Pedro Coelho é Defensor Público Federal
Professor da EBEJI
Prezados,
No post de hoje, tentarei tecer alguns comentários sobre a compatibilidade ou não do tipo penal de desacato, expressamente previsto em nosso ordenamento jurídico, com os tratados internacionais (sobretudo de direitos humanos) ratificados pelo Estado brasileiro. Trata-se de tema bastante interessante e potencialmente a ser cobrado, inclusive, em provas de Defensoria Pública.
Antes, porém, de nos debruçarmos sobre a polêmica, cumpre reavivar, em apertada síntese, algumas considerações sobre o chamado Controle de Convencionalidade!
Tema desenvolvido de maneira pioneira (ao menos com maior destaque no cenário doutrinário nacional) por Valério Mazzuoli, o Controle de Convencionalidade avança na análise sobre a validade da legislação interna. Se costumeiramente temos que as leis infraconstitucionais devem se revelar compatíveis, formal e materialmente, com o texto da Carta Magna (controle de constitucionalidade), passou-se a se compreender, diante do cada vez mais crescente rol de compromissos internacionais ligados aos Direitos Humanos assumidos pelo Brasil, que seria imprescindível compatibilizar as leis internas com essas normas internacionais, recepcionadas com status de norma supralegal, consoante indicado pelo STF (HC 87.585-TO e RE 466.343-SP). A essa análise quanto à compatibilidade da legislação pátria com as normas internacionais ratificadas pelo Brasil é que se dá o nome de Controle de CONVENCIONALIDADE.
O crime de desacato (artigo 331[1]) encontra-se plasmado na ordem jurídica nacional desde a origem do Código Penal Brasileiro de 1940, revelando-se como um resquício de um triste período de arbitrariedades jurídicas no país. Tendo um de seus matizes ideológicos a limitação e restrição da liberdade de expressão, o crime de desacato passou a ser questionado em alguns Tribunais Internacionais, uma vez que sua aplicação denotaria claramente uma preponderância ao controle individual dos cidadãos pelo Estado (Penal), em detrimento a um dos valores mais caros às democracias: a própria liberdade! A justificativa da proteção à atuação do funcionário público (sobretudo com a tutela criminal) não pode ser fator limitador da liberdade de expressão do povo, responsável muitas vezes pelo controle social das instituições estatais.
Sobre o tema liberdade de expressão, vale destacar a previsão do artigo 13 da CADH:
Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão.
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
Ainda sobre o assunto, vale registrar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aprovou, em 2000, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão em que há o claro repúdio às leis que criminalizam o desacato, ao apontar que os “funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como “leis de desacato”, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação”.
A Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já tiveram a oportunidade de se posicionar contrariamente à compatibilidade de “leis do desacato” de outros países com o texto dos tratados e convenções internacionais (entre eles a CADH). No conhecido precedente Palamara Iribarne vs. Chile, em um claro juízo de ponderação e equilíbrio ente os valores da liberdade de expressão dos cidadãos e a blindagem penal dos funcionários públicos, em atenção ao disposto no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, aquela deveria prevalecer. As leis de desacato seriam incompatíveis com a CADH e, portanto, não se sustentariam em um controle de convencionalidade.
Vale mencionar aqui o irretocável entendimento e acerto técnico de sentença da lavra do grande jurista Alexandre de Morais da Rosa (processo: 0067370-64.2012.8.24.0023, comarca da Capital de Santa Catarina – Florianópolis), destacando-se o seguinte trecho:
“Nesse prisma, tenho que a manifestação pública de desapreço proferida por particular, perante agente no exercício da atividade Administrativa, por mais infundada ou indecorosa que seja, certamente não se consubstancia em ato cuja lesividade seja da alçada da tutela penal. Trata-se de previsão jurídica nitidamente autoritária – principalmente em se considerando que, em um primeiro momento, caberá à própria autoridade ofendida (ou pretensamente ofendida) definir o limiar entre a crítica responsável e respeitosa ao exercício atividade administrativa e a crítica que ofende à dignidade da função pública, a qual deve ser criminalizada. A experiência bem demonstra que, na dúvida quanto ao teor da manifestação (ou mesmo na certeza quanto à sua lidimidade), a tendência é de que se conclua que o particular esteja desrespeitando o agente público – e ninguém olvida que esta situação, reiterada no cotidiano social, representa infração à garantia constitucional da liberdade de expressão”[2].
Conclusão:
Apesar de ainda ser uma realidade a existência de persecução penal em razão de condutas amoldadas ao crime de desacato, nos termos desenhados no artigo 331 do CPB, diante do entendimento cada vez mais frequente nas Cortes Internacionais e, sobretudo, em razão da previsão expressa do artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, parcela significativa da doutrina especializada compreende que o referido delito não consegue superar um exame de convencionalidade, ou seja, demonstra incompatibilidade insuperável em relação às normas internacionais ratificadas pelo Brasil.
Essa mesma conclusão foi atingida pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração do Anteprojeto de Novo Código Penal, instaurada no Senado Federal, indicando expressamente a necessidade de revogação do crime de desacato do cardápio legislativo penal nacional, diante da incompatibilidade e INCONVENCIONALIDADE com a CADH!
Essa posição deve ser sustentada, sobretudo, em provas subjetivas, dissertativas e orais em concursos de Defensoria Pública, ressaltando, inclusive, que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo[3] encaminhou pedido especificamente vinculado ao crime do artigo 331 do ordenamento jurídico interno, a fim de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos determine ao Brasil que se deixe de aplicar o referido deito, reconhecendo sua inconvencionalidade.
Apesar de ser um tema difícil e ainda pouco explorado pelos doutrinadores penais brasileiros, é bastante importante que vocês dominem e façam a leitura não apenas constitucional do direito penal e processual penal, mas também realizem a filtragem convencional dos referidos ramos do direito. Espero que tenha ajudado!
Grande abraço,
Pedro Coelho – Defensor Público Federal
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[1] Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
[2] https://emporiododireito.com.br/desacato-nao-e-crime-diz-juiz-em-controle-de-convencionalidade/
[3] https://noticias.terra.com.br/brasil/defensoria-sp-quer-que-desacato-deixe-de-ser-crime-no-brasil,7ac5bdedf984c410VgnCLD200000b1bf46d0RCRD.html.
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