Nos últimos tempos, um tema que vem ganhando cada vez mais repercussão e atenção refere-se à questão de gênero, especificamente no que se refere à violência contra as mulheres.
Embora essa pareça ser uma temática relativamente nova, o fato é que ela já foi tratada pela CIDH, inclusive no famoso caso Maria da Penha, contra o Brasil.
Por conta disso, vamos estudar alguns aspectos importantes da matéria, partindo de dois casos atinentes ao tema:
- Caso Maria da Penha v. Brasil
O caso se refere à violência sofrida por Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de tentativa de homicídio com um tiro de arma de fogo nas costas, disparado pelo seu marido à época.
Após retornar do hospital, a vítima sofreu novo atentado, dessa vez tendo seu marido tentado eletrocutá-la durante o banho.
Mesmo sem ter havido o esgotamento da jurisdição interna, o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1998, sob a alegação de tolerância à violência contra a mulher no Brasil, já que o país não havia adotado as medidas necessárias para processar e punir o agressor.
No caso, um dos fundamentos suscitados foi a Convenção de Belém do Pará.
O Brasil não apresentou resposta à Comissão, o que gerou relatório em 2001, responsabilizando o Brasil por negligencia, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra a mulher. Assim, foram feitas as seguintes recomendações:
- Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia.
- Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes.
- Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos; e por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e indenização civil.
- Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.
A Comissão recomendou, particularmente, o seguinte: a) Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim deque possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas resolução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera; d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais. e) incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares).
Esse caso ficou bastante conhecido por ter sido o precursor na condenação de um Estado relativamente à violência doméstica contra a mulher, tendo tido por consequências a publicação da Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, e resultado, ainda, no pagamento de uma indenização no valor de R$60.000,00 a favor de Maria da Penha.
- Caso Cotton Field ou Caso Campo Algodonero (Caso González y otras v. Mexico)
Sem dúvidas, esse é um caso emblemático no que se refere à questão de gênero, por ter sido nele que ocorreu o reconhecimento da existência do crime de feminicídio.
Aqui, foi discutida a responsabilidade do Estado em virtude do desaparecimento e morte de várias mulheres em um campo de algodão na cidade de Juarez, no México, em 2001, envolvendo agentes não estatais.
Na ocasião, a CIDH destacou que o Estado teria responsabilidade por não ter atuado não apenas na repressão e punição desses crimes, como também na prevenção a partir de políticas de respeito às mulheres, destacando que, na hipótese, os crimes estariam relacionados ao próprio sexo das vítimas, havendo, sim, um feminicídio, ou seja, um crime decorrente do sexo feminino da vítima.
E por que esses dois casos são relevantes?
Eles são relevantes por conta das premissas que eles estabeleceram, senão vejamos:
Primeiramente, é importante destacar que a questão relativa à proteção das mulheres, especificamente, é tratada pela Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a Mulher), de 1994. Contudo, segundo frisa a CIDH em diversos julgados, o fato de não estar a matéria tratada no Pacto de São José da Costa Rica não afasta sua competência para tratar do tema, pois essa competência envolve todos os tratados que versem sobre direitos humanos.
Mais do que isso, esses casos são importantes porque neles a CIDH frisa a possibilidade de aplicar a Convenção de Belém do Pará mesmo em relação a fatos que sejam anteriores a sua ratificação pelo Estado envolvido, pois o direito humano à proteção da mulher seria preexistente a sua previsão em um tratado ou à adesão a esse tratado.
Especificamente no que se refere ao caso do Campo Algodonero, a posição da CIDH é importante por tratar da violência de gênero de forma macro, e não apenas em um contexto de violência doméstica, reconhecendo a responsabilidade estatal por sua omissão no tema.
Assim, esses casos destacam a necessidade de se reconhecer a violência decorrente do gênero da vítima, com a figura do feminicídio.
E em que consiste o feminicídio?
Como acabou por reconhecer o próprio Código Penal Brasileiro, o feminicídio consiste no homicídio praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, envolvendo, assim, a violência doméstica e familiar (como no caso Maria da Penha) e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (como no caso Algodonero).
Atualmente, essa figura é tipificada pelo nosso Direito, figurando como qualificadora do crime de homicídio e como crime hediondo.
Atente que o feminicídio não se confunde com o femicídio, sendo este a prática do homicídio contra a mulher, mas não em razão de sua condição de sexo feminino. Assim, a chave da qualificação do feminicídio está justamente na questão do gênero, sendo que essa tipificação apenas veio a ocorrer com a Lei 13.104/2015, e não com a Lei Maria da Penha, que não traz um rol de crimes em seu texto, e sim regras processuais para proteger a mulher vítima de violência doméstica apenas.
A previsão desse crime, protegendo especificamente a mulher, viola o princípio da igualdade?
Por óbvio que não, como, inclusive, já decidiu o STF ao julgar a ADC 19, proposta em relação à Lei Maria da Penha.
Na oportunidade, o STF frisou ser sim possível a estipulação de uma proteção penal maior para os casos de crimes cometidos contra a mulher por razões de gênero, já que tal decorre da aplicação da igualdade em seu sentido material, considerando a própria vulnerabilidade da mulher, que, por razões históricas, tem sido vítima de discriminações e sofrimentos decorrentes da questão de gênero. Há, assim, uma ação afirmativa em favor da mulher.
A posição da CIDH resolve o tema?
Apesar da relevância dos dois casos, contudo, para alguns doutrinadores, a CIDH poderia ter ido muito mais além.
Nesse sentido é o texto EngenderingthereparationsjurisprudenceoftheInter-AmericanCourtofHumanRights: The PromiseoftheCotton Field Judgment, de Ruth Rubio-Marin & Clara Sandoval.
As autoras destacam, primeiramente, que a CIDH se mostrou lenta na incorporação da justiça de gênero na sua jurisprudência, tendo sido o caso Cotton Field um marco nessa evolução, mas que apenas foi sentenciado em 2009.
Apesar disso, frisam que o caso Algodonero, embora tenha sido um marco, frisou a questão de gênero apenas no momento da reparação, quando ela deveria ter se feito presente em todos os momentos da decisão.
Assim, especificam que a CIDH poderia ter abordado e frisado os seguintes pontos:
- A violência relativa ao gênero não se faz presente apenas no aspecto sexual, mas em todos, mesmo quando não envolvam uma questão física;
- Há necessidade de se ampliar o conceito de vítima, para incluir não apenas aquele envolvido diretamente no caso, mas também familiares, como filhos de mulheres violentadas, etc., já que também eles passam a ser discriminados em sua vida social. Assim, para essas autoras, a CIDH deve ter um papel ativo no ponto para ampliar as condenações no tema, não podendo se apegar a questões processuais para fixar reparação apenas em favor de vítimas indicadas;
- No aspecto probatório, destaca que a CIDH deve acolher as presunções como meios de prova, principalmente em tais casos, em que a prova indiciária é praticamente a única possível para se identificar a questão do gênero como motivação do crime;
- Por fim, destaca a necessidade de, em tais casos, se ampliar a noção de dano, para incluir o material e o moral, não podendo a reparação ficar limitada às ideias de restituição, compensação e satisfação (o que se fez bastante presente no caso Maria da Penha).A reabilitação e a garantia de não repetição também devem ser contempladas, sempre tendo a questão do gênero como norte para sua determinação.
Apesar das críticas, as autoras destacam que a posição da CIDH no caso foi importante por ter, dentre outros aspectos positivos acima levantados, sinalizado uma mudança no aspecto probatório ao reconhecer uma inversão do ônus da prova, já que imputou ao Estado o dever de demonstrar que foi diligente.
Além disso, assinalam que as medidas impostas na condenação foram importantes por frisarem também um aspecto de retificação, numa dimensão transformativa. Assim é que, além da reparação pecuniária, a CIDH determinou a divulgação da sentença, no reconhecimento público, pelo Estado, de sua responsabilidade internacional e na construção de um monumento em memória das vítimas, além de determinar que o Estado ofereça reabilitação física e mental para as vítimas do caso pelo tempo que necessário.
Determinou que o Estado deveria providenciar evidências não apenas de que a política de combate ao feminicídio existe, mas de que ela está sendo efetiva, tendo indicado ao México que qualquer desaparecimento de mulheres deve ser rapidamente investigado, como uma obrigação de ofício do Estado.
Sem dúvidas, a violência relacionada ao gênero vem se tornando matéria de suma importância, e isso não só para concursos públicos. Nestes, contudo, deve o candidato estar ciente do regramento da matéria (Convenção de Belém do Pará, Lei Maria da Penha e Lei 13.104, principalmente) e das noções que o fundamentam, como a ideia de igualdade material, política afirmativa, ideia de feminicídio, etc.
Conhecer a posição da Corte Interamericana e, também, critica-la, portanto, é fundamental, para que se reconheça até mesmo como entraves processuais podem inibir uma proteção mais ampla de direitos humanos, e também para evidenciar como a proteção relacionada ao gênero ainda é incipiente, necessitando de discussão e aprofundamento, mesmo nas altas Cortes.
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