Guarda Municipal pode fiscalizar trânsito?

 

Se você estiver sem muito tempo para estudar e ler esse post, eu recomendo que, para responder a pergunta acima, lembre-se de, pelo menos, cinco pontos:

1 A jurisprudência do STF divide o poder de polícia em quatro atividades: legislação; consentimento; fiscalização; e sanção.
2 A jurisprudência do STF entende delegáveis aos particulares as atividades de fiscalização e consentimento. As atividades de legislação e sanção são de exclusividade do poder publico eis que pautados na sua supremacia.
3 O poder de policia é exercido por meio da polícia administrativa que não se confunde com a segurança pública exercido pela policia judiciária.
4 A policia administrativa pode ser exercida por qualquer órgão de fiscalização.
5 Assim, não há óbice ao Município para que, dentro da competência comum estabelecida pelo Código de Trânsito Brasileiro, crie órgão especializado no exercício de atividade de polícia administrativa (guarda municipal) para a fiscalização e sanção decorrentes de infrações de trânsito.

Caso tenha tempo para desenvolver melhor o conteúdo, vamos aprofundar o tema.

Poderes Administrativos é assunto muito presente em provas de concurso.

Dentre os poderes, o Poder de Polícia é um dos preferidos pelas bancas.

O tema do post trata, justamente, do Poder de Polícia, a temática, contudo é mais direta e requer conhecimento acerca da possibilidade da sua delegação.

1. CONCEITO DE PODER DE POLÍCIA

Qual o conceito de Poder de Polícia? É um instrumento/prerrogativa que o Estado utiliza para compatibilização dos interesses público e privado, buscando viabilizar o interesse público e o bem-estar social. Assim, quando o Estado atua na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia.

José dos Santos conceitua o poder de polícia como “a prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”.

2. MODERNA CONCEPÇÃO DA ATUAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA

Uma coisa é importante, desde já, entender quando se está a falar em atuação do Estado por meio do Poder de Polícia. Trata-se da diferenciação atual entre a limitação ao direito x forma de exercício.

A doutrina clássica, capitaneada pelo Hely Lopes Meireles conceituava Poder de Polícia como a prerrogativa do Estado de restringir, limitar, frenar a atuação, bens ou interesses de particular, em nome do interesse público.

A doutrina moderna (a exemplo de Celso Antônio) possui uma concepção diversa daquela apresentada por Hely. Para tais doutrinadores, o que a Administração faz, por meio do poder de polícia, é definir a forma de exercício de tais direitos (liberdade e propriedade), sem que se possa falar, verdadeiramente, em uma limitação/restrição. Vale dizer, o Poder de Polícia não retira o direito da esfera jurídica do particular, mas apenas define a maneira que este direito será exercido.

A principal conclusão que se retira da ideia moderna da atuação do Poder de Polícia é que sem restrição de direitos, não de pode falar em indenização ao particular pela efetivação prática do Poder de Polícia pelo Estado.

3. PODER DE POLÍCIA E PODER DE PUNIR DO ESTADO

O jus puniendi atinge a pessoa do administrado.

O Poder de Polícia atinge as as atividades, os interesses, os direitos, mais basicamente os direitos de liberdade e propriedade.

4. FUNDAMENTO E FINALIDADE DO PODER DE POLÍCIA

Seu fundamento está na SUPREMACIA GERAL do Estado, que significa atuação do Poder Público independentemente de vínculo jurídico anterior.

NÃO caracteriza poder de polícia a atuação do Poder de Público no exercício de supremacia especial, isto é, aquela atuação que depende de um vínculo jurídico anterior (relação jurídica).

Se há relação jurídica entre o Estado e o destinatário da decisão estatal, não há poder de polícia (ex.: sanção aplicada em razão de infração funcional, sanção decorrente de contrato de concessão etc.).

A finalidade do Poder de Polícia é de proteção dos interesses coletivos.

5. TIPOS DE PODER DE POLÍCIA

O poder de polícia pode ser:

  1. PREVENTIVO – O Poder de Polícia é exercido de forma preventiva (para evitar um prejuízo maior, futuro) para proteção do meio ambiente, segurança, regras urbanísticas etc.
  2. FISCALIZADOR – Ex: radar de trânsito.
  3. REPRESSIVO – Quando o Poder de Polícia estiver aplicando sanção. Ex: aplicação de multas para excesso de velocidade nas vias públicas; apreensão de mercadorias.

6. DELEGAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA E A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Aqui, adentramos ao tema principal do post.

Importante decisão do STF que entendeu que o poder de polícia não pode ser delegado ao particular em razão da segurança jurídica e sob pena de quebra do princípio da igualdade (haveria contrassenso na delegação a particular de um poder com o qual se pode limitar a liberdade ou a propriedade de outro particular) – ADI 1.717/DF.

Assim, veja, para o STF o Poder de Polícia é indelegável.

Contudo, para doutrina e jurisprudência, o Estado pode delegar ao particular os ATOS MATERIAIS ou INSTRUMENTAIS de polícia (atos mecânicos, e não de decisão), sejam eles anteriores/prévios (preparatórios) ou posteriores/sucessivos.

O STJ, no mesmo sentido, afirma que o poder de polícia é exercido por meio de quatro atividades:

  1. a) legislação;
  2. b) consentimento;
  3. c) fiscalização; e
  4. d) sanção.

Seriam indelegáveis, segundo a Corte, apenas a legislação e a sanção, pois essas, sim, evidenciariam a supremacia do Estado sobre o particular, ao passo que o consentimento e a fiscalização seriam meros atos materiais de polícia, sendo, por isso, delegáveis. Vejamos:

ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE.

(…)

2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista).

3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção.

(…)

4. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público.

5 .No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro – aplicação de multas para aumentar a arrecadação.

Recurso especial provido.

(REsp 817.534/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 10/12/2009)

Pois bem! A fiscalização é atividade de polícia que pode ser delegada, nos termos da jurisprudência do STF.

Sendo assim, é viável a fiscalização de trânsito realizada pelo guarda municipal?

A resposta, o próprio STF também concedeu:

RE N. 658.570-MG

RED. P/ O ACÓRDÃO: MIN. ROBERTO BARROSO

DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PODER DE POLÍCIA. IMPOSIÇÃO DE MULTA DE TRÂNSITO. GUARDA MUNICIPAL. CONSTITUCIONALIDADE.
1. Poder de polícia não se confunde com segurança pública. O exercício do primeiro não é prerrogativa exclusiva das entidades policiais, a quem a Constituição outorgou, com exclusividade, no art. 144, apenas as funções de promoção da segurança pública.
2. A fiscalização do trânsito, com aplicação das sanções administrativas legalmente previstas, embora possa se dar ostensivamente, constitui mero exercício de poder de polícia, não havendo, portanto, óbice ao seu exercício por entidades não policiais.
3. O Código de Trânsito Brasileiro, observando os parâmetros constitucionais, estabeleceu a competência comum dos entes da federação para o exercício da fiscalização de trânsito.
4. Dentro de sua esfera de atuação, delimitada pelo CTB, os Municípios podem determinar que o poder de polícia que lhe compete seja exercido pela guarda municipal.
5. O art. 144, §8º, da CF, não impede que a guarda municipal exerça (…)

Veja que o STF fez importante distinção entre Poder de Polícia e Segurança Pública, o que nos remete à distinção entre polícia administrativa e polícia judiciária.

Há um excelente quadro produzido por nossa professora Hitala Mayara, Advogada da União, que expressa essa diferenciação:

Polícia Administrativa

Polícia Judiciária

Se enquadra no âmbito da função administrativa. Se enquadra no âmbito da função administrativa
Atividade da Administração que se exaure em si mesma, se iniciando e completando no âmbito da função administrativa. Atividade administrativa de atuação da função jurisdicional penal, regulada pelo Código de Processo Penal (arts. 4º e seguintes), para a aplicação da lei penal e contenção do crime.
Executada por órgãos administrativos de caráter fiscalizador. Executada por órgãos de segurança (corporações específicas, como a PM).
Incide, basicamente, sobre atividades, bens e direitos dos indivíduos. Incide sobre o indivíduo a quem se atribui o cometimento de ilícito penal.
Caráter eminentemente preventivo. Caráter eminentemente repressivo.

Perceba que, nos termos do STF a polícia administrativa não é exclusiva dos órgãos de segurança pública que promovem, como vimos, a polícia judiciária.

Frisou, ainda, o STF que o Código de Trânsito Brasileiro atribui competência comum aos entes federados para a realização da fiscalização de trânsito.

Assim, não há qualquer óbice a que o Município, considerando sua autonomia constitucional, atribua a sua guarda municipal a função de fiscalizar e aplicar sanções decorrentes do CTB.

Um abraço a todos, Ubirajara Casado.

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