Direito Processual Penal Militar: De quem é a competência para julgamento de civil que comete crime contra militar em atividade anômala de policiamento?
Prezados,
Em primeiro lugar, gostaria de desejar a todos um excelente ano de 2015 e que todos nós consigamos trabalhar e desenvolver nossos caminhos para atingir todos os objetivos traçados para esse novo ano.
Nesse ano de 2015, o blog será bastante enriquecido com informações, dicas, atualizações doutrinárias e jurisprudenciais e me comprometerei em, no mínimo, uma vez por semana (segunda-feira, preferencialmente) trazer novidades para vocês.
E, como não poderia deixar de ser, “começo o ano” trazendo uma situação bastante polêmica e complexa, ainda pendente de solução definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, mas que deverá ser atentamente aprendida por todos aqueles que se interessam em ingressar na carreira de Defensor Público Federal.
Antes de adentrarmos propriamente na celeuma jurídica objeto deste post, curial registrar que desde os finais de 2010, as forças de segurança pública atuantes do Rio de Janeiro passaram a operar procedimentos especiais (e alguns de duvidosa constitucionalidade) a fim de “enfrentar o tráfico de drogas até então dominante na região do Complexo do Alemão”. Entre essas medidas, foi adotado em alguns pontos do local policiamento ostensivo exercido por Militares Federais, incluindo aí membros do Exército brasileiro.
A utilização das Forças Armadas e também da Polícia Federal nesse processo (que passou a ser noticiado pela mídia como “pacificação do Complexo do Alemão”) se justificou diante da insuficiência do contingente de homens dos efetivos da Polícia Militar e Civil do estado do Rio de Janeiro. Diante desse cenário, dentre várias situações inusitadas geradas, uma especificamente nos chamou bastante a atenção, por envolver a celeuma da competência de julgamento de civis por crimes militares. Explico.
Os Tribunais passaram a se deparar, com alguma frequência, com a situação em que militares das Forças Armadas eram sujeitos passivos de crimes de Desacato[1] e, ato contínuo, a se questionar sobre a competência para o julgamento dos referidos crimes! Em última análise, passou-se a indagar se em tal situação teríamos a devida adequação ao previsto no artigo 9º do CPM:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Aparentemente, a 1ª Turma do STF tem se posicionado positivamente pela perfeita adequação, ao entender que o crime de desacato praticado contra militar das forças armadas em atividade de policiamento nas favelas do Rio de Janeiro, por se enquadrar no dispositivo supratranscrito, deve ser da competência da Justiça Militar da União. Vejamos:
Ementa: HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO A RECURSO ORDINÁRIO. CIVIL ACUSADO DE CRIME MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. INAPLICABILIDADE DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Compete à Justiça Militar processar e julgar civil acusado de desacato e desobediência praticados contra militar das Forças Armadas no “desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública” (art. 9º, III, d, C.P.M). Precedente da Primeira Turma: HC 115.671, Redator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio; 2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 90-A da Lei nº 9.099/95, com a redação dada pela Lei nº 9.839/99. Inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Militar. 3. Habeas Corpus extinto sem resolução de mérito por inadequação da via processual. (HC 113128, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 10/12/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-035 DIVULG 19-02-2014 PUBLIC 20-02-2014).
Apesar da força e autoridade dos argumentos desenvolvidos pelos adeptos da posição adrede apontada, entendo que ela não se revela como a mais correta e adequada. Ademais, indubitavelmente, em uma prova de 2ª ou 3ª fase da DPU, não é ela que deverá ser defendida pelo candidato.
É que a 2ª Turma do STF possui julgados bastante interessantes, refutando a competência da Justiça Castrense para o julgamento de civis em tais situações. É que, ao contrário do exposto pela 1ª Turma, há entendimento de que o “serviço de vigilância” indicado no CPM deve ser interpretado de maneira restritiva. Ou seja, a alínea d do inciso III do artigo 9º do CPM deve abarcar exclusivamente a vigilância prestada no exercício de atividade específica da função militar desempenhada pelas Forças Armadas!
Pedro, não consegui entender onde está o problema!?
Percebam que para a 2ª Turma do STF, em raciocínio bastante coerente, o exercício ostensivo em favelas em tempo de paz não é serviço militar, mas sim uma atividade de segurança pública, desqualificando a incidência do artigo 9º do CPM (como bem asseverou o Ministro Celso de Mello, é “o caráter anômalo da jurisdição penal militar sobre civis”).
Ora, se o fato não se adéqua ao referido dispositivo, não há que se falar em crime a ser submetido à jurisdição castrense! Mas quem detém a competência para o julgamento? Facilmente se percebe que a competência, nesses casos, será da Justiça Federal, já que o crime de desacato foi cometido contra agente público federal (militar das Forças Armadas). Vejamos esse longo, mas excelente julgado:
E M E N T A: “HABEAS CORPUS” – IMPUTAÇÃO, AO PACIENTE, QUE É CIVIL, DE CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO – SUPOSTO DELITO DE DESACATO A MILITAR (CPM, ART. 299) – OCORRÊNCIA DESSE FATO EM AMBIENTE ESTRANHO AO DA ADMINISTRAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS – MILITAR DO EXÉRCITO, SUPOSTAMENTE DESACATADO, QUE REALIZAVA ATIVIDADE DE POLICIAMENTO OSTENSIVO NO PROCESSO DE OCUPAÇÃO E PACIFICAÇÃO DAS COMUNIDADES DO COMPLEXO DO ALEMÃO E DA PENHA, NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO – FUNÇÃO DE POLICIAMENTO OSTENSIVO QUE TRADUZ TÍPICA ATIVIDADE DE SEGURANÇA PÚBLICA – CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR SOBRE CIVIS EM TEMPO DE PAZ – REGULAÇÃO DESSE TEMA NO PLANO DO DIREITO COMPARADO – OFENSA AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL – INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO – COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA FEDERAL COMUM (CF, ART. 109, IV) PELO FATO DE A VÍTIMA, MILITAR DO EXÉRCITO, QUALIFICAR-SE COMO AGENTE PÚBLICO DA UNIÃO – PEDIDO DEFERIDO. FUNÇÃO DE POLICIAMENTO OSTENSIVO EXERCIDA POR MILITAR DAS FORÇAS ARMADAS – ENCARGO QUE SE QUALIFICA, CONCEITUALMENTE, COMO TÍPICA ATIVIDADE DE SEGURANÇA PÚBLICA. – Refoge à competência penal da Justiça Militar da União processar e julgar civis, em tempo de paz, por delitos supostamente cometidos por estes em ambiente estranho ao da Administração Militar e alegadamente praticados contra militar das Forças Armadas no contexto do processo de ocupação e pacificação das Comunidades localizadas nos morros cariocas, pois a função de policiamento ostensivo traduz típica atividade de segurança pública. Precedentes. (…). A Constituição do Brasil, ao proclamar o regime das liberdades públicas – que representa expressiva limitação aos poderes do Estado –, consagrou, de modo explícito, o dogma fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. (HC 112936, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 05/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-093 DIVULG 16-05-2013 PUBLIC 17-05-2013 RTJ VOL-00224-01 PP-00533).
A ideia que prevaleceu no julgamento acima declinado foi a de que função militar típica é o exercício das obrigações inerentes ao cargo militar, devendo-se, no entanto, restringir a compreensão para as atividades ligadas às constitucionalmente destinadas às Instituições Militares, com fulcro no artigo 23 do Estatuto dos Militares, ao passo que a função de policiamento ostensivo é vinculada à segurança pública, atipicamente desempenhada – no caso – por militares das Forças Armadas.
Ora, se o militar das forças armadas está exercendo função atípica de policiamento ostensivo (de caráter eminentemente civil), não está em atividade militar. Se for ofendido em razão desse exercício ou no seu cumprimento, obviamente o crime que ocorre é comum nos termos do artigo 331 do CPB e não do art. 299 do CPM, razão pela qual afastada estaria a competência da Justiça Castrense.
Essa posição vem ao encontro da tese cada vez mais defendida pela Defensoria Pública da União, em reforço à tendência da jurisprudência das Cortes Internacionais, de afastar a incidência da jurisdição militar sobre civis[2], daí a importância de sua defesa em provas subjetivas e oral!
É um tema um pouco complicado, que ainda pende de solução definitiva pelo STF, mas que tentamos esclarecer de maneira didática no presente post!
Espero que tenham gostado!
Vamos em frente! Ótimo 2015 para todos nós!
Pedro Coelho
Obs.: Se dúvidas houver sobre o tema ou sobre o processo penal, comentem na página da EBEJI ou diretamente no meu FB https://www.facebook.com/pedro.pmcoelho.
[1] Em outro post analisaremos se o referido tipo penal se sustenta após um exame de convencionalidade e como se posicionam as Cortes Internacionais sobre o tema.
[2] Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.. – Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (…)” (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, “Puntos Resolutivos”).
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