Graus da Serendipidade: Você sabia que eles existem? Compreendendo o fenômeno do Encontro Fortuito de Provas

A primeira vez que eu pesquisei a palavra “serendipidade” se deu em razão de um filme. Isso mesmo, na minha adolescência gostava bastante dos filmes com o ator John Cusack e, certa vez, vi um filme dele que se chamava “Serendipity”, tendo sido traduzido (bizarramente) como “Escrito nas Estrelas”[1].

Em um dicionário, é possível obter a seguinte definição:

Serendipidade – nome feminino – característica de quem faz boas descobertas por acaso ou atrai o acontecimento de coisas favoráveis. (Do inglês serendipity).

Tempos mais tarde, já estudante da graduação em direito, ao me debruçar pela legislação especial que versa acerca das interceptações telefônicas (no estudo de provas em processo penal), reencontrei a expressão, desta feita em novo contexto. Desde então, já vi algumas questões de concurso de 2ª fase e, especialmente, de prova oral arguindo acerca do significado de serendipidade, razão pela qual sempre teço comentários em minhas aulas acerca do instituto.

Analisando a jurisprudência dos Tribunais Superiores, percebe-se que tanto o STJ como o STF, em seus julgados, trazem referências acerca do referido instituto, razão pela qual resolvi compartilhar alguns aspectos acerca da serendipidade ou “descoberta fortuita” de prova, como ela é mais conhecida.

Imagine-se que durante a interceptação telefônica autorizada para a apuração de determinado crime, um novo fato criminoso seja descoberto, casual e fortuitamente, ou ainda identificada a presença de novos agentes criminosos que, em princípio, nada tinham em relação com fato investigado.

Na situação apresentada, verifica-se o que a doutrina processual penal chama de serendipidade. É dizer, durante a investigação objetivando encontrar elementos de prova acerca de determinado fato ou contra determinada pessoa, encontra-se coisa distinta ou sobre outrem! Isso é encontro (descoberta) fortuito(a) de provas ou serendipidade!

Compreendido o conceito, o que convém questionar é acerca da legitimidade e legalidade da utilização da prova fortuitamente encontrada.E para a jurisprudência majoritária dos Tribunais brasileiros, a prova derivada do encontro fortuito é plenamente válida e possível de ser utilizada. Nesse sentido, pode-se ilustrar a partir de recente decisão do STJ, a seguir colacionada (publicada no Informativo 539). Vejamos:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. DESCOBERTA FORTUITA DE DELITOS QUE NÃO SÃO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO. HC 282.096-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 24/4/2014.

6ª Turma – O fato de elementos indiciários acerca da prática de crime surgirem no decorrer da execução de medida de quebra de sigilo bancário e fiscal determinada para apuração de outros crimes não impede, por si só, que os dados colhidos sejam utilizados para a averiguação da suposta prática daquele delito. Com efeito, pode ocorrer o que se chama de fenômeno da serendipidade, que consiste na descoberta fortuita de delitos que não são objeto da investigação.

Não houve inovação, apenas uma ratificação quanto à legitimidade da utilização da descoberta fortuita (serendipidade), como se comprova a partir da compreensão de julgados mais antigos da mesma Corte:

HABEAS CORPUS. CORRUPÇÃO ATIVA. 1. SERENDIPIDADE DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS. POSSIBILIDADE. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. (…).

1. A interceptação telefônica vale não apenas para o crime ou indiciado objeto do pedido, mas também para outros crimes ou pessoas, até então não identificados, que vierem a se relacionar com as práticas ilícitas. A autoridade policial ao formular o pedido de representação pela quebra do sigilo telefônico não pode antecipar ou adivinhar tudo o que está por vir. Desse modo, se a escuta foi autorizada judicialmente, ela é lícita e, como tal, captará licitamente toda a conversa.

2. Durante a interceptação das conversas telefônicas, pode a autoridade policial divisar novos fatos, diversos daqueles que ensejaram o pedido de quebra do sigilo. Esses novos fatos, por sua vez, podem envolver terceiros inicialmente não investigados, mas que guardam relação com o sujeito objeto inicial do monitoramento. Fenômeno da serendipidade. (…) (…). (HC 144.137/ES, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 15/05/2012, DJe 31/08/2012).

Contudo, é preciso cuidado com um detalhe! Para boa parte da doutrina, a legítima utilização da prova descoberta fortuitamente somente poderia se dar quando da presença de conexão ou continência em relação ao delito inicialmente investigado, do contrário a sua utilização somente poderia se dar como notitia criminis.

Assim, caso você se depare com a indagação “o que seria serendipidade (ou descoberta fortuita de provas) de primeiro e segundo grau?”, pode asseverar:

(A)   Serendipidade de 1º Grau – É a descoberta fortuita de provas quando houver conexão ou continência. Para a doutrina e jurisprudência majoritária, os elementos encontrados poderão ser utilizados totalmente como prova!

(B)    Serendipidade de 2ª Grau – Aqui, para a doutrina, os fatos descobertos não guardam relação de conexão ou continência, razão pela qual os elementos de prova não poderiam ser utilizados no novo crime ou em relação a outro criminoso em tais circunstâncias. No máximo, poderiam servir como notitia criminis.

Vejamos as lições do eminente Luiz Flávio Gomes:

“Em relação ao encontro fortuito de fatos conexos (ou quando haja continência) parece-nos acertado falar em serendipidade ou encontro fortuito de primeiro grau (ou em fato que está na mesma situação histórica de vida do delito investigado – historischen Lebenssachverhalt). Nesse caso a prova produzida tem valor jurídico e deve ser analisada pelo juiz (como prova válida). Pode essa prova conduzir a uma condenação penal. Quando se trata, ao contrário, de fatos não conexos (ou quando não haja continência), impõe-se falar em serendipidade ou encontro fortuito de segundo grau (ou em fatos que não estão na mesma situação histórica de vida do delito investigado). A prova produzida, nesse caso, não pode ser valorada pelo juiz. Ela vale apenas como notitia criminis”[2].

Espero que tenham gostado.

Comentem, questionem e sugiram temas para serem abordados!

Vamos em frente nos estudos e preparação!

Abraços,

Pedro Coelho.

[1] Por não ter relevância extrema para o conteúdo do texto, segue em rodapé a síntese do filme: “Em um apressado dia de compras no inverno de 1994, Jonathan Trager (John Cusack) conhece Sara Thomas (Kate Beckinsale). Dois estranhos no meio da massa em NY, seus caminhos se cruzam em um feriado, sendo que logo sentem entre eles uma atração mútua. Apesar do fato de ambos estarem envolvidos em outras relações, Jonathan e Sara passam a noite andando por Manhattan. Quando a noite chega ao fim, os dois são forçados a determinar algo como seu próximo passo. Quando Jonathan sugere uma troca de telefones, Sara rejeita e propõe uma ideia que dará ao destino o controle de seu futuro. Se eles tiverem que ficar juntos, ela diz a ele, eles encontrarão o caminho de volta para a vida um do outro”.

[2] GOMES, Luiz Flávio. Natureza jurídica da serendipidade nas interceptações telefônicas. Disponível em https://www.lfg.com.br. 18 de março de 2009.

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