Qual a Natureza da Ação Penal nos Crimes de Estupro de Vulnerável?
Prezados,
Em reta final de conclusão das revisões, atualizações e acréscimos que serão feitos para a gravação dos módulos de Processo Penal que lecionarei em alguns Cursos da EBEJI em 2015 (em breve serão divulgados!), quando da preparação voltada especificamente ao tema Ação Penal, deparei-me com importantíssimo e recente precedente do Superior Tribunal de Justiça, publicado no último informativo de número 553, o qual, sem qualquer dúvida, será objeto de questionamento nos concursos públicos vindouros!
Conforme noticia a maior parte dos manuais de Direito Penal e Processo Penal, sabe-se que em 2009, a partir da vigência da Lei 12.015, os atualmente chamados Crimes contra a Dignidade Sexual (Título VI da Parte Especial do CPB) passaram a ter um novo e distinto regramento em relação ao até então aplicado. A referida modificação legislativa trouxe diversas novidades, instigando críticas, elogios e debates sobre as suas várias facetas, seja sob a ótica do direito material ou do direito processual.
No que nos interessa para presente post, as grandes modificações se efetivaram vinculadas à classificação da modalidade de ação penal desafiada pelos “crimes sexuais”. Se antes podíamos asseverar que a regra era a queixa crime (ação penal de iniciativa privada) e, excepcionalmente, a ação penal pública (condicionada ou incondicionada a depender da situação concreta), com a vigência da Lei 12.015/2009, de maneira esquematizada, passamos a ter o seguinte desenho estrutural:
Ação Pública Incondicionada | Ação Penal Pública Condicionada | Ação Penal Privada |
– Vítima Menor de 18 anos ou pessoa vulnerável. | – Passou a ser a Regra do sistema. | – Não mais subsiste essa hipótese. |
Além de a regra geral passar a ser a ação penal pública condicionada e não mais haver a previsão de ação penal privada, pelo texto da lei, a única hipótese em que a ação penal nos crimes sexuais não seria pública condicionada à representação é justamente quando ela for praticada contra a “vítima vulnerável[1] ou menor de 18 anos”!
Sequer em caso de estupro com resultado morte ou lesão grave a ação penal seria pública incondicionada (sobre o tema, importante destacar que o Procurador Geral da República ajuizou a ADI 4.301 perante o STF, arguindo a violação da proibição de proteção deficiente, de modo a “restabelecer” o incondicionamento nos referidos casos. De toda forma, trata-se de um tema que, se assim desejarem, poderemos explorar em outro post).
Todavia, um dos debates travados em sede doutrinária se deu quanto à seguinte dúvida: todo estupro praticado contra vulnerável (art. 217-A do CPB) desafiará ação penal pública incondicionada?
A referida dúvida se deve à confusão redação do artigo 225 do CPB. Vejamos:
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Perceba que, a um só tempo, o legislador previu ser a ação penal pública condicionada à representação a regra tanto para os crimes contra a liberdade sexual e para os crimes sexuais contra vulnerável (caput – já que o Capítulo II refere-se exatamente ao estupro de vulnerável), como também indicando que para nesse último caso ela seria pública incondicionada (parágrafo único)!
Sobre o tema, vejamos o que anota o professor Cézar Roberto Bitencourt:
A confusa previsão da natureza da ação penal nos crimes contra a liberdade sexual e contra vítima vulnerável. A Lei n. 12.015/2009, que alterou a redação do art. 225 do Código Penal, determina que a ação penal, para os crimes constantes dos Capítulos I e II do Título VI (“Dos Crimes contra a liberdade sexual” e “Dos crimes sexuais contra vulnerável”, respectivamente), passa a ser pública condicionada à representação. Inverte, dessa forma, sua natureza, que era de exclusiva iniciativa privada. Contudo, paradoxalmente, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que a ação penal é pública incondicionada se a vítima for menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável, ou seja, na hipótese dos crimes previstos no Capítulo II do mesmo Título do Código Penal, o exercício da ação penal não depende de qualquer condição, contrariando a previsão do caput. Afinal, nos crimes sexuais contra vulnerável (Capítulo II) a ação penal será pública condicionada à representação, como determina o caput do questionado art. 225, ou será pública incondicionada, como afirma o seu parágrafo único? Trata-se de um dos aspectos de uma verdadeira vexata quaestio deste Capítulo IV, que cuida das disposições gerais; o outro reside na contradição do ordenamento jurídico que, a pretexto de proteger um direito constitucionalmente tutelado – a liberdade sexual do cidadão -, restringe exatamente o exercício dessa liberdade, que era protegida pela natureza da ação penal de exclusiva iniciativa privada, pois reconhecia, nesses crimes, a prevalência do interesse individual em relação ao interesse público. (Tratado de Direito Penal, Parte Especial – Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual até os Crimes Contra a Fé Pública. 8ª ed., págs. 150/151).
A questão longe está de ser pacificada nas Cortes nacionais. Todavia, impera-se registrar a última manifestação do Superior Tribunal de Justiça, especificamente pela 6ª Turma, no julgamento do HC 276.510/RJ[2], Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 01/12/2014!
De acordo com o entendimento esposado no referido caso concreto, ressaltando-se que o entendimento se deu por maioria, com voto divergente do Ministro Rogério Schietti Cruz, a interpretação que deve ser dada ao referido dispositivo legal (artigo 225 do CPB) a partir da Lei 12.015/2009, especificamente em relação aos crimes sexuais contra vulnerável, é a de que:
“em relação à vítima possuidora de incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos, a ação penal seria sempre incondicionada. Mas, em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, a ação penal permanece condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii. Com este entendimento, afasta-se a interpretação no sentido de que qualquer crime de estupro de vulnerável seria de ação penal pública incondicionada, preservando-se o sentido da redação do caput do art. 225 do Código Penal.. No caso em exame, observa-se que, embora a suposta vítima tenha sido considerada incapaz de oferecer resistência na ocasião da prática dos atos libidinosos, esta não é considerada pessoa vulnerável, a ponto de ensejar a modificação da ação penal. Ou seja, a vulnerabilidade pôde ser configurada apenas na ocasião da ocorrência do crime. Assim, a ação penal para o processamento do crime é pública condicionada à representação. Verificada a ausência de manifestação inequívoca da suposta vítima de ver processado o paciente pelo crime de estupro de vulnerável, deve ser reconhecida a ausência de condição de procedibilidade para o exercício da ação penal. Observado que o crime foi supostamente praticado em 30/1/2012, mostra-se necessário o reconhecimento da decadência do direito de representação, estando extinta a punibilidade do agente.
Então, como responder à inquietante indagação do professor Cézar Bitencourt: afinal, nos crimes sexuais contra vulnerável (Capítulo II) a ação penal será pública condicionada à representação, como determina o caput do questionado art. 225, ou será pública incondicionada, como afirma o seu parágrafo único?
De acordo com a última manifestação do Superior Tribunal de Justiça irá depender da vítima! Ou seja:
(a) Se a incapacidade da vítima em oferecer resistência à prática de atos libidinosos for permanente, a ação será sempre pública INCONDICIONADA.
(b) Em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião específica da prática dos atos libidinosos, não se consideraria ela como pessoa vulnerável, razão pela qual desafiaria a ação penal pública condicionada à representação.
Muita atenção com esse julgado! Fiquem ligados e acompanhando a evolução da jurisprudência dos Tribunais! Ressalto, mais uma vez, que esse é um excelente tema para cair na sua prova!
Vamos em frente!
Pedro Coelho
Obs.: Se dúvidas houver sobre o tema ou sobre o processo penal, comentem na página da EBEJI ou diretamente no meu FB https://www.facebook.com/pedro.pmcoelho.
[1] Para entendermos quem seria “vítima vulnerável”, poderemos ter como parâmetro o artigo 217-A do CPB, que indica ser vulnerável (a)o menor de 14 anos ou (b)alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
[2] DIREITO PROCESSUAL PENAL. NATUREZA DA AÇÃO PENAL EM CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. – Procede-se mediante ação penal condicionada à representação no crime de estupro praticado contra vítima que, por estar desacordada em razão de ter sido anteriormente agredida, era incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos. De fato, segundo o art. 225 do CP, o crime de estupro, em qualquer de suas formas, é, em regra, de ação penal pública condicionada à representação, sendo, apenas em duas hipóteses, de ação penal pública incondicionada, quais sejam, vítima menor de 18 anos ou pessoa vulnerável. A própria doutrina reconhece a existência de certa confusão na previsão contida no art. 225, caput e parágrafo único, do CP, o qual, ao mesmo tempo em que prevê ser a ação penal pública condicionada à representação a regra tanto para os crimes contra a liberdade sexual quanto para os crimes sexuais contra vulnerável, parece dispor que a ação penal do crime de estupro de vulnerável é sempre incondicionada. A interpretação que deve ser dada ao referido dispositivo legal é a de que, em relação à vítima possuidora de incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos, a ação penal seria sempre incondicionada. Mas, em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos – não sendo considerada pessoa vulnerável –, a ação penal permanece condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii. Com este entendimento, afasta-se a interpretação no sentido de que qualquer crime de estupro de vulnerável seria de ação penal pública incondicionada, preservando-se o sentido da redação do caput do art. 225 do CP. HC 276.510-RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11/11/2014, DJe 1º/12/2014.
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