João Paulo Lawall Valle é Advogado da União

Professor da EBEJI

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Prezados,

Hoje teremos um post com viés doutrinário, fugindo um pouco da linha que costumeiramente venho adotando nos textos produzidos para os amigos leitores do blog da EBEJI.

O tema que será tratado aqui busca jogar luz em um tema já amplamente discutido na doutrina nacional e estrangeira, bem como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da Corte Constitucional Alemã, com outro que vem sendo estudado por alguns autores nacionais e por um famoso constitucionalista argentino.

Gilmar Ferreira Mendes afirma, com exatidão, que o avanço experimentado pelo direito constitucional na atualidade é devido, em grande parte, a afirmação e o reconhecimento dos direitos fundamentais como núcleo de proteção da dignidade da pessoa humana e da visão de que a Carta Constitucional é o ambiente normativo adequado para positivar as disposições com estas pretensões.

Ao tempo em que se positiva os direitos fundamentais, cria-se para o Estado o dever de atendê-los havendo a vinculação dos Poder Públicos ao seu atendimento sob pena de laborarem em, no mínimo, uma omissão constitucionalmente qualificada, passível de correção pelo Poder Judiciário.

Acontece que a efetiva garantia de integral atendimento aos direitos fundamentais, em especial os de cunho prestacional, previstos no texto constitucional não pode deixar de levar em conta efetivas restrições e impossibilidades financeiras estatais. O Estado possui uma gama enorme de atribuições que vão da garantia de saúde, educação, segurança até o fomento da cultura, da pesquisa, do turismo, tendo todas estas atividades um custo economicamente mensurável.

Esta limitação financeira do Estado para o atendimento de todos os pleitos da sociedade foi incorporado no discurso jurídico, seja no nível doutrinário, seja no nível jurisprudencial com a ideia da RESERVA DO POSSÍVEL.

A ideia de reserva do possível tem o seu primeiro precedente registrado no conhecido caso numerus clausus, julgado pela Corte Constitucional Alemã (BVeerfGE nº 33, S.333), referente ao direito de acesso ao ensino superior. Nesta oportunidade a Corte Constitucional definiu que a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Nesta situação, nas palavras de SARLET é defensável a posição de que não seria possível impor ao Estado a obrigação de custear uma determinada prestação de assistência social a um cidadão que efetivamente não faça jus a este benefício, uma vez que tem condições materiais de arcar com o seu pagamento.

Destaco, desde logo, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal do Brasil não aplica integralmente o precedente do caso numerus clausus, realizando mitigações no que fora decidido naquele caso e exigindo por parte do Estado a comprovação simultânea de duas situações: a falta de recursos orçamentários e a real comprovação de que é impossível efetuar o remanejamento de outras verbas para o atendimento e a efetiva implementação do direito fundamental social que é reclamado no bojo do processo que aportou no judiciário.

Cabe trazer como ilustração para este texto trecho do voto vencedor do Ministro Celso de Mello no ARE 639337/SP (21/06/2011), veiculado no Informativo nº 632, onde fica demonstrado o entendimento da Corte, reafirmando o que foi decidido na ADPF nº 45:

É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 345/2004) – que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Impende assinalar, contudo, que tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.
Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245/246, 2002, Renovar), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004).
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
Daí a correta observação de REGINA MARIA FONSECA MUNIZ (“O Direito à Educação”, p. 92, item n. 3, 2002, Renovar), cuja abordagem do tema – após qualificar a educação como um dos direitos fundamentais da pessoa humana – põe em destaque a imprescindibilidade de sua implementação, em ordem a promover o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida de todos, notadamente das classes menos favorecidas, assinalando, com particular ênfase, a propósito de obstáculos governamentais que possam ser eventualmente opostos ao adimplemento dessa obrigação constitucional, que “o Estado não pode se furtar de tal dever sob alegação de inviabilidade econômica ou de falta de normas de regulamentação” (grifei).

Diante disso pode-se concluir que no Brasil, com vistas à efetivação dos direitos fundamentais e com a busca da garantia do mínimo existencial aplica-se de maneira restrita a teoria da reserva do possível, sendo obrigação do Estado comprovar que efetivamente não tem verba suficiente para garantir determinado direito e que não possui condição de realocar verbas para tal implementação.

O mínimo existencial é também um instituto jurídico com origem alemã inspirado no princípio da dignidade da pessoa humana que tem como ideia central a garantia aos cidadãos de uma parcela básica de direitos que representa o mínimo vital.

De acordo com as ideias que representam o mínimo existencial, quando o Estado deixa de garantir para os cidadãos as condições de exercício dos direitos que representam este mínimo vital estará havendo, ao fundo, a violação do direito da dignidade da pessoa humana, devendo esta violação ser corrigida pelo Poder Judiciário.

Não obstante a isso, boa parte da doutrina que se dedica ao tema, tal como Andreas J. KRELL afirma, ao meu ver de maneira absolutamente correta e ponderada, que o conteúdo do mínimo existencial varia de país para país, devendo o texto constitucional ter respaldo na realidade existente dentro da nação que rege, sob pena de serem realizadas promessas constitucionais irresponsáveis, trazendo como resultado o que se costumou denominar de frustração constitucional.

Como novo instituto desenvolvido no caminho da efetiva concretização do Estado Social vem sendo desenvolvido em sede doutrinária o que se convencionou chama de “máximo existencial”.

Este instituto consiste “no direito à progressiva, contínua e gradual ampliação dos níveis essenciais de prestação até satisfação suficiente das necessidades existenciais, necessárias ao bem-estar individual pela garantia da auto realização e da autonomia” (Miguel Calmom Dantas, in Direito Financeiro e Políticas Públicas).

Ou seja, quando se fala no instituto do máximo existencial se vê a meta final do Estado Social, ou seja, o grau de realização que os direitos sociais devem atingir dentro do Estado, devendo estes sempre caminharem no caminho da ampliação da proteção e da implementação, sendo vedado o seu retrocesso.

Cabe, por último, destacar que de acordo com este instituto é dever do Estado aplicar o máximo de recurso possível na implementação e realização dos direitos sociais, não podendo caber a este tipo de direito apenas parte do valor aplicado a outras atividades do Estado que não possuem a característica de direito fundamental. A efetivação do máximo existencial implica, como decorrência natural, o afastamento do mínimo existencial, garantindo um grau superior na realização dos direitos fundamentais não restrito ao núcleo vital de cada um desses direitos.

Bons estudos.

Grande abraço a todos, João Paulo Lawall Valle.