Caríssimos alunos da EBEJI e leitores do blog, no início do mês, ocorreu a célebre Prova de Tribuna do Ministério Público de Goiás, última etapa do certame (se não considerarmos a fase de títulos), coroando um dos concursos públicos mais difíceis do país. Como professor, minha percepção é de que, tradicionalmente, os exames mais espinhosos para Promotor de Justiça têm sido realizados pelo MPMG, MPDFT e MPGO, o que não significa que os demais sejam simples. Absolutamente.

A fase de tribuna foi meramente classificatória, ou seja, todos os candidatos já estavam aprovados. Nem todos os Ministério Públicos exigem a fase de tribuna. Por exemplo, o MPPE e o MPRO não possuem esta etapa, ao contrário do MPPA e do MPMA, instituições que demandam esta solenidade para a investidura em seus quadros.

Como fui o último a ser examinado, tive a brilhante oportunidade de assistir à prova de quase todos os demais candidatos. A experiência me enriqueceu.

Confesso que, por ser Promotor de Justiça, imaginei que o jogo seria mais fácil. Para a minha surpresa, os candidatos se portaram como verdadeiros veteranos, sustentando suas teses com uma desenvoltura incomum a neófitos. Ao que tudo indica, parte disso se deve ao Professor Rafael Simonetti, Promotor de Goiás, que preparou uma fração considerável dos candidatos. Alguns deles, inclusive, chegaram a filmar seus discursos, exatamente para que pudessem exercer a autocrítica. Em suma: o pessoal estava afiado.

Aos nossos alunos, que se preparam para os concursos vindouros de Promotor de Justiça, disponibilizo o discurso que construí na véspera da prova, nos átrios do Hotel OITIS. Levei uma farta bibliografia sobre Medicina Legal, Criminologia, Psiquiatria Forense, Tribunal do Júri, Balística Forense e Direito Penal. Consultei apenas alguns deles, assumindo relevo, em razão das peculiaridades do caso sorteado, a obra sobre Balística Forense. Tive o cuidado de alterar os nomes e alguns dados neste material de estudo, por excesso de cautela, porque talvez o caso sorteado realmente tenha ocorrido na vida real. Sabemos que a vida imita a arte e que a arte imita a vida.

Sou professor de Direito Constitucional, não de Direito Penal ou Processual Penal, mas creio que, de alguma forma, compartilhar esta experiência seja útil. Talvez, daqui a alguns dias, você, leitor, estará prestes a ser examinado em uma prova de Tribuna. Neste caso, meus votos são que você faça uma ótima prova e que o discurso elaborado para o meu exame, de alguma forma, o ajude.

Ei-lo:

ROTEIRO PARA PROVA DE TRIBUNA

1. Saudações

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Presidente;

Digníssimo Advogado do réu, pessoa a quem a Constituição confiou a missão de contraditar a acusação, oxigenando o julgamento de hoje com o contraditório e a mais ampla defesa;

Digníssimos Serventuários da Justiça e Agentes de Segurança Pública;

Excelentíssimos Senhores Jurados; juízes de fato e do fato, sobre os ombros de quem recai a pesada tarefa de julgar o seu semelhante.

2. A Instituição do Júri

Nem todos os crimes são julgados pelo povo. Quis a Constituição Brasileira, no artigo 5º, XXXVIII, que, pelo menos, os delitos dolosos contra a vida fossem julgados por pessoas não letradas nas ciências jurídicas. Ou seja, por enquanto, no Brasil, somente o homicídio, o abortamento, a participação em suicídio e o infanticídio ficam aos cuidados do Tribunal do Júri, enquanto os demais crimes são julgados por Juízes e Tribunais que integram permanentemente o Poder Judiciário brasileiro.

Por que?

Porque no homicídio, no abortamento, na participação em suicídio e no infanticídio, podem haver razões dramáticas que levem um ser humano a abreviar a vida do outro. Quando um pai mata o estuprador da sua filha, nossa Constituição determina que ele seja julgado pelos seus pares, porque somente os seus concidadãos possuem condições de compreender esse delito, tal como ele é, julgando a sorte do infrator: condenado ou absolvido. Quando dois náufragos disputam uma única boia no oceano, a morte de um deles é diferente daquela levada a cabo por um serial killer. Cabe ao povo, portanto, decidir se o crime cometido é digno de clemência. Já adianto ao Colendo Corpo de Jurados que hoje nos debruçaremos sobre um delito que não requer qualquer caridade, pelo contrário, reclama uma punição proporcional ao mal praticado. Não basta punir. É necessário punir com a devida severidade. Dostoiévski escreveu uma obra intitulada Crime e Castigo. São coisas que caminham juntas: mais crime, mais castigo.

Pois bem.

Esse julgamento é protagonizado por Vossas Excelências, mas é coadjuvado pelo Ministério Público e pela defesa. Passo, brevemente, a explicar aos Eminentes jurados o papel desempenhado por cada um.

3. Papel do Ministério Público e da Defesa

O Promotor de Justiça não é um acusador implacável ou um colecionador de acusações. O nome revela a missão: Promotor de Justiça, não de acusação. Como diria Eugênio Pacelli, o Ministério Público não é um órgão de acusação, mas sim um órgão legitimado à acusação”. Promove-se a Justiça. Mas o que é Justiça? Respondo: justiça é a condenação de culpados e a absolvição de inocentes. Portanto, ao Ministério Público interessa, na mesma medida, tanto a condenação de culpados quanto a absolvição de inocentes. A pergunta que se nos afigura é: interessa à defesa a condenação de culpados?

Na verdade, o Ministério Público é também um advogado. Um advogado da sociedade. Um advogado daquele (ou da família daquele) que muitas vezes já não está mais entre nós. O Ministério Público dá voz aos emudecidos, na medida em que atua como porta voz da vítima.

Não estamos julgando hoje se o Sr. Paulo é um homem bom ou mau. Se é íntegro ou não. Se é trabalhador ou não. Estamos avaliando se ele tinha o direito de fazer o coração de Rodrigo parar de bater. Os senhores estão a julgar se o réu tinha o direito de transformar uma mulher em viúva, de transformar uma criança em órfã e de enlutar o coração de uma mãe, fazendo pairar uma sombra negra sobre a alegria de toda uma família.

A bem da verdade, o promotor de justiça é um defensor intransigente da vida. E, se defende a vida, defende a primeira condição para usufruir todos os demais direitos humanos. Infelizmente, há direitos humanos (dos) esquecidos. Estou aqui para proclamar e defender os direitos fundamentais das vítimas e de seus familiares, pessoas que costumam ser esquecidas e que, por conseguinte, merecem uma inclusão discursiva.

O réu é uma pessoa cuja dignidade deve ser respeitada, mas não é uma divindade a ser cultuada. Hoje, senhores jurados, posso afirmar que a conduta do Sr. Paulo foi intolerável para o Ministério Público.

O tardio julgamento só se realiza quase 6 anos depois. Nas palavras de Rui Barbosa, “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Sabem onde o Paulo está agora? Solto. A esperança do Ministério Público é que, hoje, a resposta seja dada à sociedade.

4. Do crime: tentativa de homicídio

Segundo um provérbio, “A vida do homem é como uma vela acesa ao vento” . Basta um sopro mais forte e ela se apaga. A pergunta que faço aos Eminentes jurados é: o Sr. Paulo assoprou esta vela? O réu fez questão de soprar a vela da vida de Rodrigo. Quis Deus ou, para quem não acredita Nele, quis o destino que essa vela não se apagasse.

Não foi por falta de tentativa.

O Sr. Paulo só não amputou a companhia de Rodrigo dos seus familiares por circunstâncias alheias à sua vontade.

O que aconteceu no dia 25 de março de 2011[1], naquela fatídica sexta-feira?

Por volta das 11:00, em frente à AGEPEL[2], setor central, Goiânia/GO (Nota-se a ousadia desmedida de quem se aventura em exterminar uma vida humana à luz do dia, sem qualquer pudor ou temor):

1º disparo no braço (reação reflexa e instintiva de defesa).

2º disparo fracassado, porque o tambor do revólver explodiu. Esse evento é definido na Balística Forense como um acidente de tiro, que “…ocorre quando se produz uma interrupção dos tiros com danos de qualquer natureza, materiais e/ou pessoais” (TOCHETTO, Domingos. Balística Forense: Aspectos Técnicos e Jurídicos. Millennium Editora, 2016.  p. 256).

As causas do acidente de tiro, em geral, são originadas da própria arma, da munição ou do atirador. No caso em apreço, o tambor do revólver, cilindro com várias câmaras de combustão, acabou explodindo. A propósito, isso gera risco de morte para o próprio atirador. Para se ter ideia do perigo, em casos assim, o perito deve valer-se de um anteparo ou escudo para realizar os testes de eficiência e potencial lesivo do artefato bélico.

3º não satisfeito, o acusado passou a desferir coronhadas na cabeça da vítima, que já estava caída e suplicando por socorro.

4º Diante da chegada da polícia, o crime frustrou-se e o réu fugiu.

O que desencadeou este ataque brutal?

Uma dívida oriunda de trabalhos prestados durante uma campanha eleitoral. Vê-se que o credor da dívida, em vez de buscar os meios legais para cobrá-la, optou por assassinar o devedor. Impossível não lembrar da filosofia de Kant, que distinguia os bens economicamente apreciáveis daqueles incapazes de serem mensurados em pecúnia. Para Kant, alguns bens não têm preço. Estes somente possuem dignidade. Percebe-se que, para o réu, a vida da vítima tem um preço menor (ou igual) que o dinheiro que deveria ter recebido pela campanha. 

MATERIALIDADE: laudo de exame de eficiência da arma e exame de corpo de delito (lesões corporais sofridas pela tentativa de homicídio);
AUTORIA: confissão do acusado por ocasião da audiência de instrução: “A denúncia é verdadeira“. Segundo Malatesta, trata-se da “Rainda das Provas”.

Senhores jurados, a tese da defesa técnica é a legítima defesa e, subsidiariamente, desistência voluntária (desclassificação para lesão corporal).

a) Refutação da tese da legítima defesa: o réu deu início às agressões. Mesmo que não as tivesse iniciado, o que só se admite por amor ao debate, ad argumentandum, excedeu-se manifestamente, inclusive, golpeando a vítima caída no solo.

b) Refutação da tese da desistência voluntária: segundo a clássica fórmula de Frank, na desistência voluntária, o responsável pela conduta diz a si mesmo “posso prosseguir, mas não quero”, ao contrário do que ocorre na tentativa, quando diz a si mesmo “quero prosseguir, mas não posso“.

O acusado não desistiu voluntariamente de prosseguir na execução. Em boa verdade, ele só cessou as agressões quando a vítima conseguiu gritar por socorro, chamando a atenção dos transeuntes e da polícia. Não é digno, pois, daquilo que Von Lizst cunhou de ponte de ouro, na medida em que o fundamento da política criminal é estimular o agente a não ir em frente. No caso apreciado, o agente prosseguiu obstinadamente.

Só não disparou mais porque o revólver explodiu.

Oitiva da vítima em juízo:

Foi atingido por dois disparos no braço direito, de raspão, quando reagiu e tentou segurar a arma. Caiu no chão, enquanto era agredido com golpes de coronhada na cabeça. Clamou por socorro.

Testemunhas inquiridas na audiência de instrução:

– Diego Pereira: ouviu dois tiros, viu a vítima ensanguentada e o réu correndo com a arma na mão.

– Igor da Silva: nada digno para ser acrescentado em Plenário.

Testemunhas inquiridas mediante carta precatória:

 Nada sabiam a respeito do evento criminoso.

Quesitação:

1º Materialidade do fato: SIM. Os laudos a demonstram cabalmente.

2º Autoria: SIM. Ele confessou na audiência de instrução.

3º Os jurados absolvem o réu? NÃO. Este Sinédrio Popular é uma casa de Justiça e não de caridade.

[1] – Por ironia do destino, o crime foi cometido na data em que se comemora a Constituição brasileira. 25 de março é o dia da Constituição, em razão da outorga da Carta de 1824 por Dom Pedro I, evento importante para o processo de independência do Brasil. É possível mencionar isso em Plenário.

[2] – Segundo as imagens fornecidas pelo google, o local do crime é arborizado e a céu aberto. Há vários bancos e situa-se perto a uma praça, a chamada Praça Cívica.