um ser vivo pode possuir interesse em algo que não necessariamente o beneficie (é o caso de um benefício apenas aparente, portanto). Por outro lado, mesmo desprovido de consciência e, portanto, de interesse, um ser poderia beneficiar-se de algo, independentemente de nutrir qualquer interesse pela coisa que o beneficia. Para Taylor, são situações distintas: dizer que algo é de interesse do ser vivo ou dizer que um ser vivo possui interesse em algo.

A distinção levada a efeito por Taylor remete, por sua vez, à sua concepção de centro teleológico de vida, a teor da qual todo ente detentor de vida possui suas funções internas e externas orientadas para um fim, isto é, para a “preservação de seu organismo e consequentemente de suas funções biológicas, com o que reproduz sua espécie e se adapta continuamente às mudanças ambientais”[6]. Daí, a caracterização de um organismo como um ente apto a gozar de direitos decorreria da sua definição como um centro teleológico de vida, passível de gozar de benefícios reais voltados à sua preservação, inobstante não possua interesses conscientes. Com isso, Taylor estende a toda criatura viva a condição de sujeito de direito, afastando-se da noção utilitarista de Bentham.

4.Só o homem é um ser moral

Entretanto, não é esse o caminho a ser trilhado. Há uma clara diferenciação qualitativa entre o homem, as demais espécies vivas e o restante do mundo natural. Só o homem é dotado de liberdade e razão. Só o homem é um ser moral, mercê do arbítrio que a razão e a liberdade lhe outorgam. Se só ele, e não um animal irracional qualquer, pode, por exemplo, vir a cometer crimes, isso se deve ao fato de que só a humanidade é igualmente capaz de agir em conformidade com valores tais como o respeito à vida, à saúde e à liberdade.

O homem é assim, ao mesmo tempo, liberto e prisioneiro de sua própria racionalidade, da qual decorre sua responsabilidade por todas as coisas, inclusive pelo destino do mundo natural à sua volta, na medida de sua capacidade para aí influir. Com vistas nisso, o sofrimento animal não lhe há de ser indiferente. Kant (1981), por sinal, acreditava ser possível julgar o coração de um homem pelo tratamento que ele dispensa a um animal. Dizia-o, mas não sem antes deixar claro que nossos deveres para com os animais são meramente indiretos, decorrentes que são dos deveres que temos para com o próprio homem. Para ele, a ação de um animal, como a proteção que um cão dispensa a seu dono, é análoga à conduta humana e originada dos mesmos princípios que regem a ação dos homens. Por isso, os deveres em relação aos animais decorrem tão somente da referida analogia, não constituindo senão deveres em face da própria humanidade[7]. Note, contudo, que o reconhecimento por parte de Kant da existência de deveres (e, não, direitos, que fique claro) perante os animais não se mostra um grande alento para a ecologia radical, se se tiver em vista que ele reconhece igual dever em relação aos objetos inanimados.

Como ensina Soromenho-Marques, as nossas obrigações para com os animais não são fruto de uma lógica sinalagmática entre direitos e deveres. Vale dizer, não é porque temos deveres em face dos animais que estes gozarão também de direitos, haja vista a assimetria brutal existente entre animais e homens. Diz Soromenho:

Os direitos do ambiente ou são direitos humanos ou não são direitos, pois estes pressupõem a existência de uma reciprocidade só possível entre seres racionais. […] A minha condição de agente racional obriga-me a considerar os interesses que outros seres racionais, actuais ou possíveis, possam ter associados, não apenas à conservação, mas também ao modo como me relaciono com esses entes não racionais. (SOROMENHO-MARQUES, 1994, p. 73, grifos nossos).

5.Valor intrínseco e direito

Há também de ser dito que se faz, por vezes, uma errônea correlação entre um eventual direito da natureza e o valor intrínseco de que esta gozaria. Contudo, uma coisa não implica a outra. Só o homem é um ser moral, inserindo-se, por isso, numa teia normativa de direitos e deveres oriundos dessa moralidade. O eventual reconhecimento de um valor inerente ao mundo natural, por conseguinte, não corresponde ao reconhecimento de direitos, exclusivo que são dos seres morais.

Ademais, como lembra John Benson (2008), a expressão valor intrínseco guarda uma ambiguidade raramente dissipada por quem a emprega. Ele explica que valor intrínseco pode vir a significar, por um lado, o valor não instrumental – isto é, o atribuído ao objeto avaliado, independentemente de sua utilidade para o homem – e, por outro, o valor que existe independentemente da existência do ser que pratica o ato de valorar.

Aparentemente, muita polêmica em torno da temática poderia ser evitada, e algumas conclusões seriam revistas, se atentássemos para o duplo conceito apresentado por Benson (2008). Em geral, por não se enfrentar o problema conceitual, não se colocam as coisas nos seus devidos lugares. Quando, por exemplo, diz-se que nossas obrigações em relação aos seres vivos não humanos devem fundamentar-se no valor a eles inerente, talvez o interlocutor não se dê conta de que há sempre a necessidade da participação do homem, o agente moral por excelência, no ato de valoração, ainda que para conceber a independência do valor em face dos seus próprios interesses. A não ser se cogitássemos, com base naquela segunda hipótese, que o valor é em si algo real, independentemente da existência do agente que valora. Mas que serventia teria um valor à revelia das condutas humanas? De que serve um valor sem a participação dos homens para agir de acordo com o resultado da valoração? Aos seres fora do mundo cultural – porque não são seres éticos, não concebem suas condutas de acordo com regras morais, senão pelos desígnios naturais – nada lhes vale a suposta existência autônoma do valor, pois só o homem pode fazer guiar suas ações em consonância com balizas axiológicas.

É certo que há soluções conciliatórias que visam deslocar o problema dos valores para uma esfera mais pragmática, sustentando ser mesmo despiciendo, para o fim de outorgar proteção à natureza, perquirir-se se esta é ou não detentora de valor intrínseco (NORTON, 2007)[8]. Adotando-se ou não tal solução conciliatória, e seja qual for o sentido que se queira dar ao vocábulo valor intrínseco, o fato é que o direito é obra cultural e, desse modo, aparta-se por completo da dimensão meramente natural da existência.

O filósofo francês Luc Ferry vai além e receia, não sem razão, que a tentativa da ecologia profunda de reconhecer à natureza um plexo de direitos próprios culmine na produção de normas, estas mesmas, contrárias aos homens. Diz ele:

O projecto de uma ordem normativa anti-humanista é uma contradição em si […] Os nossos fundamentalistas […] esquecem-se, de passagem, de que são eles, seres humanos, que valorizam a natureza e não o contrário, que é impossível abstrair o momento subjectivo ou humanista para projectar no próprio universo um determinado valor intrínseco […] Imaginando que o bem está inscrito no ser das coisas, eles (ecologistas radicais) acabam por se esquecer de que qualquer valoração, inclusive a da natureza, é um acto dos homens e que, por consequência, toda a ética normativa é de algum modo humanista. (FERRY, 1993, p. 185).

Tem razão Ferry. Se não se pode conceber um direito da natureza fora do homem, com muito mais razão não se pode imaginar uma ordem normativa anti-humanista, ainda que encoberta sob o manto da nobre causa ecológica. Nesse cenário, corre-se o risco de que o reconhecimento de direitos aos animais alimente pregações como a de Edward Abbey, um dos inspiradores do grupo ambientalista Earth First, para quem seria preferível “matar um homem a atirar numa cobra”. Também já são já conhecidas as investidas da ecologia radical contra os direitos fundamentais – os de primeira geração, notadamente – que se constituiriam então mero reflexo de uma moral antropocêntrica a ser vigorosamente combatida.

*Temas correlatos a este artigo podem ser encontrados no livro do mesmo autor intitulado “Perigo Verde: o Princípio da Sustentabilidade como Contraponto à Ecologia Radical”. A obra, que aborda a doutrina ecológica sob um viés ainda não tanto usual no País, pode ser adquirida pelo site da Editora JH Mizuno, www.editorajhmizuno.com.br. É possível também ler e baixar trechos do livro em: www.bitly.com/perigoverde)

Obs.: A EBEJI informa que 10 cópias do livro “Perigo Verde: O Princípio da Sustentabilidade como Contraponto à Ecologia Radical” serão sorteadas entre os alunos do curso online Procurador Federal 2016 entre os meses de março e abril!

unnamed

Conheça esse curso visitando: https://www.ebeji.com.br/cursos/pgf/index.html

Referências

BENSON, John. Environmental Ethics: an introduction with readings. Londres: Routledge, 2008.

BENTHAM, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Ed. digital Kindle. Warrenton: White Dog Publishing, 2010.

DESJARDINS, Joseph R. Environmental Ethics: an introduction to environmental philosophy. 4. ed. revisada. Canadá: Wadsworth, 2006.

FERRY, Luc. A Nova ordem Ecológica. Porto: Edições Asa, 1993.

KANT, Immanuel. Lectures on Ethics. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1981.

LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac and Sketches Here and There. 2. ed. digital Kindle. Nova York: Oxford University Press, 1968.

NORTON, Bryan G. Ethics and Sustainable Development: an adaptive approach to environmental choice. In: ATKINSON, G.; DIETZ, S.; NEUMAYER, E. (Ed.). Handbook of Sustainable Development. Cheltenham: Edward Elgar, 2007. p. 27-44.

OST, François. A natureza à margem da Lei: ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

SOROMENHO-MARQUES, Viriato. Regressar à Terra: consciência ecológica e política de ambiente. Lisboa: Fim de Século, 1994.

TAYLOR, Paul W. Respect for Nature: a theory of environmental ethics. Edição digital Kindle de 25º aniversário. Princeton: Princeton University Press, 2011.

[1] “Especismo” é neologismo cunhado em 1970 por Richard Ryder e popularizado por Peter Singer, com o qual se traça um paralelo entre o antropocentrismo e ideias sexistas ou racistas. Sobre o tema, consultar Desjardins (2006). Uma exposição do próprio Ryder sobre a questão pode ser consultada na edição de 6 de agosto de 2005 do Jornal The Guardian, neste endereço eletrônico: <https://www.guardian.co.uk/uk/2005/aug/06/animalwelfare>.

[2] Leopold cita ilustrativamente o Decálogo como exemplo de paradigma ético que alcança os homens apenas em seus interesses individuais, para assinalar que “The first ethics dealt with the relation between individuals […] Later accretions dealt with the relation between the individual and society. There is as yet no ethic dealing with man’s relation to land and to the animals and plants which grow upon.” (LEOPOLD, 1968, ed. digital Kindle, posição 2828).

[3] No original: “The French have already discovered that the blackness of the skin is no reason why a human being should be abandoned without redress to the caprice of a tormentor. It may come one day to be recognized, that the number of the legs, the villosity of the skin, or the termination of the os sacrum, are reasons equally insufficient for abandoning a sensitive being to the same fate. What else is it that should trace the insuperable line? Is it the faculty of reason, or, perhaps, the faculty of discourse? But a full-grown horse or dog is beyond comparison a more rational, as well as a more conversable animal, than an infant of a day, or a week, or even a month, old. But suppose the case were otherwise, what would it avail? the question is not, Can they reason? nor, Can they talk? but, Can they suffer?” (BENTHAM, 2010, ed. digital Kindle). Alerte-se para o fato de que algumas edições eletrônicas do livro não veiculam a nota de rodapé de que foi extraído esse texto.

[4] Nesse sentido a lição de Ost, segundo o qual se evidencia “o reconhecimento dos direitos fundamentais a categorias cada vez mais amplas de beneficiários: depois dos nacionais adultos e masculinos, os estrangeiros, os escravos, os negros, os menores, as mulheres… e, em breve, os animais […] em todas estas hipóteses, exceto a última, se trata simplesmente de dar ao conceito de humanidade a sua plena extensão, reconhecendo a todos os homens (e aos agrupamentos de pessoas, como as associações) os direitos que lhes pertencem. Atribuir direito aos animais e, a fortiori, aos outros elementos naturais, é, necessariamente, consumar uma ruptura, mais do que situar-se numa qualquer continuidade” (OST, 1997, p. 252).

[5] Note que traduzi por “benefício” o que Paul Taylor denomina “good of its own”.

[6] No original: “teleological center of life is to say that its internal functioning as well as its external activities are all goal-oriented, having the constant tendency to maintain the organism’s existence through time and to enable it successfully to perform those biological operations whereby it reproduces its kind and continually adapts to changing environmental events and conditions”. (TAYLOR, 2011, ed. digital Kindle, posição 2071).

[7] Veja o que diz Kant: “If then any acts of animals are analogous to human acts and spring from the same principles, we have duties towards animals because thus we cultivate the corresponding duties towards human beings. If a man shoots his dog because the animal is no longer capable of service, he does not fail in his duty to the dog, for the dog cannot judge, but his act is inhuman and damages in himself that humanity which it is his duty to show toward mankind.” (KANT, 1981, p. 240).

[8] Nesse sentido, conferir, entre outros, Norton: “If one instead adopts pluralism, accepting the fact that humans value nature in many ways, and considers these values to range along a continuum from purely selfish uses to spiritual and less instrumental uses, it is unclear – and not really very important – where to ‘separate’ one kind of value from another. If we think of natural objects as having many kinds of value, arguments about why we should protect nature slide into the background and the focus moves to protecting as many of the values of nature as possible, for the longest time that is foreseeable.” (2007, p. 28-29).