Samuel Lages é Advogado da União.

EBEJI

Uma interessante controvérsia doutrinária e jurisprudencial que paira no processo do trabalho e que tem efeitos práticos importantes, inclusive em execuções processadas contra a União, é a prescrição intercorrente.

Maurício Godinho Delgado, define como intercorrente, “a prescrição que fui durante o desenrolar do processo”. O autor explica que “Proposta a ação, interrompe-se o prazo prescritivo; logo a seguir, ele volta a correr, de seu início, podendo consumar-se até mesmo antes que o processo termine[1].

Mauro Schiavi, por sua vez, citando Irany Ferrari e Melchíades Rodrigues Martins, define a prescrição intercorrente como “aquela que se verifica no curso da execução, portanto, depois do trânsito em julgado da decisão”. Ressalta que a finalidade do instituto é a de evitar a delonga do processo de execução, além de estimular a parte credora a se valer do seu direito[2].

Como se vê, a prescrição intercorrente pressupõe a interrupção da prescrição direta (provocada por força da citação, nos termos do art. 219 do CPC) e o trânsito em julgado da decisão. Além disso, como é comum a toda prescrição, imprescindível a inércia do credor, uma vez que não pode ser penalizado pelas vicissitudes do sistema.

Um exemplo legal da prescrição intercorrente é o previsto na Lei n. 6.830/80 (LEF), de seguinte teor:

Art. 40 – O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

(…).

2º – Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.

(…).

4º – Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato. (Incluído pela Lei nº 11.051, de 2004)

Embora bastante polêmica a aplicação da prescrição intercorrente, o Tribunal Superior do Trabalho tem posição sumulada, por meio da edição do Enunciado 114 de sua jurisprudência, no sentido de que:

É inaplicável na Justiça do Trabalho a prescrição intercorrente.

Sem embargo do respeito à posição, grande parcela da doutrina tece críticas a esse entendimento absoluto exposto no enunciado, o que explica dissidências no próprio seio da corte, como se pode inferir do julgamento abaixo colacionado:

PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE – APLICABILIDADE DO ENTENDIMENTO CONSUBSTANCIADONO ENUNCIADO Nº 114/TST – CONDIÇÕES: Conquanto o Enunciado nº 114/TST genericamente negue a aplicabilidade do instituto da prescrição intercorrente no processo trabalhista, tal premissa deve ser avaliada em cotejo com as circunstâncias fáticas de cada caso, porquanto não é compatível com os ideais de economia e agilidade na entrega da prestação jurisdicional o manter-se semelhante critério diante de situações nas quais se dá o estancamento do feito por inércia da parte em praticar atos de sua responsabilidade e interesse. Revista conhecida e não provida.[3]

A dicção do aresto nos remete à ilação de que a parte exequente não pode eternizar o processo de execução, gerando, com isso, não apenas insegurança jurídica, mas sérios prejuízos à parte executada, uma vez que, durante sua inércia processual, os juros e a correção monetária continuam a fluir, majorando o débito original.

O raciocínio que lastreia o enunciado, todavia, é o de que o disposto no art. 878 da CLT, segundo o qual a execução pode ser promovida pelo próprio juiz, em harmonia com o princípio do impulso oficial, aniquila a tese da prescrição intercorrente.

Todavia, como salienta Manoel Jorge e Silva Neto[4], a prescrição intercorrente não se confunde com a prescrição da pretensão de execução, esta sim, inviável no processo trabalhista, à luz do referido art. 878 da CLT. Foi esse o sentido, aliás, que levou o C. TST a editar o enunciado 114 de sua jurisprudência.

Com efeito, a prescrição intercorrente ocorre em razão da paralisação no curso do processo de execução, vale dizer, após o seu início, a sua promoção, ocorrida na forma do art. 878 da CLT. Forte nesse entendimento, aliás, é que o art. 884, § 1º, da CLT permite a alegação de prescrição como matéria de defesa nos embargos à execução. Tal prescrição não se refere, certamente, àquela alegável no processo de conhecimento, posto que afrontaria a intangibilidade do título executivo (art. 5º, XXXVI, CF), mas sim a que ocorre no curso da execução. Eis o teor do dispositivo:

Art. 884 – Garantida a execução ou penhorados os bens, terá o executado 5 (cinco) dias para apresentar embargos, cabendo igual prazo ao exeqüente para impugnação.

1º – A matéria de defesa será restrita às alegações de cumprimento da decisão ou do acordo, quitação ou prescrição da divida.

Sem dúvida, esse é o entendimento que mais se coaduna com a coerência necessária ao ordenamento jurídico. De fato, o direito exige que o devedor cumpra a sua obrigação, mas disso não se conclui que possa o credor se manter inerte indefinidamente e, num dado momento, reviver situações passadas, porque se estaria dando ensejo à perpétua incerteza da vida social.

Não cabe ao Juiz substituir a parte ou seu advogado, a fim de realizar atos processuais de iniciativa própria, já que estaria violando o art. 133 da Constituição Federal, e, ainda, os princípios do devido processo legal e do contraditório, insculpidos no art. 5°, incisos LIV e LV, CF, pois atingiria diretamente a imparcialidade imprescindível ao órgão julgador.

Cumpre salientar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal já sumulou essa matéria nos seguintes termos:

O Direito Trabalhista admite a prescrição intercorrente.

Diante da aparente antinomia de entendimentos, Carlos Henrique Bezerra Leite dá razão ao STF[5]:

Parece-nos com razão o STF, desde que o exequente, intimado para a prática de ato que só a ele incumbe, permanecer inerte por mais de dois anos. Nesse caso, poderá o juiz da execução, mediante requerimento do devedor nos embargos por este opostos, pronunciar a prescrição intercorrente e julgar extinto o processo de execução.

Na mesma linha, buscando uma compatibilização dos entendimentos jurisprudenciais das cortes superiores, Homero Batista Mateus da Silva[6]:

Então, uma solução intermediária propõe que as duas súmulas sejam lidas sob a mesma premissa. A redução da Súmula n. 114 do Tribunal Superior do Trabalho passaria a ser: É inaplicável na Justiça do Trabalho a prescrição intercorrente, supondo-se que a providencia seja concorrente, ao passo que a Súmula 327 do Supremo Tribunal Federal ficaria assim: O direito trabalhista admite a prescrição intercorrente, supondo que a providencia seja exclusiva da parte. Afinal, foram realmente essas premissas sobre as quais as súmulas se assentaram em suas origens, mas, por falta de maior clareza, a redação dos verbetes ficou incompleta, gerando a ambiguidade.

Nesse passo, Antônio Borges de Figueiredo leciona que, com o advento da Lei 10.035/00, ao adicionar o § 1º – B ao art. 879 da CLT, passou a recair sobre o exequente o ônus de apresentar os cálculos de liquidação[7].

Recorde-se que o inciso V do art. 14 do CPC é expresso ao incluir como dever das partes o de cumprir com exatidão os “provimentos mandamentais” do juiz:

Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:

(….)

V- cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

Em suma, a prescrição intercorrente se aplica, segundo o entendimento doutrinário, quando, após o trânsito em julgado, a inciativa de impulso do feito dependa exclusivamente do autor, como quando este é intimado a apresentar os cálculos de liquidação.

Acrescente-se que, por força do art. 889 da CLT, à execução trabalhista, aplica-se subsidiariamente o previsto na LEF. Tal diploma normativo, como já deduzido, prevê expressamente a incidência da prescrição intercorrente, que pode mesmo ser reconhecida de ofício, consoante se depreende do disposto nos §§ 2º e 4º do art. 40 supra transcritos.

Ressalte-se, como argumento de reforço, que o Projeto de Lei do Senado n.º 39, de 2007, visa a sanar de vez a polêmica ao acrescer o art. 879-A à CLT que terá a seguinte redação:

Art. 897-A. Quando, por responsabilidade exclusiva do exequente, não for dado impulso à execução pelo prazo de um ano, determinará o juiz o arquivamento dos autos.

Parágrafo Única. Decorridos cinco anos da decisão que determinou o arquivamento dos autos sem que tenha ocorrido fato novo, o juiz poderá, ouvidos o exequente e o Ministério Público do Trabalho, decretar a prescrição do crédito.

Não obstante, a jurisprudência das Turmas do C. TST (que julgam Recurso de Revista e Agravo de Instrumento em Recurso de Revista) não têm se sensibilizado com os argumentos acima, aplicando o entendimento do Enunciado 114 de sua súmula sempre que admite o exame do mérito do apelo. Nesse sentido, apenas para exemplificar, RR ­ 16500­25.2003.5.01.0054 , Relator Ministro: Renato de Lacerda Paiva, Data de Julgamento: 05/11/2014, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/11/2014; AIRR – 140400-78.1995.5.02.0060 , Relator Desembargador Convocado: José Maria Quadros de Alencar, Data de Julgamento: 05/11/2014, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/11/2014; RR – 157600-80.1995.5.15.0046, Relator Ministro: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 27/08/2014, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 05/09/2014.

Saliente-se, todavia, que a SBDI-II (a quem compete o julgamento de Ação Rescisória de julgados do TST e Recurso Ordinário em Ação Rescisória de competência dos Tribunais Regionais), no RO-14-17.2014.5.02.0000, divulgado no informativo em Execução n.º 11 de 2015, acenou com a tese majoritariamente defendida na doutrina, no sentido de que a prescrição intercorrente é cabível quando a inciativa de impulso do feito dependa exclusivamente do autor:

RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. PRONÚNCIA NO CURSO DA EXECUÇÃO TRABALHISTA. TESE DEBATIDA NA DECISÃO RESCINDENDA. INCIDÊNCIA DA COMPREENSÃO DA SÚMULA 298, II, DO TST. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. CARACTERIZAÇÃO. PRECEDENTES. 1. Havendo, na decisão rescindenda em que declarada a prescrição intercorrente, expressa alusão ao princípio da segurança jurídica, imperativa a conclusão de que ocorreu o pronunciamento explícito sobre o conteúdo da norma do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal (Súmula 298, II, da SBDI-2 do TST). 2. No caso, o órgão prolator da decisão rescindenda, sem indicar qual providência teria deixado de ser adotada pelo principal interessado no desfecho da execução, declarou a prescrição intercorrente da pretensão executiva, assinalando, de forma genérica, que a parte exequente permaneceu inerte por mais de dois anos. Sucede, porém, que o crédito trabalhista, oriundo de condenação ao pagamento de haveres decorrentes de relação empregatícia, consoante a jurisprudência da SBDI-2/TST, não se expõe à prescrição intercorrente, uma vez que o processo do trabalho pode ser impulsionado de ofício (CLT, art. 878). Nesse contexto, a declaração da prescrição intercorrente implica afronta à norma do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Recurso ordinário conhecido e provido.

Da leitura do julgado, percebe-se que a Seção deu provimento ao apelo, afastando a prescrição intercorrente, apena porque a sua aplicação não restou fundada em uma inércia específica do exequente.

Por cautela, em um tal contexto jurisprudencial, é interessante sustentar, de forma subsidiária, a tese de limitação da incidência de juros e da correção monetária, uma vez que, quando o atraso no pagamento decorre de atos do exequente, não é possível impor o encargo da mora ao executado.

Esse argumento sustenta-se na aplicação do princípio da boa-fé, que ecoa por todo o ordenamento jurídico, não se esgotando no campo do Direito Privado, de onde se originou.

O princípio da boa-fé orienta que os sujeitos processuais devem conduzir-se de acordo com a boa-fé, isto é, impõe um comportamento pautado objetivamente em condutas leais, sem que se frustrem a confiança razoável depositada no outro.

Do prestigiado princípio decorrem subprincípios, entre os quais se destaca o duty to mitigate the own loss, que consiste no dever de mitigar, dentro do empenho possível e razoável, o evento danoso, a fim de se evitar prejuízos mais gravosos, em prol, fundamentalmente, do interesse social. Nesse sentido, a conclusão da III Jornada de Direito Civil, por meio de seu enunciado nº 169, salientandoo que o “princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.

Defendendo a aplicabilidade do referido subprincípio no âmbito do processo civil, vale transcrever a lição de Fredie Didier Jr.[8]:

Remanesce a dúvida: toda essa construção teórica, criada para o universo do direito privado, pode ser aplicada por extensão ao direito processual?

Certamente que sim.

É lícito conceber a existência de um dever da parte de mitigar o próprio prejuízo, impedindo o crescimento exorbitante da multa, como corolário do princípio da boa-fé processual, cláusula geral prevista no art. 14, II, do CPC.

Como já se disse, o princípio da boa-fé processual é decorrência da expansão do princípio da boa-fé inicialmente pensado no direito privado. Esse princípio implica a proibição do abuso do direito e a possibilidade de ocorrência da supressio, figura, aliás, que é corolário da vedação ao abuso. Se o fundamento do duty to mitigate the loss é o princípio da boa-fé, que rege o direito processual como decorrência do devido processo legal, pode-se perfeitamente admitir a sua existência, a partir de uma conduta processual abusiva, no direito processual brasileiro.

Ao não exercer a pretensão pecuniária em lapso de tempo razoável, deixando que o valor da multa aumente consideravelmente, o autor comporta-se abusivamente, violando o princípio da boa-fé. Esse ilícito processual implica a perda do direito ao valor da multa (supressio), respectivamente ao período de tempo considerado pelo órgão jurisdicional como determinante para a configuração do abuso de direito. Trata-se, pois, de mais um ilícito processual caducificante.

(…).

Assim, não pode o exequente ser beneficiado pela própria inércia, uma vez que, ao deixar de apresentar elementos imprescindíveis ao prosseguimento da execução, provoca mais prejuízos.

Nesse sentido, interessante o julgado a seguir (destaques nossos):

PROCESSO DE EXECUÇÃO. ARQUIVAMENTO POR LONGO PERÍODO DE TEMPO POR INÉRCIA DA PARTE EXEQUENTE. JUROS DE MORA. EXCLUSÃO – Se o processo foi arquivado por inércia do exequente, considerando o longo período de tempo (nove anos, no caso), é justa a pretensão da promovida agravante de não haver a incidência de juros de mora durante o lapso temporal relativo do arquivamento. Assim é porque, na espécie, em se tratando de responsabilidade subsidiária que deixou de ser exigida há mais de dois anos (contados do reconhecimento da insolvência do devedor principal), poderia ter sido buscada pela apelante, inclusive, a declaração da prescrição total da obrigação. Recurso ordinário parcialmente provido. (TRT-6 – AP: 1100721997506 PE 0001100-72.1997.5.06.0011, Relator: Bartolomeu Alves Bezerra, Data de Publicação: 01/10/2010)

Dessa forma, além de defender a aplicação da prescrição intercorrente em sede de Embargos à Execução, diante da controvérsia explicitada, sustentável também a defesa da limitação da conta de liquidação com base no princípio da boa-fé.

EBEJI

Samuel Lages

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[1] Curso de Direito do Trabalho, Editora. São Paulo: LTr., 2011, 5ª ed., p. 269.

[2] Manual de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2014.

[3] PROCESSO: RR   NÚMERO: 345154   ANO: 1997. PUBLICAÇÃO: DJ – 03/12/1999.

[4] Constituição e Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007,. P. 118.

[5] in Curso de Direito Processual do Trabalho, 8. ed. LTr, pg. 1.037

[6] Curso de Direito do Trabalho aplicado: execução trabalhista. São Paulo: Campus, 2010. P. 242.

[7] Prescrição Trabalhista”, Síntese, Porto Alegre, 2002, p. 160

[8] DIDIER JR., Fredie. Multa corercitiva, boa-fé processual e supressio: aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil. in: Revista de processo. a. 34, 1.171, maio, 2009, pág. 48