Flávia Coelho é Procuradora da Fazenda Nacional
Professora da EBEJI
EBEJI
As questões concernentes ao conceito de Dívida Ativa, em especial sobre os valores passíveis de inscrição, são de grande interesse para a Fazenda Nacional, em virtude do papel relevantíssimo da instituição na cobrança e recuperação de créditos da União. Ainda que se questione e discuta a efetividade da execução fiscal no seu propósito de satisfação da pretensão creditória fazendária, é inegável que a ação executiva possui enorme importância para a Fazenda Nacional.
Assim, as discussões relativas à inscrição são de suma relevância para o tratamento adequado da execução fiscal, na medida em que tal ação lastreia-se na Certidão de Dívida Ativa, título executivo extrajudicial formado em razão da ausência de pagamento de créditos tributários e não tributários.
Com efeito, dispõe o art. 2º da Lei nº 6.830/1980 que a Dívida Ativa da Fazenda Pública pode ser tributária ou não tributária, conforme a definido na Lei nº 4.320/1964, in verbis:
Art. 2º – Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
1º – Qualquer valor, cuja cobrança seja atribuída por lei às entidades de que trata o artigo 1º, será considerado Dívida Ativa da Fazenda Pública.
2º – A Dívida Ativa da Fazenda Pública, compreendendo a tributária e a não tributária, abrange atualização monetária, juros e multa de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato.
Por seu turno, o art. 39 da Lei nº 4.320/1964 define os créditos passíveis de inscrição em Dívida Ativa, dispondo no §2º acerca dos créditos tributários e não tributários:
Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.
(…)
2º – Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de subrogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais.
(…).
Observa-se que o conceito de Dívida Ativa é bastante amplo, inexistindo um rol exaustivo dos créditos que constituem dívida ativa. Cumpre mencionar que, durante bastante tempo, no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), preponderou o entendimento de que todos os valores devidos à União, independentemente das suas origens, possuíam natureza fiscal e deveriam ser inscritos em dívida para sua cobrança judicial pela PGFN.
Não obstante a amplitude do conceito de dívida ativa, atualmente, não parece adequado concluir que todo e qualquer crédito deve sujeitar-se à inscrição em Dívida Ativa. É importante ter-se em mente que o título executivo que irá embasar a execução fiscal deve representar obrigação líquida, certa e exigível.
Isso porque o conceito de dívida ativa (tributária ou não tributária) envolve somente os créditos certos e líquidos, conforme disposição contida nos arts. 2º e 3º da Lei nº 6.380/1980 e 39, § 2º, da Lei n. 4.320/1964. Dessa forma, se estiver ausente a liquidez e certeza quanto aos valores cobrados, é impossível sua cobrança por meio de execução fiscal.
Quanto aos créditos tributários, é indubitável a possibilidade de serem inscritos em Dívida Ativa para posterior cobrança via Execução Fiscal. Isso porque, além de a constituição de créditos tributários estar relacionada ao poder de império da Administração Pública, trata-se de atividade conferida legalmente às autoridades públicas, mediante o lançamento, conforme as disposições contidas no Capítulo II, do Título III, do Código Tributário Nacional. Conquanto a jurisprudência admita que ato de formalização do contribuinte possa constituir o crédito, a exemplo da entrega de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF[1], tal fato não invalida a afirmação de que a lei atribuiu à autoridade pública a atividade de constituir e cobrar o crédito tributário.
Desse modo, entende-se que o título executivo extrajudicial formalizado unilateralmente pela Administração Pública, no caso de créditos tributários, é dotado de autoexecutoriedade. Há previsão legal específica quanto à atividade do Poder Público para constituir créditos advindos do descumprimento da obrigação tributária, o que se soma à existência de garantia do contraditório durante o procedimento de lançamento.
Por outro lado, em relação aos créditos não tributários, conquanto exista a previsão genérica do §2º do art. 39 da Lei nº 4.320/1964 a respaldar a inscrição em Dívida Ativa de vários créditos da União, questiona-se a possibilidade de inscrição de alguns créditos. Nesse diapasão, não parece ser mais apropriado afirmar que todos os valores devidos à União possuem natureza fiscal e como tal devem ser inscritos e cobrados pela PGFN.
A esse respeito, registra-se posicionamento doutrinário no qual se restringe o conceito de Dívida Ativa:
“Assim, nem todo o crédito da Fazenda Pública pode ser inscrito em dívida ativa. Apenas aquele decorrente do poder de império, exercido na modalidade de poder de polícia ou de outra atividade legalmente conferida à autoridade de direito público, enquanto atividade típica e própria da entidade de direito público, ainda que outros créditos possam ser considerados no conceito amplo de receita pública. Destarte a origem do crédito, se não decorrente do poder de império, deverá ser ato ou contrato administrativo típico, sendo que outros créditos regem-se pelas normas comuns de responsabilidade civil disciplinada pelo direito privado. Estão excluídos do conceito, por exemplo, os créditos decorrentes de dano ao patrimônio da pessoa jurídica de direito público ou os créditos cedidos por outros entes que hajam sido originários de atos ou contratos privados.”[2]
Além da doutrina divergente do entendimento que, anteriormente, prevalecia na PGFN, existem várias discussões judiciais sobre quais créditos podem ou não ser inscritos em Dívida Ativa. É possível constatar, a partir da análise de inúmeros julgados, notadamente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), uma tendência jurisprudencial no sentido de que a execução fiscal seria via inadequada para cobrança de créditos advindos de ilícito extracontratual quando não fundamentado em dispositivo legal ou normativo específico que autorize a inscrição em dívida.
Ora, diferentemente do crédito tributário que já nasce certo e líquido, na medida em que o lançamento gera presunção de certeza e liquidez, os créditos de natureza extracontratual não seriam dotados de tais atributos apenas com esteio em procedimento administrativo para apuração do ilícito. Desse modo, de acordo com muitos precedentes do STJ, não seria facultada a inscrição de em Dívida Ativa de créditos advindos da apuração unilateral da Administração Pública de ato ilícito extracontratual, ainda que decorrente de processo administrativo, porquanto seriam incertos e ilíquidos.
Um importante julgado sobre o tema foi o Recurso Especial (REsp) nº 1.350.804/PR, da relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, precedente representativo de controvérsia, na forma do art. 543-C, do Código de Processo Civil (CPC) de 1973, cuja controvérsia cingia-se acerca da possibilidade de inscrição em Dívida Ativa de benefício previdenciário indevidamente recebido por particular, qualificado como enriquecimento ilícito. Assentou-se, na ocasião, a impossibilidade de que o referido crédito fosse inscrito em Dívida Ativa, consoante se depreende da ementa do julgado adiante transcrita:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA (ART. 543-C, DO CPC). BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO INDEVIDAMENTE PAGO QUALIFICADO COMO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. ART. 154, §2º, DO DECRETO N. 3.048/99 QUE EXTRAPOLA O ART. 115, II, DA LEI N. 8.213/91. IMPOSSIBILIDADE DE INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA POR AUSÊNCIA DE LEI EXPRESSA. NÃO INCLUSÃO NO CONCEITO DE DÍVIDA ATIVA NÃO TRIBUTÁRIA. EXECUÇÃO FISCAL. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO PRÓPRIA.
1. Não cabe agravo regimental de decisão que afeta o recurso como representativo da controvérsia em razão de falta de previsão legal. Caso em que aplicável o princípio da taxatividade recursal, ausência do interesse em recorrer, e prejuízo do julgamento do agravo regimental em razão da inexorável apreciação do mérito do recurso especial do agravante pelo órgão colegiado.
2. À mingua de lei expressa, a inscrição em dívida ativa não é a forma de cobrança adequada para os valores indevidamente recebidos a título de benefício previdenciário previstos no art. 115, II, da Lei n. 8.213/91 que devem submeter-se a ação de cobrança por enriquecimento ilícito para apuração da responsabilidade civil. Precedentes: REsp. nº 867.718 – PR, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 18.12.2008; REsp. nº 440.540 – SC, Primeira Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, julgado em 6.11.2003; AgRg no AREsp. n. 225.034/BA, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 07.02.2013; AgRg no AREsp. 252.328/CE, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 18.12.2012; REsp. 132.2051/RO, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 23.10.2012; AgRg no AREsp 188047/AM, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 04.10.2012; AgRg no REsp. n. 800.405 – SC, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 01.12.2009.
3. Situação em que a Procuradoria-Geral Federal – PGF defende a possibilidade de inscrição em dívida ativa de benefício previdenciário indevidamente recebido por particular, qualificado na certidão de inscrição em divida ativa na hipótese prevista no art. 115, II, da Lei n. 8.213/91, que se refere a benefício pago além do devido, art. 154, §2º, do Decreto n. 3.048/99, que se refere à restituição de uma só vez nos casos de dolo, fraude ou má-fé, e artigos 876, 884 e 885, do CC/2002, que se referem a enriquecimento ilícito. 4. Não há na lei própria do INSS (Lei n. 8.213/91) dispositivo legal semelhante ao que consta do parágrafo único do art. 47, da Lei n. 8.112/90. Sendo assim, o art. 154, §4º, II, do Decreto n. 3.048/99 que determina a inscrição em dívida ativa de benefício previdenciário pago indevidamente não encontra amparo legal. 5. Recurso especial não provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008. (REsp 1350804/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/06/2013, DJe 28/06/2013).
O Ministro Mauro Campbell Marques, asseverando que a jurisprudência da Corte Superior é pacífica sobre o tema e, reportando-se ao seu voto no AgRg no REsp no 800.405/SC, salientou que a inscrição em dívida ativa de valor decorrente de ilícito extracontratual deve ser fundamentada em dispositivo legal específico que a autorize expressamente. Demais disso, destacou que, no caso de fraude a benefício previdenciário, haveria uma impossibilidade de aplicação analógica do art. 47 da Lei nº 8.112/1990 em relação àquele que recebeu supostamente indevidamente os valores a título de benefício previdenciário, por se tratar de restrição de direitos.
Com efeito, o art. 47 da Lei nº 8.112/1990, em seu parágrafo único, permite inscrição em dívida ativa de valores indevidamente recebidos por servidor público federal quando o débito não for quitado[3]. Desse modo, consoante o voto do Ministro Mauro Campbell Marques, no REsp nº 1.350.804/PR, a inscrição em Dívida Ativa de valores decorrentes de ilícitos administrativos cometidos por servidores públicos federais resulta não apenas do disposto no §2º do art. 39 da Lei nº 4.320/1964, mas de sua aplicação conjunta com o art. 47 da Lei nº 8.112/1990.
Nota-se, portanto, conforme já salientado, que há uma tendência jurisprudencial do STJ no sentido de entender somente possível a formação de título executivo unilateral nas relações de direito privado que a Administração Pública participa, quando houver fundamento legal ou contratual prévio. Como consequência, nos casos em que restar constatada a inexistência desses pressupostos, não sendo possível a inscrição, os entes públicos para cobrança do crédito devem valer-se de ação condenatória colimando a obtenção de título executivo judicial.
Embora a discussão sobre a inscrição de créditos não tributários ainda demande maior aprofundamento no tocante a temas mais específicos dentro do assunto, é relevante destacar que o próprio entendimento da PGFN alterou-se, trazendo nuances não apreciadas nos precedentes jurisprudenciais atualmente existentes na Corte Superior.
Com efeito, o Parecer PGFN/CDA nº 2.348/2012, elaborado em decorrência de questionamento formulado no Parecer PGFN/CRJ nº 1299/2011 trouxe nova luz à questão, ao se restringir o conceito de Dívida Ativa não tributária àquela passível de ser constituída pela própria Administração Pública, conforme previsão legal específica. No mencionado Parecer, buscou-se esclarecer as hipóteses nas quais a Administração Pública, por ato próprio, poderia e deveria constituir o crédito que tenha como causa o dever de ressarcimento ao erário.
Entendeu-se, naquela manifestação, ser desnecessária a existência de lei específica autorizando a inscrição em dívida ativa, se existir previsão legal para a cobrança administrativa. Considerou-se que, nos casos em que há previsão legal para a cobrança administrativa, a lei conferiu, implicitamente, o poder de inscrição em dívida ativa e, por conseguinte, o de ajuizamento de execuções fiscais.
Percebe-se, sob a ótica do entendimento mais recente da PGFN sobre o tema, que nem todo o valor devido ao erário será passível de inscrição, mas sim quando a lei atribuir previsão de cobrança administrativa. Nessa situação, a inscrição em Dívida Ativa do crédito não tributário tem fundamento na previsão do §2º do art. 39 da Lei nº 4.320/1964 conjugado com outra lei que preveja a cobrança administrativa do crédito.
Espera-se que o STJ referende essa concepção de Dívida Ativa não tributária, já que mais adequada que a anterior e reflete a intenção do legislador. Isso porque, mesmo que o conceito de dívida ativa não seja irrestrito, não deixa de ser amplo, entendendo-se que o intuito do legislador foi que tal concepção fosse bastante larga, o que se coaduna com o entendimento da PGFN.
Sem embargo do disposto e conquanto não se desconheçam entendimentos divergentes, é certo que, quanto ao benefício previdenciário indevidamente recebido por particular, o STJ pacificou-se, em sede de recurso repetitivo, pela impossibilidade de sua cobrança por meio de execução fiscal.
Bons estudos! Espero ter ajudado!
Grande abraço
Flávia Coelho, Procuradora da Fazenda Nacional
EBEJI
Conheça a preparação EBEJI para a PFN:
Reta Final (Simulados + Revisão)
Principais Temas PFN (Grupo I + Processo Civil)
EBEJI
[1] Sobre o assunto, confira-se precedente da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) submetido ao rito do artigo 543-C, do CPC:
TRIBUTÁRIO. TRIBUTO DECLARADO PELO CONTRIBUINTE E PAGO COM ATRASO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. NÃO CARACTERIZAÇÃO. SÚMULA 360⁄STJ.
Nos termos da Súmula 360⁄STJ, “O benefício da denúncia espontânea não se aplica aos tributos sujeitos a lançamento por homologação regularmente declarados, mas pagos a destempo”. É que a apresentação de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF, de Guia de Informação e Apuração do ICMS – GIA, ou de outra declaração dessa natureza, prevista em lei, é modo de constituição do crédito tributário, dispensando, para isso, qualquer outra providência por parte do Fisco. Se o crédito foi assim previamente declarado e constituído pelo contribuinte, não se configura denúncia espontânea (art. 138 do CTN) o seu posterior recolhimento fora do prazo estabelecido.
Recurso especial desprovido. Recurso sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08⁄08.
(REsp 962.379/RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 22.10.2008, DJe 28.10.2008)
[2] PAULSEN, Leandro; ÁVILA, René Bergman; SLIWKA, Ingrid Schroder. Direito Processual Tributário – Processo Administrativo Fiscal e Execução Fiscal à luz da Doutrina e da Jurisprudência, 6ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 159.
[3] Art. 47. O servidor em débito com o erário, que for demitido, exonerado ou que tiver sua aposentadoria ou disponibilidade cassada, terá o prazo de sessenta dias para quitar o débito.
Parágrafo único. A não quitação do débito no prazo previsto implicará sua inscrição em dívida ativa.
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