Há alguns meses, foi objeto de grande atenção da mídia a notícia de que a Gol pagaria indenização de 4 milhões de reais a uma tribo indígena que teve parte de suas terras atingida por destroços do jato Legacy, que se chocou com um Boeing da Gol. A razão estaria na ocorrência de danos espirituais, que estariam sendo indenizados, considerando que a terra ficou marcada para sempre pelo sangue das vítimas, tornando-se, com isso, inutilizável pelos índios.

Após essas notícias, várias pessoas começaram a criticar a questão, que foi mediada pelo MPF, considerando que tais tipos de danos não seriam ressarcidos com dinheiro, ou mesmo que sequer existiriam, por estarem baseados em crenças de uma população minoritária.

O fato é que, independentemente das críticas, a notícia foi interessante por nos trazer uma questão não muito comum, considerando que nossos tribunais não possuem entendimento sobre a indenizabilidade desse tipo de dano.

Contudo, tal matéria não é nova no âmbito da Corte Interamericana, principalmente no que se refere a questões indígenas, relacionando-se, assim, à forma como os direitos culturais são vistos pelos tribunais internacionais.

Tratemos um pouco sobre os principais aspectos atinentes à matéria.

Um dos grandes conflitos dos Direitos Humanos é o existente entre sua pretensão de universalidade e a diversidade cultural presente no mundo, que implicaria, assim, em um relativismo cultural dos direitos humanos.

Contudo, é preciso indagar se há mesmo esse conflito ou se o que temos é apenas uma questão interpretativa.

Para alguns autores, os direitos humanos seriam realmente universais. A cultura e sua diversidade afetariam apenas a interpretação e aplicação desses direitos, pois haveria um mínimo ético irredutível que seria sempre universal.

Outros sustentam, ainda, um universalismo de confluência (é o caso de Boaventura de Souza Santos e Flávia Piovesan), marcado por um universalismo no ponto de chegada, e não no ponto de partida. Ao universal se chegaria a partir de um diálogo, portanto.

Parece sustentar a ideia de ausência de um relativismo cultural o fato de que não há previsão específica, nem na Convenção Americana nem na Europeia, de um direito humano à diversidade cultural.

Interessante observar que a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada pela UNESCO, coloca a diversidade cultural como característica essencial da humanidade.

Assim sendo, desnecessária tornar-se-ia mesmo sua previsão como direito, por ser ela superior a tal conceito, já que algo imanente à sociedade. Ao direito, então, competiria sua salvaguarda, a partir da aplicação adequada dos direitos humanos.

Contudo, até que ponto pode-se entender como fruto da diversidade cultural uma certa conduta adotada por um grupo que, por exemplo, paute suas ações em medidas repressivas ou que limitam a liberdade de terceiros? Quem estaria apto a definir o que é culturalmente aceitável?

É neste contexto que surge a questão da tolerância e da igualdade em sua tríplice conformação: igualdade formal (que marcou a primeira fase de proteção dos direitos humanos, marcada por uma proteção geral), igualdade material orientada pelo critério socioeconômico e igualdade material enquanto reconhecimento de identidades.

As decisões mais atuais das CIDH e CEDH parecem confluir para a adoção do binômio reconhecimento + redistribuição, já que denotam uma preocupação maior com as minorias, principais atingidas pelas violações de direitos humanos, não se limitando a declarar as violações, mas determinando a adoção de medidas afirmativas específicas e menos universalistas, o que já é palco para um debate extremamente intenso sobre o limite das políticas afirmativas.

Antes de adentrarmos nas decisões propriamente ditas, necessário ainda buscar conceituar a cultura.

Segundo a UNESCO, a cultura pode ser definida como o conjunto de traços espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que distinguem e caracterizam uma sociedade ou um grupo social, e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os valores, as tradições e as crenças.

Veja-se que, do conceito acima, ao tratar dos traços afetivos, é possível depreender também como uma questão cultural o próprio tratamento a ser dado em relação às preferências sexuais.

Voltemos, contudo, a tratar dos traços espirituais.

Nessa temática, a CIDH possui amplo repositório, principalmente no que se refere à matéria indígena, foco de sua atuação na defesa da diversidade cultural.

Tratemos, então, de alguns casos:

No Caso Comunidade Mayagna Awas Tingni vs. Nicaragua, a CIDH, diante da possibilidade de o Estado conceder a exploração de madeira a uma empresa privada nas terras indígenas, levantou o caráter espiritual do vínculo existente entre a comunidade indígena e a terra por ela ocupada, garantindo uma releitura do direito de propriedade.

Para a Corte, a relação do indígena com a terra não é apenas uma questão de possessão e produção, mas também um elemento espiritual de que devem gozar plenamente, para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às futuras gerações.

Essa ideia de direito à propriedade ancestral – que marca também a ideia de indigenato – foi frisada ainda no caso Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai, onde se foi além para adotar uma concepção lata do direito à vida, que englobaria a adoção de medidas positivas que possibilitassem o pleno gozo de uma vida digna e salvaguardassem a identidade cultural do grupo.

Se a cultura dos membros de uma comunidade indígena corresponde a uma forma de vida particular de ser, ver e atuar no mundo, construída a partir também de sua relação com a terra, é isso que deve ser assegurado a partir do direito de propriedade, e não simplesmente o título aquisitivo ou seu conceito tradicional civilista.

A identidade cultural estaria, portanto, relacionada ao próprio direito à vida. Se a primeira é violada, também a segunda o está sendo. De igual forma, o direito de propriedade é revisitado com base na vida espiritual dos povos indígenas, falando-se em danos não meramente materiais e morais, mas espirituais, em virtude da noção de ancestralidade da terra, que gera uma responsabilidade para os vivos em relação aos mortos.

A CIDH ainda frisou que a Convenção não fala em proteção à propriedade privada, mas ao direito de livremente gozar e dispor de suas coisas, de modo que mesmo nos casos em que a área indígena não seja colocada como classicamente propriedade de seus ocupantes, ainda assim o direito deles deve ser resguardado, havendo violação, portanto, quando o Estado não adota as medidas necessárias para a demarcação da área, já que o direito de propriedade também deve ser entendido como o direito de evitar a presença de terceiros em espaços culturalmente protegidos.

Ainda no que se refere à concepção ampla do direito à vida, a englobar também a proteção aos mortos, é de se citar o Caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname, referente ao genocídio de 39 membros em uma operação militar. Como o crime, mesmo após anos, não teria sido verdadeiramente elucidado, com a punição de seus agentes, entendeu-se ter havido violação à Convenção, e, para tanto, a Corte considerou ter havido uma violação moral profunda, já que, com base na cultura dessa comunidade, o espírito do morto não pode descansar enquanto não lhe for feita justiça, sendo isto dever de seus familiares.

Justo por isso, a CIDH considerou como vítimas, no caso, não só os sobreviventes, mas também a família dos mortos. Também por isso a Corte frisou que não tinha competência para analisar o genocídio em si – já que ocorrido anteriormente ao reconhecimento da competência da Corte pelo Suriname -, mas que teria para analisar o resultado do processo judicial a respeito do tema.

A Corte reconheceu, ainda, violação ao direito de residência e de propriedade, já que, por conta do ataque à Comunidade, muitos de seus membros foram obrigados a sair de suas terras, pois, pela tradição, a ela não podem voltar enquanto não tiver sido feita justiça.

O Caso Yatama vs. Nicaragua versava sobre a violação cometida pelo Estado ao baixar resolução disciplinando eleições municipais e prevendo prazo mínimo entre o reconhecimento de um partido e as eleições. Não tendo cumprido tal prazo, o partido que representava a comunidade indígena teria sido impedido de participar das eleições municipais daquele ano.

De início, a Corte decidiu que decisões em matéria eleitoral não podem afetar o gozo de direitos políticos. Assim, ademais das questões processuais analisadas, a Corte observou que, no caso, em se tratando de comunidade indígena, o gozo desses direitos refere-se também à possibilidade de interferência dos interesses dessa comunidade na vida política.

Assim, embora seja lícita a previsão de regras que organizem as eleições, elas não podem vir a impedir a participação de grupos minoritários, não sendo válida, por exemplo, regra que limite a participação nas eleições de partidos políticos, quando não é essa forma de organização utilizada pelas comunidades indígenas.

Portanto, o Estado violou direitos consagrados na Convenção ao aplicar leis eleitorais que cerceiam a participação política de minorias e que lhes impõem a adoção de formas que violam sua cultura e organização.

Por que os casos acima apontados são importantes?

Eles são importantes porque demonstram que, apesar dos vários questionamentos que deles podem decorrer, há uma certa uniformidade no entendimento da Corte quanto à necessidade de se conferir proteção às minorias, resguardando suas crenças e traços característicos e, nesse aspecto, garantindo uma releitura de vários direitos (propriedade, vida, liberdade, etc) a partir, sim, do aspecto cultural.

E no que isso influencia quanto aos danos espirituais?

Influencia por demonstrar que, para a CIDH, existem, sim, tais danos, os quais devem ser indenizados financeiramente sempre que não for possível o retorno ao status quo ante, e eles se relacionam não com o íntimo do sujeito, como ocorre em relação ao dano moral, mas com a diversidade que marca uma determinada coletividade.

Nesse contexto, portanto, é possível inferir como características dos danos espirituais:

  • São danos coletivos;
  • Envolvem um choque entre culturas distintas, provocando um choque em relação a uma delas;
  • Geram sofrimento em relação a todos os membros de uma comunidade, sendo esse aspecto coletivo o que o diferencia do dano moral. Seria, assim, um dano moral coletivamente considerado;
  • Atingem o estilo de vida, as crenças ou a dignidade de uma mesma comunidade, sendo de tal forma relevantes que, se prosseguem no tempo, podem até mesmo extinguir aquela coletividade;
  • São danos imateriais.

Observe que essa é uma questão polêmica, aberta a muitos questionamentos, e que nosso intuito, aqui, foi o de destacar a forma como a CIDH vem tratando o tema, principalmente no aspecto indígena.

O objetivo, portanto, foi o de buscar apresentar um conceito acerca de tais danos, destacando a forma como eles vêm sendo tratados no âmbito internacional, destacando, ainda, serem eles decorrentes da ideia de diversidade cultural, marca dos direitos humanos que em muito influencia sua própria existência e interpretação.

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