Samuel Lages é Advogado da União.

EBEJI

Primeiramente, ressalte-se que a expressão “empregado público” diz respeito àqueles empregados da administração direta, autárquica e fundacional regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, situação permitida quando do advento da Emenda Constitucional n. 19/1998, que pôs fim ao regime jurídico único, e vigorou até o deferimento, pelo STF, de medida cautelar nos autos da ADI n. 2135, ocorrida em 14/8/2007. No âmbito federal, o regime de emprego público é disciplinado pela Lei n. 9.962 de 22/2/2000. Nesse sentido, leciona Marcelo Moura[i], para quem:

O Regime de Emprego Público nada mais é do que o regime celetista aplicado à Administração Federal Direta, Autárquica e Fundacional. Tal regime foi instituído pela Lei Federal nº 9.962, de 22.02.2000, com o intuito de flexibilizar as contratações pela União e passou a conviver com o regime estatutário da Lei n. 8.112/90. Tal convivência só foi possível porque a EC 19/98 acabou com a exigência de que cada ente da Federação tivesse um só regime jurídico com os seus servidores. Contudo, o E. STF deferiu parcialmente cautelar, com efeito ex nunc, para suspender a eficácia do art. 39, caput, da CRFB/88, com a redação imposta pela EC 19/98 (ADI nº 2135-4, DJU, 14.08.2007). Desta forma, voltou a vigorar a antiga redação do art. 39, caput, da CRFB/88, que exigia o regime jurídico único. Consequentemente, o denominado Regime de Emprego Público só subsistiu no intervalo entre a edição da Lei Federal nº 9.962, de 22.02.2000 e a concessão da cautelar na ADI 2135-4, DJU, 14.08.2007. A decisão na ADI só teve efeito ex nunc e as contratações ocorridas na vigência da referida lei foram respeitadas.

Posto isso, é cediço que a SBDI-I do TST, órgão com competência para pacificar a jurisprudência da Corte em dissídios individuais, firmou o entendimento de que “O retorno do servidor público (administração direta, autárquica e fundacional) à jornada inicialmente contratada não se insere nas vedações do art. 468 da CLT, sendo a sua jornada definida em lei e no contrato de trabalho firmado entre as partes” (Orientação Jurisprudencial n. 308).

Curial destacar que o art. 468, caput, da CLT dispõe que as alterações contratuais somente podem se dar por mútuo consentimento e desde que não resultem em prejuízos ao empregado, seja direta, seja indiretamente. É o princípio da inalterabilidade contratual lesiva. Eis o teor do dispositivo:

Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

Dessa forma, as alterações desfavoráveis ao empregado tendem, em geral, a ser tidas como ilícitas, salvo quando estiveram autorizadas pela or­dem jurídica heterônoma ou autônoma trabalhista, isto é, por lei, acordo ou convenção coletivos. Essas hipóteses de modificações desfavoráveis válidas existentes no Direito brasileiro formam o jus variandi do empregador.

Ensina Godinho que o jus vari­andiinforma o conjunto de prerrogativas empresariais de ordinariamen­te, ajustar, adequar e até mesmo alterar as circunstâncias e critérios de prestação laborativa pelo obreiro, desde que sem afronta à ordem normativa ou contratual, ou, extraordinariamente, em face de permissão nor­mativa, modificar cláusula do próprio contrato de trabalho[ii].

O magistério jurisprudencial do TST orienta no sentido de que, como a jornada de trabalho do servidor público encontra-se prevista em lei e no contrato de trabalho firmado entre as partes, a determinação de retorno do empregado público à jornada inicial, quando mais extensa, não importa em alteração ilícita, uma vez que não afronta a ordem normativa e contratual, mas a elas se adequa.

Nesse mesmo sentido, destaca-se o entendimento e Élisson Miessa e Henrique Correia[iii] que, ao abordarem a temática do art. 468 da CLT, afirmam:

Essa proibição de retorno à jornada inicialmente contratada não se aplica ao servidor público, pois seu horário é definido em lei. O servidor, portanto, deverá cumprir à jornada prevista no edital do concurso e aquela prevista na lei (municipal, estadual ou federal).

Porém, deve-se salientar que o entendimento da jurisprudência visa a dar cumprimento não apenas ao princípio da legalidade, como também aos princípios da moralidade, impessoalidade e eficiência do serviço público, insculpidos no art. 37, caput, da Constituição Federal, além de refletir o princípio da supremacia do interesse público, do qual decorre a indisponibilidade dos interesses públicos, assim definido por Celso Antônio Bandeira de Mello:

Na administração os bens e interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela[iv].

Não é, portanto, permitido ao administrador público reduzir a carga horária estabelecida legalmente, sob pena de ofensa à ordem administrativa acima ressaltada. Assim, a permissão de cumprimento de jornada reduzida, quando a lei impõe jornada mais elevada, não se incorpora em definitivo ao contrato de trabalho e, portanto, não constitui alteração contratual ilícita capaz de ofender o art. 468 da CLT.

Ressalte-se, por oportuno, a pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca inexistência de direito adquirido à regime jurídico. Cite-se, por todas, a seguinte ementa: 

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. JORNADA DE TRABALHO REDUZIDA. RETORNO À JORNADA MAIS EXTENSA. AUSÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A REGIME JURÍDICO. ALEGADA REDUÇÃO DE VENCIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE DO REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 279 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. ARE 640520 AgR / SP – SÃO PAULO, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 28/06/2011 Órgão Julgador: Primeira Turma, DJe-158 DIVULG 17-08-2011 PUBLIC 18-08-2011.

De fato, embora a Corte trabalhista tenha entendimento de que as pessoas jurídicas de direito público se equiparam aos empregadores privados ao contratarem pelo regime da CLT[v], tal equiparação não é absoluta. Isso porque a aplicação de normas de Direito do Trabalho, que o são de regra de Direito Privado, sofre forte restrição no âmbito da Administração Pública, tendo em vista os princípios consagrados no citado artigo 37, da Constituição. Entre esses se destacam o que se referem à impessoalidade e à legalidade dos seus atos, pelos quais o Administrador deve agir de modo impessoal e nos estritos limites da lei.

São corriqueiras as decisões favoráveis à União em demandas em que os empregados públicos da administração direta, tais como os que se ativam no Hospital das Forças Armadas – HFA, submetidos ao regime celetista por força das Leis de n.os 9.962 de 22/2/2000 e Lei nº 10.225 de 15/5/2001, pleiteiam o pagamento de horas extras pelo retorno à jornada inicialmente contratada. Por todos, transcreve-se ementa oriunda da SBDI-I do TST, verbis:

HORAS EXTRAS. EMPREGADO PÚBLICO. REVERSÃO À JORNADA  ESTIPULADA NO CONTRATO DE TRABALHO. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 308 DA SBDI-1. A Turma manteve a decisão do Tribunal Regional que indeferiu as horas extras com fundamento na Orientação Jurisprudencial 308 da SBDI-1. Destacou que o reclamante era servidor público celetista, submetido às regras da Lei 10.225/2001, que instituiu empregos públicos no âmbito Hospital das Forças Armadas – HFA, a qual fixou a carga horária de trabalho de quarenta horas semanais, afastando o direito às horas extras. A decisão da Turma está em conformidade com a Orientação Jurisprudencial 308  da SBDI-1, segundo a qual: “O retorno do servidor público (administração direta, autárquica e fundacional) à jornada inicialmente contratada não se insere nas vedações do artigo 468 da CLT, sendo a sua jornada definida em lei e no contrato de trabalho firmado entre as partes”. O recurso de embargos não alcança conhecimento, na forma do inciso II do artigo 894 da CLT, estando superada a alegação de dissenso jurisprudencial (Processo: E-ED-RR – 37200-06.2006.5.10.0009 Data de Julgamento: 26/02/2015, Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT13/03/2015).

Cumpre destacar que a Orientação Jurisprudencial em tela incide mesmo nas hipóteses em que o empregado público nunca tenha cumprido a jornada inicialmente contratada, conforme se depreende da ementa de julgado, divulgado no Informativo n. 99 do TST, de seguinte teor[vi]:

EMBARGOS. ENTE PÚBLICO. EMPREGADA QUE NUNCA CUMPRIU A JORNADA DE TRABALHO INICIALMENTE CONTRATADA. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 308 DA SBDI-1. Contraria a Orientação Jurisprudencial 308 da SbDI-1 do TST, segundo a qual “o retorno do servidor público (administração direta, autárquica e fundacional) à jornada inicialmente contratada não se insere nas vedações do art. 468 da CLT, sendo a sua jornada definida em lei e no contrato de trabalho firmado entre as partes”, acórdão mediante o qual se afasta a aplicação do aludido entendimento ainda que se trate de jornada contratual nunca exercida. Embargos de que se conhece e a que se dá provimento.

Com efeito, anotou-se no acórdão que, dos precedentes que serviram de fundamento à edição do verbete, não há qualquer exigência de a jornada legal ou contratual haver sido exercida por qualquer lapso anterior. Rechaçou-se, ainda, que o decurso de tempo possa constituir motivo de perpetuação da irregularidade, sendo irrelevante que a alteração de jornada de trabalho tenha ocorrido após anos da concessão da jornada reduzida.

Portanto, o servidor público da administração direta, autárquica e fundacional – empregado público – não adquire direito à jornada reduzida praticada no curso do contrato de trabalho, inexistindo alteração contratual ilícita no ato de retorno à jornada anteriormente contratada, prevista em lei ou no contrato ajustado, ainda que após longo decurso de tempo e mesmo que nunca antes cumprida.

Samuel Lages, Advogado da União.

[i] Consolidação das Leis do Trabalho para concursos, 4ª edição, JusPodivm, p. 52/53.

[ii] Curso de Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, 10ª ed., 2011

[iii] Súmulas e Orientações Jurisprudenciais do TST comentadas e organizadas por assunto, 4ª edição, JusPodivm, p. 183.

[iv] Curso de Direito Administrativo, 27ª edição, Malheiros Editores, p. 74

[v] Entendimento que se extrai da leitura dos precedentes que deram origem à Orientação Jurisprudencial n. 152 da SBDI-I, disponíveis em https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDI_1/n_s1_141.htm#TEMA152

[vi] E-RR-368500-43.2009.5.04.0018, SBDI-I, rel. Min. Márcio Eurico Vitral Amaro, 5.2.2015