Questões jurídicas correlatas aos terrenos de marinha são costumeiramente judicializadas, tratando-se de demanda corrente nas Procuradorias da União, muito pelos imóveis que margeiam tanto nossas extensas costas marítimas quanto os vastos rios/lagoas que sofrem influência das marés. Em post passado, abordei as demarcações dos terrenos de marinha e a consequente desnecessidade de ação judicial para retificação do registro cartorário.

Presentemente, a intenção é inserir o leitor na seguinte temática: os terrenos de marinha e o usucapião.

Como intróito, importa novamente mergulhar no conceito de terreno de marinha, que não é terreno daMarinha – uma das três forças militares que, ao lado do Exército e da Aeronáutica, compõem o conjunto das Forças Armadas do Brasil. Em verdade, é um termo técnico para certos terrenos, por estarem muito próximo à praia ou a um rio, lago ou lagoa que sofra influência dos movimentos das marés.

Os terrenos de marinha são bens públicos, pertencentes à União, nos precisos termos do inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal.

Art. 20. São bens da União:

(…)

VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos;

Não custa rememorar que o domínio da União sobre os terrenos de marinha remonta ao período colonial do Brasil, como retrata a Ordem Régia de 04 de dezembro de 1710, que apregoava que “as sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu serviço, e de defensa da terra.

Assim, desde períodos remotos da história nacional, os terrenos de marinha sempre foram relacionados à defesa do território. A intenção era deixar desimpedida a faixa de terra próxima da costa, para nela realizar movimentos militares, instalar equipamentos de guerra, etc.

Pois bem, o Decreto-Lei n. 9.760/1946 é a norma que, ainda, traça o conceito de terreno de marinha, assim o definindo:

Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:

a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;

b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.

Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano. (grifei)

Quanto ao termo preamar, trata-se de termo técnico que designa maré alta, de tal sorte que, para se identificar um terreno de marinha de forma apenas aproximada, basta se contar os tais 33 metros em um dia de maré cheia e em época de lua cheia. A exata definição advirá com a demarcação da LPM – Linha Preamar Média – no ano de 1831, procedimento complexo sob a competência da Secretaria do Patrimônio da União, através de suas Superintendências estaduais.

Realizadas as definições acima é de se perguntar se podem, ou não, serem os terrenos de marinha usucapidos à luz do § 3º do art. 183 da Constituição Federal (Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião).

A primeira resposta é que os terrenos de marinha, reconhecidos constitucionalmente como bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião, conforme preceitua o citado dispositivo constitucional.

Ocorre que, na eventual hipótese de particular usar o terreno de marinha sob o regime da enfiteuse público ou aforamento, a União (senhorio direto) transfere ao particular (enfiteuta) o domínio útil do imóvel e o particular (enfiteuta) passa a ter a obrigação de pagar anualmente uma importância a título de foro ou pensão.

E quanto ao referido domínio útil, é pacífica a jurisprudência no sentido da plausibilidade do reconhecimento da prescrição aquisitiva (usucapião), afinal, nestas hipóteses a UNIÃO não mais detém o domínio pleno do imóvel, mas apenas o domínio direto, que continua em seu patrimônio jurídico e não pode ser usucapido.

Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela possibilidade de se usucapir o domínio útil do terreno de marinha, em julgado sob a relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, in verbis:

“Usucapião de domínio útil de bem público (terreno de marinha). (…) O ajuizamento de ação contra o foreiro, na qual se pretende usucapião do domínio útil do bem, não viola a regra de que os bens públicos não se adquirem por usucapião. Precedente: RE 82.106RTJ 87/505.”

(RE 218.324-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 20-4-2010, Segunda Turma, DJE de 28-5-2010.)

Sendo assim, é possível a aquisição do domínio útil dos terrenos de marinha em regime de aforamento, via usucapião, desde que a ação seja movida contra particular, até então enfiteuta, contra quem operar-se-á a prescrição aquisitiva, sem atingir o domínio direto da União.