Qual a diferença entre personalidade jurídica e personalidade judiciária?

 No Recurso Especial 1.429.322/AL, julgado em 20/02/2014, da relatoria do Ministro Mauro Campbell, há o seguinte trecho:

“A Câmara Municipal não tem legitimidade para propor ação com objetivo de questionar suposta retenção irregular de valores do Fundo de Participação dos Municípios. Isso porque a Câmara Municipal não possui personalidade jurídica, mas apenas personalidade judiciária…”

A questão tratada dizia respeito a uma alegada retenção irregular de parte dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) ao Município de Mar Vermelho. No caso, a Câmara Municipal desse ente municipal abordou judicialmente a retenção de parte dos valores.

Feito esse breve esclarecimento, surge o principal questionamento: um órgão público teria possibilidade de demandar em juízo? Para compreender esse tema, faz-se necessário analisar a temática da personalidade jurídica e suas decorrências para com a relação processual.

A personalidade jurídica é entendida como uma aptidão para contrair direitos e obrigações, abrangendo pessoas físicas ou jurídicas. Portanto, as pessoas podem ter personalidade jurídica de direito privado ou personalidade jurídica de direito público.

Dentro das pessoas jurídicas de direito público, consoante os artigos 41 e 42 do Código Civil, elas podem ser de direito público interno (entes federativos, autarquias e fundações públicas, por exemplo) ou externo (Estados estrangeiros, ONU, MERCOSUL, por exemplo).

Assim, é possível assentar que os entes federativos são detentores de personalidade jurídica de direito público, ostentando, então, uma série de prerrogativas processuais e patrimoniais. Os quatro entes federativos podem aparecer em uma relação processual como autor ou réu, a depender do tipo de ação.

É de conhecimento geral que a atuação estatal se perfaz por meio de órgãos públicos, mediante a força laborativa de pessoas físicas. Assim, quando um agente público atua, entende-se que é o próprio Estado agindo, ou seja, imputa-se a atuação do agente à pessoa jurídica respectiva. Essa dinâmica imputativa adveio da chamada Teoria do Órgão e baseia-se em uma relação de aparência.

É plenamente possível que o particular questione judicialmente a atuação de um agente público ou um ato administrativo emanado por órgãos. Nesse caso, a forma correta de agir é o particular colocar no polo passivo da demanda não o órgão público, mas a pessoa jurídica a qual ele faça parte.

Pode ser citado, a título exemplificativo, um ato emanado por uma secretaria estadual ou um ministério. Na eventual ação judicial, o réu será o estado ou a União, e não a respectiva secretaria ou o ministério.

Um ponto importante é que também não deve ser confundido o ente da Federação com uma autarquia ou fundação pública, pois são pessoas jurídicas distintas. Assim, um particular irresignado com uma autuação lavrada pelo IBAMA ou pelo IPHAN deve litigar judicialmente contra essas autarquias, e não contra a União.

Conforme já foi dito, os órgãos públicos personificam a própria pessoa jurídica de direito público, razão pela qual eles não respondem judicialmente. Assim, como regra, a defesa judicial será feita pelo corpo de advogados públicos integrantes da pessoa jurídica.

Porém, é importante destacar que existem órgãos públicos que possuem uma posição singular no ordenamento jurídico brasileiro, ostentando uma série de especificidades, tais como:

– previsão no texto constitucional;

– podem titularizar um dos três poderes;

– não são subordinados

– atribuições exercidas por agentes políticos.

As Câmaras Municipais são um excelente exemplo. Elas representam o Poder Legislativo municipal, possuem dignidade constitucional, não são subordinados e suas atribuições são exercidas pelos vereadores (eleitos pelo voto popular).

Para que elas possam exercer o mister institucional que se espera, são necessários recursos, havendo, inclusive, disposição constitucional nesse sentido (art. 29-A, §2º):

§ 2o  Constitui crime de responsabilidade do Prefeito Municipal: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 25, de 2000)

I – efetuar repasse que supere os limites definidos neste artigo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 25, de 2000)

II – não enviar o repasse até o dia vinte de cada mês; ou (Incluído pela Emenda Constitucional nº 25, de 2000)

III – enviá-lo a menor em relação à proporção fixada na Lei Orçamentária. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 25, de 2000)

Diante desse contexto, como ficaria a situação de um prefeito que não repassa os valores devidos à Câmara Municipal? Adotando-se a noção clássica, a Câmara, integrante pelo Município, ingressaria em juízo, contra o Executivo, também integrante do mesmo ente. Ou seja, seria a mesma pessoa no polo ativo e no polo passivo. Obviamente, esse caminho não é o mais ideal.

Por conta de inúmeros conflitos que surgem e que podem surgir entre alguns órgãos “especiais”, a doutrina e a Jurisprudência passaram a reconhecer a chamada personalidade judiciária.

Ela consistiria em admitir que certos órgãos públicos podem ser partes no processo para defender um direito próprio ou prerrogativa/competência constitucional. Assim, interesses puramente patrimoniais do órgão público “especial” não podem ser perquiridos judicialmente sob o manto da personalidade judiciária.

Nos casos de envolver a seara patrimonial, a pessoa jurídica respectiva é a competente para estar em juízo. Logo, se em um protesto de populares ocorre uma depredação ou vandalismo contra uma Assembleia Legislativa, não será ela que ingressará em juízo para responsabilizar civilmente os causadores do dano, mas sim o estado respectivo.

Mas, se um governador ou prefeito tolherem as competências constitucionais dos órgãos representativos do Legislativo, aí sim existiria o permissivo para ingressar em juízo através do manto da personalidade judiciária.

No caso trazido no início deste este artigo, o STJ endossou o acórdão recorrido, que entendeu no sentido de o FPM ser de titularidade do ente municipal, e não da Câmara Municipal. Além disso, a atuação judicial empreendida pelo legislativo local buscou defender interesse meramente patrimonial, e não uma finalidade puramente institucional.

Em suma, para que a personalidade judiciária possa transparecer, o órgão público deve atuar em fins estritamente institucionais, envolvendo a autonomia, o funcionamento e a independência.

Rodrigo Duarte, Advogado da União.

Curso EBEJI – estude para o concurso da PGE-RN utilizando nossas Rodadas de Simulados!