Pedro Coelho é Defensor Público Federal

Professor da EBEJI

EBEJI

Olá prezados leitores,

Hoje tratarei de um tema bastante interessante, que já foi e poderá ser novamente cobrado em provas de concurso! Com a proximidade do carnaval, sabendo que feriado para quem está se preparando com afinco é (mais um) período de estudos, tentarei desenvolver algo relacionado ao período de momo.

Nesse cenário, vale lembrar que o popularmente conhecido “lança perfume” foi incorporado aos hábitos carnavalescos da sociedade brasileira no início do século XX, revelando-se como um símbolo da confraternização e celebração da juventude nos corsos e bailes festivos.

Todavia, desde a década de 1960/70, o cloreto de etila (lança perfume é o que chamamos de nome fantasia dessa substância) foi criminalizado no Brasil, sobretudo por considerar os efeitos produzidos no organismo humano como bastante agressivos e danosos à saúde.

A atual Lei 11.343/2006 traz que drogas são “as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. Pela redação do texto legal, percebe-se que o legislador optou por delegar a definição concreta e específica sobre o alcance da expressão “droga” para outro complemento normativo, razão pela qual se considera aqui um exemplar de norma penal em branco.

Dá-se o nome de norma penal em branco porque o preceito primário de sua estrutura resta incompleto, dependendo de utilização de conteúdo exarado em lei ou portaria para ser compreendida e aplicada em sua integralidade. A norma penal em branco, pois, seria um “corpo carente em busca de uma alma”!

O termo “drogas” utilizado na Lei 11.343/06 não funciona como elemento normativo do tipo, sujeito a uma interpretação valorativa pelo julgador. Esse vazio (ou branco) precisa ser complementado por outra norma específica que, no nosso exemplo, é a Portaria 344 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Se a substância não constar da Portaria 344/98 da ANVISA, não há falar em tipicidade na conduta do agente, em relação aos tipos trazidos na Lei 11.343/2006.

O grande imbróglio que envolve o cloreto de etila e a natureza de norma penal em branco da Lei 11.343/2006 se deu em razão de, no ano 2000, o então diretor presidente da ANVISA ter retirado do rol de substâncias entorpecentes consideradas como droga o “lança perfume”. Em 07/12/2000, houve a edição da Resolução 104/2000 com essa exclusão, deixando de considerar o cloreto de etila como integrantes da lista de substâncias psicotrópicas de uso proibido no país. Ocorre que essa modificação efetivada pelo presidente da Agência de Vigilância Sanitária não foi bem assimilada pelos demais membros da Diretoria que, não aceitando a modificação (não referendaram), reincluíram, apenas 07 dias depois, em 15/12/2000 a substância no rol dos elementos considerados como “droga” para fins penais.

E qual foi a discussão no STF, Pedro?

O debate jurídico que se travou a partir da modificação do texto da Portaria da Anvisa, com reflexos inclusive no STF, se deu em relação aos cidadãos que tivessem praticado tráfico de drogas, especificamente do cloreto de etila, antes da reinclusão no elenco de substâncias proibidas.

Ora, a partir da publicação da portaria pelo Presidente da ANVISA excluindo aquela substância do rol de proibições, teria havido a abolitio criminis, com efeitos benéficos retroativos! Lado outro, o então Procurador Geral da República advogava que não teria havido a abolitio criminis, pois a exclusão da substância precisa ser efetuada ad referendum pelo colegiado e como tal não aconteceu, o ato não teria o condão de produzir efeitos.

Para o STF, no julgamento do HC 94.397[1], a razão estava com a defesa, uma vez que o ato ad referendum produz totalmente os seus efeitos até que seja referendado ou não. Assim, quando da decisão do presidente, houve abolitio criminis dos tráficos envolvendo o cloreto de etila. Logo depois, e atualmente ainda é assim, a referida conduta voltou a ser considerada substância apta para caracterizar o tráfico de drogas!

Mais recentemente (2015), no julgamento do HC 120.026, o Ministro Celso de Mello reafirmou o entendimento ao apontar que a substância ativa do “lança-perfume”, o cloreto de etila, foi excluída por um período de oito dias da lista de substâncias entorpecentes proibidas, editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entendimento do ministro, trata-se de caso de abolitio criminis temporária pelo fato de referida exclusão, embora por um brevíssimo período, descaracterizar a própria tipicidade penal da conduta do agente. O ministro Celso de Mello enfatizou em sua decisão que, “antes mesmo do advento da Resolução Anvisa nº 104/2000, o Supremo Tribunal Federal já havia firmado entendimento no sentido de que a exclusão do cloreto de etila da lista de substâncias psicotrópicas vedadas editada pelo órgão competente do Poder Executivo da União Federal faz projetar, retroativamente, os efeitos da norma integradora mais benéfica, registrando-se a abolitio criminis em relação a fatos anteriores à sua vigência, relacionados ao comércio de referida substância, pois, em tal ocorrendo, restará descaracterizada a própria estrutura normativa do tipo penal em razão, precisamente, do desaparecimento da elementar típica “substância entorpecente ou que determina dependência física ou psíquica[2].

Só lembrando que essa aplicação de abolitio criminis temporária é exclusiva para as condutas delitivas vinculadas à droga (no caso concreto foi o cloreto de edital, mas teoricamente, pelas razões do entendimento, poderia ser qualquer outra substância) praticadas ANTES da modificação da Portaria.

Ela não terá o condão de impactar as condutas perpetradas após a retificação e reinclusão da substância no rol dos elementos ilícitos.

Vamos em frente e um ótimo carnaval!

Abraços,

Pedro Coelho – Defensor Público Federal

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[1] EMENTA: AÇÃO PENAL. Tráfico de entorpecentes. Comercialização de “lança-perfume”. Edição válida da Resolução ANVISA nº 104/2000. Retirada do cloreto de etila da lista de substâncias psicotrópicas de uso proscrito. Abolitio criminis. Republicação da Resolução. Irrelevância. Retroatividade da lei penal mais benéfica. HC concedido. A edição, por autoridade competente e de acordo com as disposições regimentais, da Resolução ANVISA nº 104, de 7/12/2000, retirou o cloreto de etila da lista de substâncias psicotrópicas de uso proscrito durante a sua vigência, tornando atípicos o uso e tráfico da substância até a nova edição da Resolução, e extinguindo a punibilidade dos fatos ocorridos antes da primeira portaria, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal.
(HC 94397, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 09/03/2010, DJe-071 DIVULG 22-04-2010 PUBLIC 23-04-2010 EMENT VOL-02398-02 PP-00237).

[2] https://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=292757