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“FAIRNESS DOCTRINE” : DIMENSÃO POSITIVA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Hoje examinaremos um tema pouco explorado na literatura de Direito Constitucional, mas que foi generosamente exigido no 28º Concurso para Procurador da República (28º CPR), recebendo atenção em quatro itens da prova.
1. Introdução
Principiamos com uma indagação.
A pergunta que se nos afigura é: para assegurar a liberdade de expressão, é suficiente que o Estado se abstenha de censurar?
De início, convém ressaltar que os direitos individuais previstos no artigo 5º da Constituição, como regra, são concretizados por meio de uma abstenção do Estado (non facere): não violar o domicílio, não admitir provas ilícitas, não torturar, não discriminar etc. Esta foi a técnica legislativa do constituinte, ao arrolar liberdades clássicas no reino do artigo 5º. Sendo assim, se a liberdade de expressão é consagrada no inciso IV do artigo 5º (“é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato“), é natural que sua efetivação se dê por uma abstenção estatal. Porém, a questão que se põe não é tão simples quanto parece.
Imaginemos que, em uma comarca com menos de 20.000 habitantes, até então não contemplada com meios de comunicação em massa, surja uma pequena rádio. É indiscutível o poder de persuasão do referido veículo de mídia. Sabedores disso, muitos políticos, sobretudo no interior do país, controlam e exploram a radiodifusão. Sem dúvidas, muitos problemas podem advir dessas circunstâncias.
Devemos lembrar que, como dois lados de uma mesma moeda, o direito de informar é correlato ao direito de ser informado. Significa dizer que, se, por um lado, os particulares têm liberdades comunicativas, a sociedade como um todo tem o direito de ser (bem) informada sobre temas de interesse público.
No Brasil, alguns programas televisivos se propuseram a abordar temas de interesse público de maneira supostamente neutra e paritária, a exemplo do Programa “Na Moral”, apresentado por Pedro Bial (Rede Globo). Nele, assuntos como “liberalização das drogas” eram debatidos de maneira plural, por pessoas credenciadas e com visões antagônicas sobre a controvérsia. Ocorre que esta abordagem pretensamente neutra é fruto da autonomia editorial da emissora, que tem a liberdade de enfatizar uma dada opinião, uma outra visão de mundo ou mesmo ambas, na intensidade que lhe aprouver. Noutra ponta, emissoras como a TV Canção Nova e a Rede Record, controladas por grupos católicos e católicos, talvez não veiculassem programações que dessem espaço para opiniões que colidissem com os ditames e preceitos da comunidade cristã, o que também está amparado pela autonomia editorial. Até onde seria bem-vinda a intromissão do Estado nesse delicado cenário?
A mão invisível do mercado é capaz de assegurar uma abordagem equilibrada de temas cruciais ao interesse público ou o Poder Público tem o dever de intervir para garantir esse direito fundamental e difuso? Este é o ponto nevrálgico.
2. A real dimensão do dilema
O leitor deve perceber a profundidade do dilema: se a hipótese fosse de um debate entre candidatos postulantes a um cargo eletivo (pleito eleitoral), não haveria dúvidas de que a paridade de armas deveria ser assegurada pelo Estado. Lado outro, em se tratando de uma programação inofensiva, de caráter meramente lúdico ou recreativo (v.g o saudoso programa “Em Nome do Amor”, protagonizado por Sílvio Santos), a intervenção do Estado seria insofismavelmente inoportuna. Contudo, há uma situação intermediária. O problema se apresenta quando, embora se trate de um entretenimento particular, o tema abordado se revista de interesse público, a exemplo do (des)armamento da população, do casamento gay, da (im)possibilidade de aborto, da (des)criminalização de drogas, da Escola Sem Partido etc. Em casos tais, o pluralismo político, princípio fundante da República, autorizaria (ou reclamaria) uma postura intervencionista do Estado?
Há duas vertentes de compreensão:
– 1ª CORRENTE: postura ativista do Estado nas liberdades comunicativas (Daniel Sarmento, Luís Roberto Barroso e Gustavo Binenbojm – adotada na prova do MPF)
Na Escola Fluminense de Direito Constitucional, o entendimento é o de que é necessário dar voz aos emudecidos, devendo o Estado, mais do que não censurar, intervir para assegurar um debate plural e paritário quando se trata de temas de interesse da sociedade.
Para esta corrente, o absenteísmo estatal traduz uma intolerável omissão, na medida em que, nas palavras de Daniel Sarmento, “o regime do laissez-faire não é suficiente para permitir a todos a efetiva fruição desta tão importante liberdade, e produz como conseqüências práticas o reforço do poder dos ricos na esfera comunicativa, o empobrecimento dos debates públicos e a manutenção de uma estrutura social desigualitária e opressiva” [1]. A ideia é reforçada pelo princípio constitucional do pluralismo político (art. 1º, V, CF/88), além do artigo 225, §5º, a saber:
Art. 220, § 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
Críticas à corrente ativista: na prática, em vez de pluralizar os debates públicos sobre temas cardeais, a medida geraria um efeito inverso: exatamente para se eximir do dever de veicular uma programação equilibrada sobre temas polêmicos, os veículos de mídia evitariam abordar assuntos controversos. Ademais, o risco de abusos por parte do Estado seria incalculável, porque seus agentes fiscalizadores também possuem uma agenda política e uma pauta ideológica. Não raro, governantes utilizariam esse artifício para intervir a favor da sua tábua de valores.
– 2a CORRENTE: postura libertária do Estado nas liberdades comunicativas (STF)
Os particulares que exploram veículos de mídia possuem uma discricionariedade editorial. Esta autonomia editorial é proveniente da liberdade de expressão e da própria autonomia privada.
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
O Supremo Tribunal Federal tem decisões muito incisivas que, embora não tenham tratado do tema diretamente, explicitam a impossibilidade de regulação da imprensa no Brasil:
PROFISSÃO DE JORNALISTA. ACESSO E EXERCÍCIO. CONTROLE ESTATAL VEDADO PELA ORDEM CONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL QUANTO À CRIAÇÃO DE ORDENS OU CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição. A impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação.
(STF, RE 511961/SP – 17.06.2009 – Pleno)
Nas palavras do Ministro Celso de Mello, a imprensa deve sujeitar-se a uma autorregulação natural:
“… a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”. 9. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. É da lógica encampada pela nossa Constituição de 1988 a autorregulação da imprensa como mecanismo de permanente ajuste de limites da sua liberdade ao sentir-pensar da sociedade civil. Os padrões de seletividade do próprio corpo social operam como antídoto que o tempo não cessa de aprimorar contra os abusos e desvios jornalísticos. Do dever de irrestrito apego à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público decorre a permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade da imprensa. Repita-se: não é jamais pelo temor do abuso que se vai proibir o uso de uma liberdade de informação a que o próprio Texto Magno do País apôs o rótulo de “plena” (§ 1 do art. 220).
(STF, ADPF 130 – 30.04.2009)
A despeito da respeitável doutrina em sentido contrário, é possível afirmar que, por ora, esta tem sido a concepção dominante no Brasil.
Críticas à corrente libertária do Estado nas liberdades comunicativas: sabe-se que a imprensa é capaz de manipular a opinião pública em temas muito sensíveis, inclusive, com impactos diretos nos pleitos eleitorais. Em tese, a abordagem equilibrada de assuntos de interesse público seria mais sadia à (boa) informação.
3. A chamada fairness doctrine
Nos Estados Unidos, prevalece a segunda corrente: uma postura libertária do Estado quando se trata de liberdades comunicativas. Isso porque a liberdade de expressão (freedom speech), prevista na 1ª emenda, é tida como uma liberdade preferencial. Todavia, até a década de 80 do século XX, o Direito Constitucional estadunidense vivenciou momentos de triunfos da fairness doctrine.
Esclarecedores são os dizeres de Daniel Sarmento [1]:
A fairness doctrine foi criada pela FCC (Federal Communications Comission) – agência reguladora norte-americana dedicada à área de comunicações eletrônicas – e consistia numa série de medidas que visavam a assegurar que as rádios e televisões destinassem uma boa parte da sua programação à cobertura de questões de interesse público, e que, nesta cobertura, oferecessem oportunidade para apresentação de pontos de vistas diversificados e conflitantes, visando, com isso, a proporcionar ao público o acesso a versões e opiniões variadas sobre temas relevantes para a coletividade.
Embora tenha sido acolhida pela Suprema Corte norte-americana em um importante precedente (Red Lion Broadcasting Co vs. Federal Communications Comission – 1969), a chamada fairness doctrine não se consolidou nos Estados Unidos. No Brasil, como se viu, o STF tem trilhado uma jurisprudência contrária à fairness doctrine, mas a doutrina constitucionalista fluminense a tem exaltado.
No 28º Concurso para Procurador da República (28º CPR), a prova de Direito Constitucional exigiu um posicionamento afinado com a doutrina. Todos os itens a seguir foram considerados verdadeiros:
“O pluralismo político é princípio fundante da ordem constitucional e deve ser compreendido não apenas em sua acepção político-partidária, mas alcançando todas as concepções e ideias que tenham relevância para o comportamento polítivo coletivo“.
“O direito de resposta, apesar de mecanismo voltado à proteção dos direitos de personalidade, é também um instrumento de mídia colaborativa, em que o público é convidado a colaborar com suas próprias versões de fatos e a apresentar seus próprios pontos de vista“
“Há, na Constituição, um mandado de otimização implícito no princípio do pluralismo político, na vedação de monopólios e oligopólios nos meios de comunicação social, na consagração do direito de acesso à informação e no aspecto participativo da liberdade de expressão que impõe um dever para o Estado de reconhecimento e promoção de fenômenos como as ‘rádios comunitárias’, cujo papel é dar voz a grupos tradicionalmente alijados do debate público“.
“As liberdades de expressão e de informação possuem uma dimensão dúplice, apresentando-se simultaneamente como garantias liberais defensivas e como garantias democráticas positivas, razão porque a regulação da imprensa deve preencher as falhas naturais do mercado livre no ramo da comunicação social “.
A propósito, todos os itens foram extraídos dos escritos de Gustavo Binebojm [2]. O tema é muito rico para provas dissertativas e orais, mas, como se vê, foi exigido em uma prova preambular do MPF.
4. Referências bibliográficas
[1] SARMENTO, Daniel. Liberdade de expressão, pluralismo e o papel promocional do Estado. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº. 16, maio-junho-julho-agosto, 2007.
[2] BINENBOJM, Gustavo. Meios de Comunicação de Massa, Pluralismo e Democracia Deliberativa: as liberdades de expressão e de imprensa nos Estados Unidos e no Brasil. In: Revista da EMERJ, volume 6, número 23, 2003.
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